O vocabulário das relações
internacionais se referia a um mundo no qual a economia nacional e o
Estado-nação eram a realidade interna de uma realidade externa que se caracterizava
como as relações entre nações. Hoje, o capital mundial subverteu o par
interno/externo e outros fenômenos tornaram pouco clara e distinta a palavra
realidade interna, que caracterizava os países ou nações. No “Anti-Édipo”,
Deleuze e Guattari não implodiram a dualidade interno/externo da realidade
freudiana?
Talvez, seja mais adequado pensar
interno/externo como verso e anverso de uma Banda de Moebius. Transição do
Anti-Édipo para a física geopolítica lacaniana.
Trata-se de superfícies contínuas, superfícies sem descontinuidade onde
a economia nacional e o Estado nacional ex-istem também como fenômenos da
superfície mundial. Por outro lado, o capital mundial ex-iste como fenômeno do
território trans-subjetivo nacional. O mundo funcionando em redes digitais é territorialmente
nacional e mundial, ao mesmo tempo. A trans-subjetivação digitalis das massas
de internautas se realiza em línguas nacionais e em linguagens transnacionais.
Parto da visão de Hobbes para
interpretar as relações internacionais. Há a crença intelectual de que Hobbes é
um escritor criador de uma ideologia
absolutista, um formulador de um pensamento político ditatorial em uma época na
qual a democracia representativa era apenas um esboço de filosofia política
econômica. A linguagem de Hobbes foi, em geral, esconjurada pelo liberalismo
clássico e pelas ideologias liberais do século XIX e XX. Contudo, nos estudos
das relações internacionais, o realismo da linguagem hobbesiana seduziu
gerações.
O pensamento político de Hobbes
tem como ponto de partida a natureza humana, o homem. Trata-se do homem natural
e do homem artificial. Tais significantes são culturais políticos? A ciência da
política hobbesiana parte da percepção sensível para conceituar as coisas dando
nomes consensuais a elas (Skinner: 398). Quem faz isso? Só a autointerpretação
da cultura política intelectual pode ser definida como atividade de nomear
consensualmente o significante. Logo, a cultura política intelectual é um campo
de produção de significantes, um campo transdialético materialista, pois os
significantes de outras superfícies (biológica, social, política, econômica, ou
cultural como tal, ou estética, ou moral, ou ética, ou metafísica, ou
filosófica) - pela ação do poder – deslizam para a superfície da cultura
política.
Homem é um significante que vem
de uma outra superfície para a superfície da cultura política artificialista da
experiência hobbesiana, O pensamento do homem é parte da teoria das aparências,
das semblâncias. O objeto hobbesiano é o segredo do conceito de máquina de
guerra de pensamento para a física geopolítica lacaniana:
“No que se refere aos pensamentos
do homem, considerá-los-ei primeiro isoladamente,
e depois, em cadeia, ou dependente
uns dos outros. Isoladamente, cada um
deles é uma representação ou aparência de alguma qualidade, ou outro
acidente de um corpo exterior a nós, o que comumente se chama objeto. O qual objeto atua nos olhos,
nos ouvidos, e em outras partes do corpo do homem, e pela forma diversa com
atua produz aparências diversas.
A origem de todas elas é aquilo
que denominamos sensação (pois não há nenhuma concepção no espírito do homem,
que primeiro não tenha sido originalmente, ou total ou parcialmente, nos órgãos
dos sentidos), O resto deriva daquela origem” (Hobbes: 13).
Na política, o objeto exterior é
a máquina de guerra. Esta produz a cultura política da sensação no homem, o
mundo da aparência. No século XX, os pós-modernistas são a continuação do
hobbesianismo com o conceito de homo simulacrum, que seria o modo mais eficaz de
evitar o estado de natureza hobbesiano na nação e nas relações
internacionais.
O estado de natureza ou estado de
guerra foi apropriado pela cultura política naturalista metafísica que define o
estado de natureza como corolário de uma natureza humana. A interpretação
freudiana do estado de natureza como articulado pelo instinto de morte seria uma aprofunda distorção do pensamento político de Hobbes, e, portanto, a própria ideia de
uma natureza humana agressiva (Rosset: 205). A violência não seria um fato da
natureza humana. O estado de guerra não se define pela natureza humana. O homo
homini lupus (Plauto) não é uma lógica da natureza humana; a guerra de todos
contra todos é obra do acaso, é o estado do acaso (Rosset: 199, 200). Hobbes é
um físico geopolítico lacaniano antes de Montesquieu. Ele é o criador da
ciência política do real como física da política.
