José Paulo
Quando li na década de 1990 o
livro “A transfiguração do político. A tribalização do mundo”, não vi esta
teoria pós-modernista como sendo a teoria fazendo pendant com qualquer história
econômica mundial. Hoje, vejo o livro de Maffesoli como uma profecia racional
de uma realidade econômica que surge como parte do capitalismo mundial em
colapso.
O caminho a seguir começa com a semelhança
entre significantes do mundo colonial do Novo Mundo e neocolonial da
contemporaneidade. Por motivo econômico, a emigração é um significante do Novo
Mundo. A emigração atual ocorre por causa da guerra e do terrorismo e motivo econômico,
pois pessoas buscam asilo econômico em países que não se encontram no meio da
tempestade do capitalismo mundial em colapso.
II
O raptor é um significante do
Mundo Colonial. O raptor era apelidado “espírito”, aquele que que pega homens,
mulheres e crianças e os vende num navio para serem transportados além-mar para
trabalhar na economia da escravidão. Tal atividade ocorria em Londres e
Bristol. O sequestro de crianças, mulheres e jovens hoje alimenta a economia da
escravidão entre a periferia e os países desenvolvidos. Fato sobejamente
explorado pela sociedade de comunicação de massa. O raptor de hoje conta com
uma rede de espionagem criminal exuberante nas cidades e quase a céu aberto na
tela gramatical da polis. O raptor é uma figura da atmosfera da economia da
escravidão capitalista do século XXI. O
raptor atual neocolonial só é possível como agente do capitalismo mundial em
colapso.
III
O colonialismo moderno está
indissoluvelmente associado ao significante racismo. Um livro da década de 1940
diz: “a escravidão não nasceu do racismo: ao contrário, o racismo nasceu da
escravidão”. (Williams: 18). O racismo é um efeito da história econômica da escravidão moderna.
Marc Ferro fala do racismo como
efeito da expansão colonial europeia:
“a expansão colonial tornou-se a
solução para todos os problemas: pobreza, luta de classes, superpopulação.
Argumentava-se que ela representava o interesse comum, que estava acima
dos partidos. Aliás, nas coloniais o funcionário público ou o colono
proclamavam-se, acima de tudo, franceses – ou ingleses -, e nem de esquerda nem
de direita; era realmente a raça que os definia, e não sua atividade ou sua
função social. Era ela que definia a elite, justificava a opressão.
Por certo, as teorias raciais já
existiam antes da colonização, antes do imperialismo, mas tinham pouca
repercussão. O imperialismo deu-lhes substância e vida, propagou-as. (Ferro:
42).
Me remeto ao brasileiro Octavio Ianni para falar do
racismo como significante da segunda metade do século XX.
Sobre a racialização das relações
sociais como tribalização do mundo, Ianni faz uma citação
“Hoje, por todos os lados, a
etnicidade é a causa da desagregação de nações. A União soviética, Iugoslávia,
Índia, África do Sul estão todas em crise. As tensões étnicas perturbam e
dividem Sri Lanka, Burma, Etiópia, Indonésia, Iraque, Líbano, Israel, Chipre,
Somália, Nigéria, Libéria, Angola, Sudão, Zaire, Guiana, Trindade, e outras
nações. Mesmo nações como a Inglaterra e a França, a Bélgica, Espanha, e
Tchecoslováquia enfrentam perturbações étnicas e raciais. O tribalismo...,
adormecido por anos, reacende para destruir nações”. (Ianni: 192).
Ianni fala da retomada dos
problemas raciais devido á universalização do capitalismo globalizado cyber, ou
então, por causa da de manifestações de
movimentos e configurações da sociedade global em formação. (Ianni: 193). A tribalização do mundo faz
pendant com o capitalismo globalizado cyber. Aí se encena a racialização da
política.
O racismo pode ser o efeito de
uma superpopulação absoluta produzida pela expansão do capitalismo globalizado cyber:
‘superpopulação absoluta; isto é,
uma superpopulação composta de um contingente relativo, que se forma e dissolve,
e um contingente que não encontra possibilidades de emprego, nunca voltam.
Conforme ocorre no capitalismo globalizado, quando a microeletrônica, a
automação, a robótica, a informática e as redes aceleram e multiplicam a
capacidade produtiva da força de trabalho, nessa época um contingente pode
tornar-se permanentemente residual ou excedente. Nessa época agrava-se a
questão social. Mesclam-se e dinamizam-se as tensões sociais, umas vezes
manifestando-se no âmbito do desemprego estrutural, outras aparecendo em
fundamentalismos, xenofobias, etnicismos ou racismos”. (Ianni:199-200).
O capitalismo globalizado cyber faz um nova leitura da racialização, pois, a
ideia de raça superior branca ocidental será colocada em cheque no século XXI
com o deslizamento da cadeia de significantes capitalismo corporativo mundial
cyber para a Ásia fazendo pendant com um sistema neomercantilista de Estados asiáticos cyber.
