sexta-feira, 20 de setembro de 2024

filosofia, ideologia, gramática, Nietzsche, Bataille

 

José Paulo 

 

A GRAMÁTICA barroca se constitui de cogitato (Taminiaux: 28): percepção, representação, raciocínio, juízo etc. O cogitare barroco:

[Nolite cogitare quomodo, aut quid loquamini, dabitur enim vobis in illa hora (Vieira: 71)] se constitui de práticas discursivas como o quid que consiste nas coisas que se dizem e a outra é o quomodo, isto é, o modo como se dizem. Assim é preciso meditar e estudar sobre o que se diz. O dito é sobre qual objeto? O objeto escolhido define uma época. Hegel escolheu o Estado e Marx o capital. O discurso universitário é tudo dizer sobre o objeto. Transformar o objeto e um latifúndio feudal e o professor universitário em proprietário feudal do capital cultural. Marx e Hegel são discurso universitário? Eles disseram tudo sobre os objetos escolhidos? Não!

O objeto [Estado, capital} insistem em aparecer na história como acontecimento com sentido determinado pela gramática do tempo, isto é, como estrutura na conjuntura. Assim, o conceito e fenômeno instituem a gramática das ideias e coisas no campo político conjuntural.

O modo de dizer o fenômeno [como campo político] é a inteligência ou quomodo. A inteligência evita o defeito de dizer pouco e o excesso no dizer, como faz o discurso universitário, em seu gozo feudal infinito, que não para de não funcionar como conhecimento barroco da coisa. Defeito e excesso são a contradição na gramática barroca, extremos no desejo de doar e no desejo de receber. O professor quer doar em excesso e o aluno quer receber de menos. A inteligência consiste em dizer no centro dos extremos do campo político de uma comunidade psíquica linguística como a universidade.

A crise atual da universidade consiste nesse discurso do universitário do tudo dizer, do tudo saber do objeto que não é um fenômeno. Enquanto, as relações técnicas de produção cibernéticas criam e recriam comunidades psíquicas linguísticas do pouco dizer [a juventude do quase nada receber de sentido discursivo não é efeito de uma conspiração da elite globalista], ou do não dizer nada, isto é, o grau zero do discurso barroco.

Vive-se a contradição materialista (que se desenvolveu na época atual) entre aquele que doa o discurso e aquele que o recebe como essência dessa conjuntura heteróclita?

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Nietzsche fala da filosofia como gramática, ele que tinha como profissão universitária a filologia:

“Le philosophe n’aurait-il pas le droit de s’élever au-dessus de la foi qui régit la grammaire? Tous nos respects aux governantes; mais ne serait-il pas temps pour la philosophie d’abjurer le foi des gouvernantes?” (Nietzsche. 1971: 54).

A filosofia do super-homem o que é?

O super-homem é o sentido da terra, da vida, da saúde em um contraponto ao homem que é o sentido do céu, da mortificação e do envenenamento da vida, da doença social. (Nietzsche. 1998: 36; 1971:22).

O homem é um híbrido de planta e animal. (Nietzche. 1998: 36). Esse conceito da filosofia gramatical do super-homem [que não é o supra-homem] vai definindo o campo político como resuperfície (superfície superfície) e superfície profunda (Nietzsche. 1977:15,12) como profundidade:

O Sol e o filósofo do super-homem descem a superfície profunda da escuridão:

“Por isso, é preciso que eu baixe às profundezas, como fazes à noite, quando desapareces atrás do mar, levando ainda a luz ao mundo de baixo, ó astro opulento”. (Nietzsche. 1998: 33).

Hannah Arendt fala das aparências de semblância autênticas e inautênticas que na filosofia gramatical diz respeito aos fenômenos do campo político conjuntural: todo fenômeno é a luz do sol da tela verbal narrativa [estrutura] na conjuntura, no contingente e no acaso:

“De acordo com a distinção de Portmann faz entre aparências autênticas e inautênticas, poder-se-ia falar de semblâncias  autênticas e inautênticas. Estas últimas, miragens como a de alguma fada Morgana, se desintegram espontaneamente ou desaparecem com a inspeção mais cuidadosa; as primeiras, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pala qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não possa mudar de moradia. Aqui estamos lidando com aquelas <ilusões naturais e inevitáveis> de nosso aparelho sensorial, a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão”. (Arendt: 31).