O acaso articula um campo de
poder real. Trata-se de um campo de forças arbitrárias em choque ao acaso e forças cultural-políticas na transdialética materialista historial ,
pois, são as forças máquinas de guerra como anverso da pessoa. Estado de
natureza é o verso da máquina de guerra como anverso da pessoa. Contudo, a
pessoa faz pendant com um animal artificial, um autômato, uma máquina:
“ Do mesmo modo que tantas outras
coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é
imitada pela arte dos homens também nisto:
que lhe seja possível fazer um animal artificial. Pois vendo que a vida não é
mais do que um movimento dos membros, cujo início ocorre em alguma parte
principal interna, por que não poderíamos dizer que todos os autômatos (máquinas que se movem a si mesmas
por meio de molas, tal como um relógio) possuem uma vida artificial? ” (Hobbes:
9).
Deus é o RSIcp (Real/Simbólico/Imaginário/cultura
política), ou melhor, a arte da natureza que faz e governa o mundo. Deus faz o
estado de guerra como estado das máquinas de guerra animais (o animal que faz a
guerra é um produto da arte de Deus, de uma cultura política RSIcp, governada
pelo princípio do acaso, ou melhor, pelo princípio do real). A violência não é
o que articula a máquina de guerra animal, mas o choque ao acaso de tais
máquinas no campo de poder como estado de guerra arbitrária não governado por
um poder soberano. Trata-se de um campo de poder absoluto, arbitrário,
indeterminado, não sobredeterminado pelo poder soberano absoluto, ou Estado.
Leitor de Hobbes, na leitura da
física geopolítica, Michel Foucault pensa o Estado como estatização do campo de
poder (Deleuze: 77) das máquinas de guerra animais e artificiais. O campo de
poder do ocaso é a produção das máquinas de guerra e da cultura política, pois,
“não há fonte de poder, o poder é sua própria fonte, como é também a fonte de
todas as realidades “físicas” e “intelectuais” (Rosset: 201). O campo de poder
é a fonte de produção da máquina e da cultura política da máquina e do homem
artificial. Baudrillard tentou dissolver o conceito de poder no hiperpoder, mas
fracassou diante da investigação de Foucault, Deleuze e Lacan do campo de poder
moderno tardio, que a física geopolítica lacaniana retoma como ponto de partida
de tal significante na contemporaneidade.
O que chamam natureza é o produto
do acaso, ou seja, hábito de ordem física (Rosset: 202). Trata-se da física da
máquina de guerra animal, do homo homini lupus. O que se designa como natureza
humana é o produto da instituição social, ou seja, hábito de ordem sociológica
(Idem: 202). Trata-se da máquina de guerra sociológica condensada na pessoa. A
propósito, há no reino da máquina de guerra hegeliana de pensamento em uma
contraposição entre acaso e liberdade (Rosenfield: 21-22).
A obra de Hobbes parte da
associação civil nação como unidade política mínima da ciência política. Na
leitura de Quentin Skinner, a nação não é uma pessoa, mas seus atos, seu
comportamento soberano. A nação é uma prática trans-subjetiva RSIcp constituída
de inúmeros atos e ações. Não há
subjetividade biográfica que condense a nação. Não existe pessoa moral, mas
atos morais políticos. Trata-se da filosofia moral da política. O objeto de tal
filosofia é a trans-subjetivação moral.
As virtudes hobbesianas indispensáveis
à vida civil (modéstia, equidade, confiança, humanidade e misericórdia) não são
propriedade da biografia individual subjetiva, mas da trans-subjetividade
nacional (Skinner: 420-421). Isso é a constituição de uma classe governante
civilizada como anverso da classe política lumpesinal bárbara. Mas a ruptura
epistemológica política do pensamento hobbesiano se realiza em relação à
cultura política retórica humanista.