No campo imaginário ocidental, a
raça deixa de ser um significante com acesso ao real geográfico. Assim, o mundo
não aparece mais como uma história natural de uma distribuição do poder mundial
a partir das raças branca, amarela, negra. Ianni ajuda a entender tal fenômeno:
“Neste ponto cabe um esclarecimento
indispensável. Ainda que em forma breve. ‘Etnia’ é o conceito científico
habitualmente utilizado para distinguir os indivíduos ou as coletividades por
suas características fenotípicas; ao passo que ‘raça’ é o conceito científico
elaborado pela reflexão sobre a dinâmica das relações sociais, quando se
manifestam estereótipos, intolerâncias, discriminações, segregações ou
ideologias raciais. A ‘raça’ é construída socialmente no jogo das relações
sociais. São indivíduos, grupos ou coletividades que se definem reciprocamente
como pertencentes à ‘raça’ distintas”. (Ianni: 205-206).
IV
No Ocidente, o novo equilíbrio de
poder econômico mundial provoca um efeito político regressivo. Um neofascismo
ganha terreno político na Europa, EUA e América Latina. Trata-se de um fenômeno
grotesco e derrisório, risivelmente charlatanesco, pois, o movimento
neofascista é despossuído do significante raça ariana superior no comando da
economia, política e cultura.
No entanto, o capitalismo globalizado
cyber gera um efeito sobre a sociedade
de classes sociais que a sociologia designa como subclasse. Esta é a base de
novas formas de radicalização social fazendo pendant com o neofascismo na
política representativa:
“É principalmente nas grandes
cidades, metrópoles, megalópoles, e, frequentemente, nas cidades globais, que
se localiza a subclasse: uma
categoria de indivíduos, famílias, membros das mais diversas etnias e
migrantes, que se encontram na condição de desempregados mais ou menos
permanentes. São grupos e coletividades, bairros, e vizinhanças, nos quais
reúnem-se e sintetizam-se todos os principais aspectos da questão social como
questão urbana: carência de habitação, recursos de saúde, educação, ausência ou
precariedade de recursos sociais, econômicos e culturais para fazer face a
essas carências; desemprego permanente
de uns e outros, muitas vezes combinado com qualificações profissionais
inadequadas à novas formas de organização técnica do processo de trabalho e
produção; crise de estruturas familiares; tensões sociais permanentes, sujeitas
a explodirem em crises domésticas, conflitos de vizinhança, riots”. (Ianni: 75-76).
Fazendo parte da subclasse, aposentados,
pensionistas acabam formando uma força social gramatical que se faz notar tanto
no movimento de rua como na política. Trata-se de um fenômeno demográfico na
divisão do trabalho internacional, pois, são corpos vivos (plenos de
necessidades e desejos) que deixaram de ser produtivos como força de trabalho
do capitalismo globalizado cyber.
A subclasse na periferia do
capitalismo globalizado aparece como a força social dos de baixo fazendo laço
social com a expansão irrevogável do crime organizado:
“Estas são algumas das
características da subclasse; minorias raciais, desempregados por longo tempo,
falta de especialização e treinamento profissionais, longa dependência do
assistencialismo, lares chefiados por mulheres, falta de uma ética do trabalho,
droga, alcoolismo. (Ianni: 76).
A subclasse, os aposentados e a
tribalização do mundo acabam aparecendo como sintomas exuberantes do
capitalismo globalizado em colapso. A tribalização do mundo põe e repõe em cena
uma nova espécie de racionalização regressiva extemporânea no capitalismo
globalizado cyber. Talvez, o primeiro sintoma do capitalismo em colapso seja,
paradoxalmente, o apocalipse historial do socialismo realmente existente. O
apocalipse põe e repõe em cheque a utilidade da gramática econômica do Estado
moderno (fazendo parelha com a nação moderna como força secular da Ilustração) como
força motora de uma sociedade burguesa socialista realmente existente como
alternativa ao capitalismo mundial ocidental em colapso. A vontade de potência
niilista historial universal aprende o caminho e o método para a dissolução das
gramáticas econômicas da modernidade:
“Logo que desabou o bloco
soviético, quando se movimentam mais abertamente os vários setores da sociedade
civil em cada nação e debilita-se como núcleo e síntese da sociedade, nessa
ocasião eclodem os nacionalismos, localismos, provincianismos,
fundamentalismos, etnicismos, e racismos. O mesmo processo de desagregação
política e econômica é também de desagregação social e cultural. Em pouco
tempo, desintegram-se nações e nacionalidades no Leste Europeu e na Rússia.