A tela verbal metafísica gera um discurso de aparências de semblância autênticas e inautênticas como objetos, coisas, fenômenos do campo político conjuntural. Uma época histórica pode ser vista a partir de suas ilusões de comunidade psíquica linguística conjuntural. A felicidade é uma aparência de semblância de uma época passada, da antiguidade grega do ethos [ética a Nicômaco] ao século XX - de Freud:

“Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade tal como, na verdade, o próprio princípio de prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio de realidade -, que um homem pense ser ele próprio, simplesmente porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento , e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano”(Freud: 95-96).

A felicidade pode ter sido trocada pela comunidade psíquica linguística de narcose:

“As pessoas receptivas à influência da arte não podem atribuir um valor alto de mais como fonte de prazer e consolação da vida. Todavia, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo suficiente forte para nos levar a esquecer a aflição real”. (Freud: 100).

Nietzsche anteviu uma época sem a forma de gosto da felicidade:

“Vede, eu vos ensino o super-homem: ele é o mar onde pode submergir o vosso grande desprezo”.

“Que podeis experimentar de mais elevado? A hora do grande desprezo. A hora em que também a vossa felicidade se converte em náusea, do mesmo modo que a vossa razão e vossa virtude”

“A hora em que dizeis: ‘Que me importa a minha felicidade! Não passa de miséria, sujeira e mesquinha satisfação. Mas, justamente, é minha felicidade que deveria justificar a existência! (Nietzsche. 1998: 37).

Na comunidade psíquica linguística, a forma estética (forma de juízo de gosto} evita o caos no mundo do cérebro humano:

“Mas o caráter do mundo é, ao contrário, não pelo fato de ausência de uma necessidade, mas pelo de uma ausência de ordem, de encadeamento de forma, de beleza, de sabedoria, em resumo, de toda a estética humana [...]. Ora, como poderemos permitir-nos censurar ou louvar o universo! Defendamo-nos de lhe censurar uma falta de coração ou de razão, ou o contrário dessas coisas: não é nem perfeito, nem belo, nem nobre, e não quer se transformar-se em nada disso; não procura de forma alguma imitar o homem! Não é tocado por nenhum dos nossos juízos estéticos e morais. Não possui qualquer instinto de conservação, não possui qualquer instinto e ignora toda a espécie de lei. Defendemo-nos de dizer que eles existem na natureza. Essa só conhece necessidades: nela não há ninguém que ordene, nem obedeça, ninguém que infrinja”. (Nietzsche1982:138).

A relação entre comunidade psíquica linguística e mundo externo tem na filosofia das afecções de Aristóteles um sentido excepcional para se entender a vida na época atual.     

Os fenômenos da comunidade psíquica linguística são as afecções:

“Bem! parece que todas as afecções da alma estão ligadas ao corpo: ira, educação, medo, piedade, valentia, alegria, assim como o amor e o ódio, já que quando essas afecções aparecem, também o corpo é  afetado”. (Aristoteles: 109).

As afecções se expressam no campo político psíquico como: forma ideológica, forma gramatical e forma de juízo de gosto. Marx fez da forma ideológica da consciência o fenômeno soberano na comunidade psíquica linguística da sociedade e da política. Assim, é necessário falar, antes de tudo, da relação ente filosofia e ideologia.

Marx:

“Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas ´pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim”. (Marx. 1974: 136).

No “O 18 Brumário de Luís Bonaparte”, Marx fala das formas ideológicas – como espectro- no cérebro dos vivos. (Marx. 1974:335)).

A relação entre filosofia e ideologia se encontra na 11 Tese sobre Feuerbach:

“Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. (Marx. 1974: 59).