Hobbes pensa uma cultura política
baseada no ensino da ciência política e não na retórica humanista. Trata-se de
trans-subjetivar os significantes da ciência da política moderna, que ele cria.
São significantes sem paixão (os significantes da retórica humanista são
significantes apaixonados, ainda bárbaros não lumpesinais) que articulam a
prática soberana dos atos civilizados. Os significantes civilizados não
articulam a subjetividade biográfica do soberano, mas a prática absolutista trans-subjetiva
do soberano da justiça em relação ao estado de natureza ou guerra.
O estado de guerra é antes de
tudo um problema da linguagem avaliativa, ou seja, da linguagem civis da nação. Enquanto o bem e o mal
nacional foram medidos pela mera diversidade dos desejos interpretativos atuais
(estado de anarquia hermenêutica) e, portanto, por uma diversidade
correspondente de parâmetros, os que agem dessa maneira descobrir-se-ão ainda
vivendo no estado de guerra: na linguagem da barbárie. Encontrando a ciência do
real que permita superar os problemas suscitados pela técnica da descrição
retórica da doxa e, portanto, para estabilizar a linguagem da avaliação moral
do comportamento político do soberano, ficaremos livres da anarquia política da
linguagem, da anarquia no uso dos termos avaliativos (Skinner: 422).
A estratégia nacional é evitar a
anarquia histérica oligárquica faccional (não-todo). A nação é uma totalidade
do campo simbólico articulada pela ciência da política. Penetramos em uma
discussão sobre o poder soberano nacional. Tal poder é o poder de uma multidão
nacional encarnado no soberano. Trata-se da lógica da representação da multidão
como corpo político. Soberano é a vontade representativa de tal corpo político
trans-subjetivo: “ Decorre daí que o único meio através do qual um corpo de
pessoas (biografias subjetivas) pode
praticar o ato de convencionar algo é a concordância mútua (trans-subjetiva) – a de cada indivíduo
com todos os demais – em aceitar os termos do pactum que os unifique a todos”
(Skinner: 416).
Como se institui uma nação? :
“A doutrina de Hobbes, portanto,
é que o ato de instituir uma nação ocorre quando todos pactuam com todos os
demais, no sentido de abrir mão do direito do juízo particular em assuntos
pertinentes à existência e ao bem-estar da nação, concordando em atribuir o
exercício desse direito a um representante soberano. Tão logo tal soberano é
escolhido, a nação é devidamente instituída sob a forma de um corpo único,
unido por haver adquirido uma alma, ou anima,
para agir em seu nome” (Skinner: 417). No século XXI, a nação ou será um RSIcp
cultural político da tela digital, trans-subjetivação digitalis, homo
digitalis, ou não será.
Em Hobbes, o poder soberano
nacional não faz um pacto trans-subjetivo com as massas sujeito zero soberano
(súditos) ao se instalar (Idem: 416). A multidão tece um pacto trans-subjetivo
que instala o poder soberano nacional como campo de poder nacional. A multidão
aliena seu direito de derrubar o Príncipe soberano (um homem, uma assembleia)
ao instalar a nação trans-subjetiva. Não existe o direito de depor o tirano (o
ditador), pois, não ex-iste a distinção da cultura política antiga entre governo
legítimo e ilegítimo (Idem: 419. Olhando mais de perto o absolutismo do campo
de poder nacional alcançamos o fulcro do pensamento político de Hobbes: a
natureza absolutista da linguagem política.
No entanto, de fato, a ideia de
um espaço cultural político onde a linguagem hobbesiana substituiria a
linguagem retórica humanista aponta para a hegemonia (com intelectual
hegemônico ou magister ludi) soberana absolutista que rechaça a transdialética
hegemonia versus contrahegemonia, que é a melhor articulação da democracia
moderna para o século XXI. Em Hobbes, temos a ditadura com hegemonia na cultura
política intelectual nacional. Já a liberdade da máquina de pensamento moderna
foi pensada por Hegel como espaço público procedural?