Multiplicam-se as novas repúblicas eslavas ou islâmicas, orientais ou
europeizantes. É o que acontece com a Iugoslávia, a Tchecoslováquia e a Rússia,
sendo que em alguns casos as novas repúblicas também são atravessadas por
movimentos de desintegração mais ou menos radicais, quando se afirmam
identidades e diversidades, muitas vezes com base em vivencias e ilusões
pretéritas. Está em curso nova onda de racialização no mundo”. (ianni; 209).
V
A teoria do tribalismo da
política mundial de Maffesoli é aquela da história econômica do capitalismo
neocolonial internacional satélite (CNIS) do capitalismo corporativo mundial
cyber (CCMc)? Ela parece ser a teoria da implosão da gramática moderna racional
no domínio da política da nação e sociedade com ideologias sem ligação com a
história econômica do capitalismo. A tribalização da política não funciona como
superestrutura do capitalismo. É o método da sociologia pós-modernista.
“Excesso de luz escurece. Esse aforismo
pascalino pode servir-nos, ao contrário, para aceitar o claro-escuro induzido
pela ambiência emocional e as contradições que lhe são inerentes. Esse clima
emocional é particularmente perceptível na implosão, em cadeia, que atinge o
Estado-nação e os grandes impérios ideológicos. Uns e outros estão cedendo
lugar a confederações que, de maneira mais leve, cimentam comunidades, de proporções
diversa, repousando mais sobre um sentimento de vinculação que sobre a moderna
noção de contrato social, ao qual se atrela uma conotação racional e voluntária”.
(Maffesoli: 18).
A tribalização do mundo remete
para a lógica familial, uma lógica arcaica pré-moderna que em Weber se vê na dominação
tradicional. No entanto, esta é ainda baseada em uma racionalidade tradicional.
Como sintoma do capitalismo mundial em colapso, a lógica familial política substitui
a razão instrumental ´pelo estado sentimental ou Estado sentimental:
“Numerosos são os indícios que,
nacional ou internacionalmente, exprimem esse sentimento de vinculação
comunitária ou tribal. Regiões, cidades, departamentos, levantam-se contra o
centralismo jacobino, em torno de um herói epônimo: prefeito, notável local,
estrela esportiva ou personalidade de renome afirmam um imaginário que os
constitui como tal. O mesmo vale nos quatros cantos do mundo, a partir de uma
reivindicação étnica, de uma especificidade cultural ou de um fanatismo
religioso. Em cada um desses casos,
afirma-se o que Wittgenstein chamava de <semelhança de famílias>.
Desde então, não é mais possível pensar nessas pequenas sociedades fragmentadas
com os conceitos de instituição, de estrutura e de relação entre eles,
conceitos elaborados em três séculos de modernidade homogeneizadora. Talvez
seja necessário pensar fora da História, pois, o que tende a predominar é da
ordem das pequenas histórias locais, dos acontecimentos, do que acontece, de maneira
mais ou menos efervescente, em estado puro”. (Maffesoli: 19).
O livro de Maffesoli é de 1992. Nosso
autor parisiense não contava com o contexto pré-diluviano, no qual se insere o
início da década de 1990, estabelecido pela narrativa universal do capitalismo
globalizado cyber. No entanto, ele viu a tribalização do mundo da política mundial
como superestrutura do capitalismo neocolonial internacional satélite (CNIS) do
CCMc.
A superestrutura política do CNIS
é exposta de um modo brilhante por Maffesoli:
É a partir disso que tento
analisar a emergência de uma cultura do sentimento (capítulo 3) na qual
predomina o ambiente, a vivacidade das emoções comuns e a necessária abundância
de supérfluo que parece estruturar a sociedade pós-moderna. Essa cultura
permite compreender a transfiguração do
político em esboço sob os nossos olhos. De fato, quem diz sentimento
partilhado, diz pluralização, pois se declina ao infinito a atração ou a repulsão
que me liga, ou separa, ao outro, do outro. Isso, o político, por natureza normativo,
tendendo sempre para o estado (Estado) de direito, não pode compreender, a fortiori admiti-lo. Não é mais
decretando o que devem ser a
sociedade e o indivíduo que se consegue entendê-los ou conhecer, em realidade,
suas transformações. De onde o despertar brutal de alguns fenômenos, suscitados
pela afirmação da identidade étnica, pela semelhança
de família, aos quais está atrelada a classe política em seu conjunto”.
(Maffesoli: 21-22).
A sociedade pós-moderna virou
fumos machadianos (delírio social em Machado de Assis) com o capitalismo
globalizado cyber em colapso. Agora trata-se de investigar a gramática dos capitalismos
(CCMc e CNIS) no comando da economia, política e cultura em colapso como
tribalização do mundo.
FERRO, Marc. História das colonizações.
SP: Companhia das Letras. 1996
IANNI, Octavio. A era do
globalismo. RJ: Civilização Brasileira, 1996
MAFFESOLI, Michel. A transfiguração
do político. A tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 1997
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e
escravidão. RJ: americana, 1975
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