A filosofia é uma forma ideológica no cérebro. Ora, ela é também uma forma de gramática a partir da qual se expressam as afecções:

“A euforia experimentada por Nietzsche ao sair de cada uma d suas crises, de 1877 a 1881, o leva cada vez mais a escrutar as forças que se exprimem através das perturbações do seu organismo [...]. o testemunho ativo ou passivo dessas forças: as mesmas que acabam de dar uma trégua ao seu cérebro, ao seu organismo: ou sejam, a ira, a ternura, a impaciência ou a calma, num contexto de motivos e circunstâncias já consagrados pelos termos usuais. A opressão ou a distensão, o afluxo ou o refluxo dessas forças traduzidas em palavras, em imagens, em raciocínios, em refutações, encontram nisso uma saída apenas aparente; logo chega o momento em que elas se confundem, se enredam, se tornam obscuras, foram; despachadas, desviadas para longe de um objetivo; nem a história, nem a ciência, nem a investigação , nem mesmo as formas de arte convergiam para esse objetivo; a redação é interrompida, as palavras apagadas e uma nova e espantosa agressão se exerce sobre seu cérebro”. (Klossowski:35).

A relação entre comunidade psíquica linguística e doença/saúde substitui o problema da moralidade como forma ideológica na filosofia como gramática:

“Para Nietzsche, a questão moral de saber o que é verdadeiro ou falso, justo ou iníquo é colocada agora nos seguintes termos: o que é mórbido ou são? O que é gregário ou singular? “

“[...]”

“Pareceu igualmente revelador a Nietzsche , sujeito à variações valetudinárias, sempre temeroso de que seu próprio pensamento se ressentisse dos seus estados de depressão, sondar esse ângulo, aquilo que os pensadores anteriores a ele tinham produzido como pensamento: a relação deles com a vida, com o ser vivo, ou seja, graus de altas e quedas de intensidade, sob todas as formas de agressividade, de tolerância, de intimidação, de angústia, de necessidade de solidão ou, ao contrário, do esquecimento de si mesmo, em meio à efervecência de uma época”. (Klossowski: 26). A comunidade psíquica linguística é criação e recriação de sentido a partir do caos cerebral:

“[...]. Toda significação continua sendo função do Caos gerador de sentido”.

“A intensidade obedece a um caos movediço sem começo nem fim”.

‘Desse modo, aparentemente no interior de cada um, move-se uma intensidade cujo fluxo e refluxo formam as flutuações significantes ou insignificantes do pensamento que, de fato, não pertence a ninguém, não têm começo nem fim”. (Klossowski: 82).

A comunidade psíquica linguística é uma nova espécie de conceito além de um conceito como sociedade. Ela insiste e resisti na relação com o Estado no campo político conjuntural, sendo ela um conceito transcendental que atravessa as épocas com essências eternas, isto é, afecções da alma/corpo:

“Se porém, contrariamente a esse elemento ondulante, cada um de nós forma um conjunto fechado e aparentemente delimitado, isso se dá em virtude desses vestígios de flutuações significantes: ou seja, um sistema de signos que chamarei aqui de código dos signos cotidianos. Onde começam, onde terminam nossas flutuações para que esses signos nos permitam significar, falar, tanto conosco quanto com o outro, sobre isso nada sabemos, a não ser que, nesse código, um signo responde sempre ao grau de intensidade, ora mais alto, ora mais baixo; ou seja, o eu, o pronome, sujeito de todas as nossas frases. É graças a esse signo, que, no entanto, não é nada, senão um vestígio de flutuação sempre variável, que nós nos constituímos como algo que pensa, que temos um determinado pensamento – embora não saibamos nunca ao certo se não seriam os outros que pensam e continuam a pensar em nós; mas o que é esse outro que forma o exterior, em relação a esse interior que acreditamos ser? Tudo se resume a um só discurso, ou seja, á flutuações de intensidade que correspondem ao pensamento de cada um e de ninguém”. (Klossowski: 83).  