A linguagem nacional absolutista
é a prática de inúmeros atos de fala do magister ludi absolutista para evitar a histeria
oligárquica dos irmãos, da fraternidade hermenêutica. Hobbes pensa um campo de
poder absolutista da linguagem política que evite a anarquia. Este é o uso da
linguagem sem lógica da representação. Está perfeito! A ditadura/hegemonia
hobbesiana da linguagem introduz o problema do espaço público procedural de
Hegel: um espaço de fala onde há enfretamento - como diálogo e ataque. Rosenfield
diz “a confrontação dialogo são as formas mesmas de produção do conceito”
(Rosenfield: 23). Isso define a hegemonia como uma prática de inúmeros atos
(como verbo e escritura), que persuade as massas sujeito zero ditatorial. Ela
depende de uma interseção entre a subjetividade e a trans-subjetividade
sustentada na sinceridade dos interlocutores.
Hobbes pensa a hegemonia na
superfície da linguagem política nacional em um campo de poder absolutista:
“Primeiramente, ele considera
como agir nos casos em que há uma controvérsia quanto à definição correta de
algum termo moralmente significativo. O único remédio possível é o soberano
impor sua própria definição e usar sua autoridade para proibir qualquer
discussão adicional. Em seguida, Hobbes propõe a mesma solução para o caso das
controvérsias provenientes do uso de redescrições paradiastólicas. Ele reconhece
que essas disputas não se darão em torno de definições, mas dirão respeito a
saber “se alguém raciocinou corretamente’ na aplicação de determinado termo
avaliativo. Mais uma vez, entretanto, o único remédio possível será que o
soberano decida. Somente se ele impuser sua autoridade como árbitro final é que
será possível evitar as discussões intermináveis que, de outro modo, haverá de
seguir-se” (Skinner: 423).
Hobbes pensa uma comunidade
intelectual absolutista e autotélica. Lacan implodiu tal concepção de cultura
política intelectual ao asseverar que a cultura política intelectual ex-iste para
as massas e as massas – ao metabolizaram trans-subjetivamente um discurso –
decidem qual é a verdade produzida pelos embates e diálogos da comunidade
política intelectual (Lacan: 13). Trata-se de um espaço público procedural que
suprassume o conceito de espaço público de Habermas, que é ainda autotélico
liberal.
O materialismo do espaço público
procedural lacaniano foi retirado de Marx: a verdade está na prática: “As
ideias jamais podem levar mais além de uma antiga ordem mundial; não podem
fazer outra coisa que levar mais além dessas ideias dessa antiga ordem. Falando
em termos gerais, as ideias não podem
executar nada. Para a execução das ideias fazem falta homens que disponham
de certa força prática” (Lenin: 29). Trata-se de massas intelectuais de
homens!
Para Hobbes é impensável o espaço
público procedural como campo de poder onde a linguagem hegemônica enfrenta a
linguagem contrahegemônica. Gramsci pensou tal campo procedural a partir de
Hegel, como luta de classes. A cultura política moderna se define com um campo
de poder que é o avesso da cultura política absolutista, da cultura política
ditatorial. É possível evitar a histeria oligárquica da anarquia branca (não-todo
colonial) através da hegemonia procedural Hegel/gramsciana. No século XXI, não
se trata da hegemonia burguesa versus contrahegemonia marxista. Não se trata
mais de um campo de luta de classes. Do que se trata?
O campo de poder mundial é um
campo procedural cultural político. Ele se define pelo diálogo e ataque entre a
cultura política do capital mundial e a física geopolítica lacaniana. Logo,
permaneço na linhagem cultural política intelectual Hobbes/Hegel/Marx/Gramsci/Lacan.
Quando, a física se tornar a teoria de uma prática (das massas transculturais
políticas como força prática), o campo de poder mundial se tornará uma
superfície articulada pela transdialética do antagonismo cultural político
hegemonia do capital mundial versus física como praxis das massas sujeito zero
ditatorial. Para não cair no anarquismo branco, é preciso que a lógica da
representação estabeleça um soberano democrático que na transdialética
materialista possa representar a multidão nacional. Um Estado nacional do século
XXI só pode ser o Estado da praxis das massas nacionais digitalis!