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O que insiste e resiste ao tempo das épocas é a comunidade linguística pasíquica-indivíduo, -polis, -sociedade, -Estado. A comunidade é constituída por afecção, e formas: ideológica, gramatical, de gosto. As formas políticas são condensação das três formas supracitadas. Gramaticais: democracia, tirania, oligarquia. Nietzsche fala delas no <Zaratustra> no mesmo tempo narrativo de sua filosofia. Então, vejamos.

No nosso tempo, a comunidade psíquica linguística do século XX [últimos homens] resiste no século XXI ao lado da comunidade psíquica linguística do século XXI: extra-territorial homem ou super-homem ou homem virtual cibernético.

Nietzsche:

“O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem – uma corda sobre um abismo”. (Nietzsche. 1998: 38).

A filosofia do século XXI cria e recria o campo de ideologias caminhando na corda homem sobre o abismo, a escuridão barroca da superfície profunda do campo político conjuntural:

“Quero ensinar aos homens o sentido de seu ser: que é o super-homem, o raio que rebenta da negra nuvem chamada homem”

“longe deles e o sentido do que eu falo não diz nada aos ses sentidos. Ainda sou, para os homens, um ponto intermédi8o entre um doido e um cadáver”. (Nietzsche. 1998: 44).

O cadáver é uma afecção que se tornou universal a partir da comunidade psíquica linguística dos jesuítas:

“O risco de vida, é aí que está o essencial do que podemos chamar de ato d dominação, e seu garante não é outro senão aquele que, no Outro, é o escravo, como o único significante perante o qual o senhor se sustenta como sujeito. O apoio que nele encontra o senhor não é outra coisa senão o corpo do escravo, no que ele é perinde ac cadáver, digamos, para empregar uma formulação que não chegou à toa ao primeiro plano da vida espiritual. Mas o escravo, assim, está apenas no campo em que sustenta o senhor como sujeito”. (Lacan. S. 16: 370).   

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Nietzsche pode estar falando da comunidade psíquica linguística com dois extremos: o filósofo e o tirano?

Quem o filósofo da atualidade adora?

Nietzsche:

“Amo aquele que justifica os seres futuros e redime os passados: porque quer perecer dos presentes”. (Nietzsche. 1998: 39).

Os espectros ideológicos do futuro serão legitimados, os espectros do passado perdoados e as formas gramaticais do presente são mortais para os últimos homens:

“Amo aquele cuja alma é tão transbordante, que se esquece de sim mesmo e que todas as coisas estão nele: assim, todas as coisas tornam-se o seu ocaso”.

“Amo aquele cujo espírito e coração são livres: assim, nele, a cabeça é apenas vísceras do coração, mas o coração o arrasta para o ocaso”. (Nietzsche. 1998: 39).

O filósofo da atualidade é uma comunidade psíquica linguística que no qual todas as coisas do mundo nele enunciam o seu ocaso. O que é uma comunidade psíquica linguística com espírito e afeto livres? Mas nela o cérebro é a víscera do afeto, no cérebro se encontra as afecções/ vísceras do campo de afetos, e o campo de afetos o conduzem para o seu ocaso?  Há a comunidade psíquica linguística -filósofo em contradição com a comunidade psíquica linguística da forma de governo do tirano? Aquela vive o ocaso e esta quer se eterna?

Leo Strauss comparou a tirania antiga com a do século XX:

“Il n’est pas nécessaire de faire preuvre de beaucoup d’attention ou de réflexion pour s’apercevoir qu’il y a une différence essentiel entre la tyrannie telle que l’ont analysée les classiques et celle de notre temps. La tyrannie d’aujourd’hui, contrairement á la tyrannie classique , dispose de la <technologie> et de l’<ideologie>. D’une façon plus Générale, elle présuppose l’existence de la <Science>, c’est-à-dire d’une interprétation particulière de la science ou d’une certaine science. Inversement, la tyrannie classique, contrairement à la tyrannie moderne, trouvait en face d’elle, en fait ou virtuellement, une science qui n’avait pas pour but la <conquête> de la nature>, qui ne voulait être ni vulgarisée ni répandue”. (Strauss: 38).