Relações internacionais derivam
de Estado-nação; relações entre nações. Não há quem fale em Nome-do-Pai, ou
seja, não há representante do campo simbólico lacaniano (Deus/Pai), na
totalidade RSIcp hobbesiana. Nas relações internacionais hobbesianas Deus não
ex-iste, a não ser como acaso Talvez, agora, seja melhor pensar as relações
internacionais como RSIcp (Real/Simbólico/Imaginário/cultura política)
articulado pelo princípio do real – em determinadas épocas históricas – ou pelo
princípio da cultura geopolítica lacaniana no século XXI, por exemplo. Então
seria necessário pensar Deus como RSIcp cultural político.
A interrogação adequada é - o
século XXI continua hobbesiano (princípio do real [acaso] articulando as
relações internacionais) ou se articulará por um novo Deus – principio cultural
político da física articulando as relações internacionais como RSIcp?
O estado de natureza hobbesiano pode
ser traduzido como cultura política da guerra, se ele jamais se articula pela
realização permanente do instinto de morte no indivíduo isolado na liberdade de
tal felicidade? Não há realização permanente da satisfação do instinto de
morte, ou seja, uso da violência sem limite sobre os outros. O estado de guerra
é um significante factual que faz pendant com a cultura política da guerra
freudiana, cultura da máquina de guerra freudiana? Falo de um RSIcp articulado
pelo real: relações internacionais hobbesianas ex-istindo no acaso dos choques das máquinas de guerra.
Franco Cardini diz que não há
cinismo em sustentar que a guerra tem jogado na história um papel capital de um
ponto de vista social, político, econômico, tecnológico, religioso, talvez
literário e artístico: “Como o historiador, a antropologia sabe que existem
civilizações inteiras fundadas na guerra e concebidas não somente por responder
as necessidades que ela mesmo produz, mas também civilizações a fim de perpetuar
a guerra” (Cardini: 9-10).
No século XX, as relações
internacionais articuladas ao Estado-nação geraram a I e II Guerras Mundiais.
Qual é a espécie de articulação de tal realidade dos fatos? A cultura política
da guerra freudiana governou o planeta? Ou se trata de um choque ao acaso das
máquinas de guerra planetárias? Do estado de guerra hobbesiano com tal?
O estado de natureza hobbesiano é
o estado de barbárie da física geopolítica. Trata-se da transdialética
civilização versus barbárie moderna: “A hipocrisia profunda e o barbarismo
moderno inerente à civilização burguesa estendem-se sem disfarces diante dos
nossos olhos, passando da sua terra natal, onde assume formas respeitáveis para
as colônias, onde se apresenta sem disfarces” (Marx: 103). A barbárie moderna é
a barbárie com semblância civilizada; a barbárie colonial moderna é barbárie
sem semblância civilizada?
A barbárie colonial moderna é
aquela da personificação hobbesiana, ou seja, a lógica da representação do
autor no ator como princípio da semblância cultural política? Na cultura
política grega o autor (as massas dos homens livres e normais) é o ator na
Ágora, reduzindo, assim a semblância ao discurso sofístico. Isso não é uma
condenação da retórica sofística. Também pode ser a ditadura das massas onde o
poder comum do autor/ator substitui a lei, a moral civilizatória pela moral
lumpesinal, e substitui a ética da politeia. A ditadura das massas é a ditadura das
massas lumpesinais grau zero civilização. Trata-se da barbárie que se apossa da
politeia. É o poder bárbaro, poder como grau zero de semblância; o real que não
para de não se inscrever como princípio articulador do RSIcp.
Dando um passo à frente, o RSIcp
bárbaro se articula pelo princípio do real (a trans-subjetivação cultural
política impossível de ser suportada pela sociedade de significantes
civilizada) pelo uso da violência sem limite contra o inimigo do povo
lumpesinal. A ditadura leninista (ersatz social do proletariado) e, mais ainda,
a stalinista (ersatz populista do povo russo) assim como a fascista alemã (ersatz étnico populista ariano do povo alemão) são ditaduras lumpesinais,
ditaduras bárbaras.
As relações internacionais
articuladas pela conjuntura fascista é o reino da barbárie hobbesiana, da RSIcp
bárbara, articulada pela cultura política da guerra lumpesinal, pela soberania
da violência sem limite entre os Estados—nação. O fascismo alemão tinha como
utopia a instalação da ditadura lúmpen na cultura política mundial.