A tirania moderna é vulgarizada e generalizada; a relação dela com o filósofo é substituída pela relação dela com o general intellect gramatical (Bandeira da Silveira; 2022), com a ciência política de Estado como ideologia e técnica, a ciência e a concepção política de mundo moderna como relação técnica de produção de conquista da natureza. Assim, ela tem um começo no campo da ciência natural:

“As coisas não se foram satisfeitas, em todo caso, pela nova matemática. O seu racionalismo depressa se alastra para a ciência da natureza, e cria para esta a ideia, inteiramente nova, da ciência matemática da natureza: a ciência galilaica, conforme, com justiça, foi há muito denominada. Tão logo esta enceta o passo de uma realização bem-sucedida, transforma-se também toda a ideia de filosofia (como ciência do universo, do ente como um todo)”. (Husserl: 16).

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Uma época é um novo começo, um leão que é o <querer> da criança inocente, mas que esquece um dia após o outro, que toma o territorial pelo virtual, como a tirania do general intellect gramatical:

“Mas dizei, meus irmãos, que poderá ainda fazer uma criança, que nem sequer pôde o leão? Por que o rapace leão precisa ainda tornar-se criança? “

“inocência, é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira a si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer <sim>”.

“sim, meus irmãos, para o jogo da criação é preciso dizer um sagrado <sim>: o espírito, agora, quer a sua vontade, aquele que está perdido para o mundo conquista o seu mundo”. (Nietzsche. 1998: 53).

O novo começo inocente insiste como comunidade psíquica linguística-Estado virtual cibernético no sagrado dizer <sim> para o <criminoso>:

“Olhai-os, os bons e os justos! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores, o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador”.

“Olhai-os, os crentes de todas as fés! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores, o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador”.

 “Companheiros, procura o criador, e não cadáveres; nem tampouco, rebanhos e crentes. Participantes na criação, procura o criador, que escrevam novos valores em novas tábuas”.

“[...]”.

Companheiros, procura o criador, e tais que saibam afiar suas foices. Destruidores, serão chamados, e desprezadores do bem e do mal. Mas são eles que farão a colheita e a festejarão”. (Nietzsche. 1988: 47).

A época nietzschiana do super-homem do século XXI se choca com o passado do século XX dos últimos homens na atualidade?  

O diabo romântico de Goethe é uma criatura do Zaratustra? O campo heteróclito é o alfa e o ômega do século XXI? ele se encontra em toda parte?  

Goethe:

“MEFISTÓFOLES

Sou parcela do Além,

Força que cria o mal e faz o bem?

FAUSTO

Que dizes com palavras dúbias, meu herói?

MEFISTÓFOLES

Eu sou aquele que nega e destrói!

E o faço com razão; a obra da Criação

Caminha com vagar para a destruição.

Seria bem melhor se nada fosse criado.

Por isso, tudo aquilo a que chamas pecado,

Ou também <destruição>, ou simplesmente < o mal>

Constitui um elemento eleito e natural”. (Goethe: 59-60).

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A divisão do trabalho cultural entre filosofia e ciência política da Academia, do Liceu, da universidade feudal é distinta da divisão do trabalho no qual a filosofia é uma ideologia em um contraponto agônico com a ciência da história ou da ciência política de Marx. Porém, a universidade americana criou um a ciência política na qual a política é um sistema autotélico em relação à sociedade e o Estado. Nietzsche é da linhagem doas antigos e medievais, dos renascentistas e barrocos. A ciência política materialista/dialética (Bandeira da Silveira: 2024a; 2024b) é antessala de uma filosofia da atualidade além da pós-modernidade. 

Nietzsche é da época do novo Estado mercantilista europeu como comunidade psíquica linguística alemã:

430. Cultura e casta – Uma cultura superior pode surgir apenas onde houver duas diferentes castas na sociedade: a dos que trabalham e a dos ociosos, os que são capazes de verdadeiro ócio, ou, expresso de maneira mais forte: a casta do trabalho forçado e a casta do trabalho livre. A consideração da partilha da felicidade não é essencial, quando se trata de produzir uma cultura superior; mas de todo modo a casta dos ociosos é mais capacitada para sofrer, sofre mais, seu gosto em existir é menor, e sua tarefa, maior”. (Nietzsche. 2000:238; 1988:264).

A casta superior do trabalho livre é o general intellect gramatical e na atualidade se tornou uma pequena burguesia proprietária de capital cultural na sociedade do capital feudal e no Estado territorial ou virtual. A concepção política de mundo dessa classe social estabelece o campo das ideologias do século XXI nos países desenvolvidos no Ocidente e Oriente. A diferença entre a casta nietzschiana do trabalho livre a pequena burguesia cultural de hoje é o gosto de existir eternamente para a última, tela de gosto expressa na comunidade psíquica linguística cyber:

“SE acontece uma troca entre as duas castas, de modo que as famílias e os indivíduos mais obtusos e menos intelectuais da casta superior são rebaixadas para a inferior e os homens mais livres desta têm acesso à superior, atinge-se um estado além do qual se vê apenas u mar aberto dos desejos indefinidos. – Assim nos fala cada voz, cada vez mais distantes, dos tempos antigos; mas onde ainda há ouvidos para escutá-la”. (Nietzsche. 2000: 238)  

No Brasil, o presidente Lula criou um sistema universitário estatal para incluir as classes baixas de: branco pobre, negro e índio. Tomando a si como modelo [que veio da pobreza do Sertão e se tornou o Príncipe moderno], viu na formação de uma comunidade psíquica linguística (CPL) dos de cima e dos debaixo o caminho para retirar o Brasil do subdesenvolvimento do capital feudal territorial. Viu aí a fabricação de uma CPL-aparelho de hegemonia nacional-popular barroco, um fenômeno que, como diz Nietzsche- faz analogia real-concreta com a antiguidade da politeia

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A gramática dialética de Nietzsche estabelece uma comunidade psíquica linguística transbordante de alegria e otimismo em uma aporia à gramática metafísica pessimista:

“Nossas mentes rechaçam a ideia do nascimento de uma coisa que pode nascer de uma coisa contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do verdadeiro da vontade de erro; o ato desinteressado do egoísmo ou a contemplação pura do sábio, da cobiça. Tal origem parece impossível: pensar assim parece próprio de loucos. As realidades mais sublimes devem ter outra origem, que lhes seja peculiar5. Não pode ser sua mãe esse mundo efêmero, falaz, ilusório e miserável, esta emaranhada cadeia de ilusões, desejos e frustrações. No seio do ser, no qual não morrerá nunca, num deus oculto, na <coisa em si> é onde deve se lobrigar seu princípio, ali e em nenhuma outra parte”.

“Este é o preconceito característico dos metafísicos de todos os tempos, este gênero de apreciação se encontra na base de todos seus procedimentos lógicos”. (Nietzsche. 1981: 17-18).

A concepção política de mundo da comunidade psíquica linguística burguesa americana é a metafísica determinista. Tal gramática do mundo é a força histórica que mantem o país no subdesenvolvimento, como descobriu o presidente Lula. A classe superior cultural tem a imagem textualizada das massas populares como algo abjeto:

“461. Príncipe e deus. – Frequentemente os homens se relacionam com seus príncipes como fazem com seu deus, o príncipe tendo sido muitas vezes o representante do deus, seu sumo sacerdote, ao menos. Tal sentimento, quase inquietante, de reverência, medo e vergonha, já se tornou e conti8nua se tornando mais fraco, mas ocasionalmente se inflama e se liga a pessoas poderosas. O culto ao gênio é um eco dessa veneração a príncipes e deuses. Em todo lugar onde s busca elevar indivíduos a um plano sobre-humano, surge também a tendencia a imaginar camadas inteiras do povo como sendo mais baixas e grosseiras do que são na realidade”. (Nietzsche. 2000: 248).