Tal configuração RSIcp sustenta a
ditadura lúmpen como disposição que articula as relações internacionais entre
Estados-nação que fazem pendant (laço cultural político) com a junção do
capital monopolista de Estado com o capital transnacional.
Trata-se da transdialética
amigo/inimigo do capital como RSIcp articulado pelo princípio do real que é o
anverso do da política mundial RSIcp articulada como cultural política. Agora,
não se trata de pensar o século XXI como substituição da totalidade RSIcp do
capital por um Império Egípcio moderno (Weber: 541)), ou qualquer outra espécie
de império territorial geográfico. O império atual é o império trans-subjetivos
das massas da ordem digitalis mundial!
O RSIcp contemporâneo é uma
totalidade imperial digital/digitalis que reterritorializa o território
trans-subjetivo nacional depois da ruina do Estado-nação do século XX. O
Estado-nação do século XXI é o Estado-nação digital/digitalis.
Não é possível o estado de
natureza hobbesiano sem a distinção entre pessoa e máquina de guerra:
“Uma pessoa é aquela cujas
palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como
representando as palavras ou ações de outro homem, ou de qualquer outra coisa a
que sejam atribuídas seja como verdade ou por ficção.
Quando elas são consideradas como
suas próprias ele se chama uma pessoa
natural. Quando são consideradas como representando as palavras e ações de
um outro, chama-se-lhe uma pessoa fictícia
ou artificial.
A palavra “pessoa” é de origem
latina. Em lugar dela os gregos tinham prósopon,
que significa rosto, tal como em
latim persona significa disfarce ou a aparência exterior de um homem, imitada
no palco. E por vezes mais particularmente aquela parte dela que disfarça o
rosto, como máscara e viseira. E do palco a palavra foi transferida para
qualquer representante da palavra ou da ação, tanto nos tribunais como nos
teatros. De modo que uma pessoa é o
mesmo que um ator, tanto no palco
como na conversação corrente. E personificar
é representar, seja a si mesmo ou a
outro; e daquele que representa outro se diz que é portador de sua pessoa, ou
que age em seu nome (sentido usado por Cícero quando diz: Unus sustineo três Personas: Mei,
Adversarii, e Judicis – Sou portador de três pessoas; eu mesmo, meu adversário, e
o juiz). Recebe designações diversas, conforme as ocasiões: representante, mandatário, lugar-tenente,
vigário, advogado, deputado, procurador, ator, e outras semelhantes” (Hobbes: 100). A persona deslizou para a cultura política se transformando em transpersona. Este problema tratarei em outro texto.
A persona ex-iste nas palavras e
ações que constituem uma prática: “Quanto às pessoas artificiais, em certos
casos algumas de suas palavras e ações pertencem àqueles a quem representam.
Nesses casos a pessoa é o ator, e aquele a quem pertencem suas palavras e ações
é o autor, casos estes em que o ator age por autoridade” (Hobbes: 100). Há duas
espécies de prática: autor e ator.
A lógica da representação que se
articula pela personificação do autor no ator combina desigualmente verdade e
ficção (semblância). A pessoa natural (prática) é a pessoa sem semblância, sem
ficção, a ditadura das massas ou a politeia sem os sofistas; parece uma
impossibilidade cultural política como grau zero da retórica. Hobbes pensou uma
cultura política moderna sem semblância retórica, uma cultura política
articulada como RSIcp a partir da ciência da política como ciência do real,
como física da política.
A leitura da obra de Hobbes feita
por Locke (e Rousseau) subverteu pelo avesso o projeto de ciência do real
hobbesiana (Rosset: 205). O leitor pode ler em Marcel Merle uma interpretação –
pelo discurso da universidade - de Hobbes que é o avesso da verdadeira
interpretação de Hobbes das relações internacionais (Merle: 11-19). O discurso
da universidade quer Hobbes com semblância liberal!
A teoria da semblância em Hobbes sustenta o significante semblância até no mundo-da-vida; ela define a pessoa
como artifício inclusive no mundo-da-vida “de modo que uma pessoa é o mesmo que
um ator, tanto no palco como na conversação corrente. E personificar é
representar seja a si mesmo ou o outro”.
O discurso do direito hobbesiano
estabelece o significante autoridade pela lógica da personificação. A lógica da
personificação é ficcional e ela só existe através de um Estado civil:
“Poucas são as coisas incapazes
de serem representadas por ficção. As coisas inanimadas, como uma igreja, um
hospital, uma ponte, podem ser personificadas por um reitor, um diretor, um
supervisor. Mas as coisas inanimadas não podem ser autores, nem, portanto,
conferir autoridade a seus atores. Todavia, os atores podem ter autoridade para
prover a sua conservação, a eles conferidas pelos proprietários ou governadores
dessas coisas. Portanto essas coisas não podem ser personificadas enquanto não
houver um Estado de governo civil” (Hobbes: 101). Um escravo é como uma coisa
inanimada? Isso é o grau zero da escravidão. Todavia, o escravo é o animal
vocal fora de qualquer lógica da representação trans-subjetiva nacional. A
nação escravocrata é da ordem da barbárie colonial. O escravo é o significante da barbárie na era
moderna.
Quando Marx fala da escravidão do
proletariado moderno, ele está dizendo que a sociedade capitalista é a
civilização mesclada com a barbárie moderna. O proletariado do século XIX só
era um homem livre e normal como semblância liberal (direito moderno) de uma
sociedade de significantes colonial do discurso da servidão voluntária. O
escravo não é uma pessoa natural ou artificial, mas ele pode se tornar uma máquina
de guerra psicótica na ditadura lumpesinal das massas.
A personificação depende da
definição de ator em pleno uso da razão. Hobbes esgrima um conceito de loucura
mais lacaniano que o próprio conceito de loucura lacaniano:
“De maneira semelhante, as
crianças, os imbecis e os loucos, que não têm o uso da razão, podem ser
personificados por guardiães ou curadores, mas não podem ser autores (durante
esse tempo) de qualquer ação praticada por eles, a não ser que, (quando tiverem
recobrado o uso da razão) venham a considerar razoável essa ação. Mas, enquanto
durar a loucura, aquele que tem o direito de governá-los pode conferir
autoridade ao guardião. Mas também isto só pode ter lugar num Estado civil,
porque antes desse Estado não há domínio de pessoas” (Hobbes: 101). A relação
do louco com a modernidade é um problema de cultura política que articula o Estado
civil.
A era moderna está contemplada
entre as culturas políticas civis, assim, ela pode ser estudada como
transdialética materialista entre máquinas de guerra e pessoas. Ao contrário, o
discurso do direito moderno faz o direito para pessoas, ele quer julgar homens,
mulheres, crianças, imbecis, loucos e máquinas de guerras pelo paradigma da pessoa
do Estado moderno civil.
A loucura existe como prática de
inúmeros atos não regidos pela razão; não existe o louco, mas o estar louco em
um surto psicótico. Fora desse estado, o psicótico é um civil. A era moderna
transformou o psicótico em um objeto de dispositivos de saber/poder. A Razão
disso é considerar o psicótico como igual à máquina de guerra psicótica =
psicopata. A psiquiatria do século XX desvinculou psicótico e psicopata
absolutamente não entendendo jamais que o psicopata é máquina de guerra
psicótica. O psicopata pode ser a personificação do psicótico em um direito das
máquinas de guerra? O psicanalista psicopático pode representar o psicótico
para si mesmo?
Sobre o RSIcp hobbesiano há uma
diferença na religião entre os deuses pagãos e Deus (de Platão ou cristão). Só
a relação da religião com o Estado estabelece a lógica autor/ator para o
paganismo. Trata-se de uma cultura política religiosa como tal sem
personificação, sem lógica da representação. É a religião como princípio
anárquico do RSIcp:
“Um ídolo, ou mera ficção do
cérebro, pode ser personificado, como o eram os deuses dos pagãos, que eram
personificados pelos funcionários para tal nomeados pelo Estado, e tinham
posses e outros bens, assim como direitos, que os homens de vez em quando a
eles dedicavam e consagravam. Mas os ídolos não podem ser autores, porque um
ídolo não é nada. A autoridade provinha do Estado, portanto, antes da
instituição do governo civil os deuses dos pagãos não podiam ser personificados”
(Hobbes: 101).
Hobbes pensa a cultura pagã como
o grau zero da cultura política em um campo de poder. E a cultura cristã como
cultura política a partir da inscrição dela no campo do poder de Estado romano.
Esses são prolegômenos para a leitura da cultura política como tradição
religiosa ou laica.
A Nação não pode nascer da
religião pagã, pois, só Deus como RSIcp cultural político articula a sociedade
dos significantes pelo Nome-do-Pai. Cristo não falava em seu próprio nome, mas
em nome do Pai:
“O verdadeiro Deus pode ser
personificado. Conforme efetivamente foi, primeiro por Moisés, que governou os israelitas (que não eram o seu povo, e sim
o povo de Deus) não em seu próprio nome, com Hoc
dicit Moyses, mas em nome de Deus, com hoc
decit Dominus. Em segundo lugar, pelo filho do homem, seu próprio filho
abençoado salvador Jesus Cristo, que
veio para submeter os judeus e induzir todas as nações a entrarem no reino do
pai, não em seu próprio nome, mas em nome do pai. Em terceiro lugar pelo Espírito
Santo, ou confortador, que falava e atuava nos apóstolos. O qual Espírito Santo
era um confortador que não veio por si mesmo, mas foi mandado pelos outros
dois, dos quais procedia” (Hobbes: 101-102). Tal prosa parece ser algo sem
sentido para a cultura política laica moderna?
O significante pessoa é a
condensação da multidão em Nome-do-Pai, do Filho e do Espírito Santo, ou
melhor, pelo RSIcp:
“Uma multidão de homens é
transformada em uma pessoa quando é
representada por um só homem ou pessoa, de maneira a que tal seja feito com o
consentimento de cada um dos que constituem essa multidão. Por que a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a
pessoa seja una. E é o representante
o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é
possível entender a unidade de uma
multidão”. (Hobbes: 102). A multidão russa é personificada primeiro em Lenin,
depois, em Stalin. Trata-se de uma multidão ditatorial como contrário da
multidão da politeia. O problema cultural político do século XXI não é
encontrar uma multidão grega antiga que faça parte da cultura política
representativa moderna?
A multidão pode ser articulada como
RSIcp (princípio do real) ditatorial, ou pessoa natural, ou como RSIcp cultural
político pessoa natural = politeia. Ela pode ser articulada como pessoa
artificial RSIcp democracia representativa. Nesta a multidão é muitos
representados por uma única pessoa, como muitos autores:
“Dado que a multidão naturalmente
não é uma, mas muitos, eles não podem ser entendidos como um só, mas como muitos
autores, de cada uma das coisas que o representante diz ou faz em seu nome.
Cada homem confere a seu representante comum sua própria autoridade em
particular, e a cada um pertencem todas as ações praticadas pelo representante,
caso lhe haja conferido autoridade sem limites. Caso contrário, quando o
limitam quanto àquilo em que os representará, ou até que ponto, a nenhum deles
pertence mais do que aquilo em que deu comissão para agir” (Hobbes: 102). Na
lógica da representação personificada, o ator nunca é responsável sozinho por
suas ações; seus atos também são da responsabilidade do autor. Há uma autonomia
absoluta da ação do representante em relação ao representado; o ator não pode
ser responsabilizado por seus próprios atos, ele são da responsabilidade do autor personificado no ator.
A modernidade articula a
interseção das biografias subjetivas das pessoas com a trans-subjetivação
cultural política das massas sujeito zero antiguidade. Isso define uma atitude
moderna a partir das massas/autores. Com a Ordem Mundial Digitalis ex-istem as
massas digitalis que podem se conduzir para a constituição da Nação digitalis.
Trata-se de uma articulação em superfícies contínuas: nacional e mundial. Na internet,
a multidão de autores ainda não encontrou a sua personificação em uma única pessoa:
magister ludo digitalis onde se estabeleceria a transdialética digitalis
hegemonia e contrahegemonia. Ela ainda não ex-iste como espaço público
procedural digitalis nacional/mundial.
Quando isso se tornar um fato, um
outro RSIcp das relações internacionais (relações mundiais) poderá aflorar a
partir do significante pessoa/massas digitalis na transdialética hegemonia e
contrahegemonia, narrativa hegemônica e contranarrativa hegemônica.
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