O príncipe e a massa popular são os dois extremos universais virtuais do campo político da civilização; a veneração ao príncipe e deuses [virtuais] são fenômenos da realidade virtual do campo político como essência. No contingente da conjuntura, pode ser que os agentes políticos não vejam a realidade virtual sagrada e não se guiem pelas essências, mas estas acabam por determinar a prática política em situações de crise catastrófica.  

A forma de governo presidencialista das Américas se pretende, é vivida como positivista, realidade de puros fatos positivos, isto é, sem fenômeno transcendental.        

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O próprio Marx fala da política como realidade transcendental:

“A Assembleia Nacional eleita está em relação metafísica com a nação ao passo que o presidente eleito está em relação pessoal com ela. A Assembleia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os múltiplos aspectos do espírito nacional, enquanto que no presidente esse espírito nacional encontra a sua encarnação. Em comparação com a Assembleia, ele possui uma espécie de direito divino; é presidente pela graça do povo”. (Marx. 1974: 346).

Ao falar do “grande homem” [para os franceses] Napoleão III, Marx vê o espírito nacional como a tela metafísica verbal narrativa do campo político francês. Aqui nessa “frase” se encontra a intervenção da filosofia de Marx em sua ciência política da plurivocidade de tela gramatical narrativa. (Faye:150).

Nietzsche fala também do grande homem

“460. O grande homem da massa – É fácil dar a receita para o que a massa denomina o grande homem. em qualquer circunstância, arranjem-lhe algo que lhe seja agradável, ou lhe ponham no cérebro que isto ou aquilo seria muito agradável e lhe deem tal coisa. Mas de modo algum imediatamente: deve-se lutar por isso com grande esforço, ou parecer lutar. A massa deve ter a impressão de que há uma força de vontade poderosa e mesmo invencível; ao menos ela deve parecer que está presente. Todos admiram a vontade forte, pois ninguém a tem, e cada um diz a si mesmo que, se tivesse, não haveria mais limite para si e seu egoísmo. Vendo-se que uma tal vontade forte produz algo bastante agradável à massa, em vez de escutar os apelos de sua própria cobiça, as pessoas ficam novamente admiradas e felicitam a si mesmas. Quanto ao resto, ele deve ter todas as qualidades da massa; quanto menos se envergonhar ela diante dele, tanto mais popular ele será. Logo, ele deve ser violento, invejoso, explorador, intrigante, adulador, servil, arrogante, tudo conforme as circunstâncias. (Nietzsche. 2000:248).

Na relação grande homem e massa, a política é um jogo de luta por conservar, defender, ou desintegrar imagens textualizadas do presidente da república, por exemplo.  Na época nietzschiana atual, a  grotesca subjetividade da alma da massa é explorada como imagens textualizadas na tela do cinema cyber. Aristóteles fez a filosofia do grotesco da multidão, massa que ele designou como bárbara em contradição com civilizado:

“Algumas coisas são agradáveis por natureza, e destas umas são irrestritamente agradáveis, enquanto outras o são em relação a determinadas classes de animais ou de pessoas; por outro lado, outras não são naturalmente agradáveis, mas algumas destas se tornam agradáveis por causa de aberrações, outras por causa de hábitos e outras ainda por causa de taras”.

“Sendo assim, é possível descobrir em relação a cada uma das espécies da segunda classificação disposições de caráter similares às identificadas a respeito do primeiro caso; refiro-me às disposições bestiais, como no caso da mulher que, segundo dizem, abria o ventre das mulheres grávidas e devorava os fetos, ou das coisas com que, de acordo com certas narrativas, algumas das tribos selvagens do litoral do mar Negro tinham o hábito deleitar-se – com alimentos crus ou carne humana, ou com a troca de crianças entre as tribos para serem seviciadas em suas festas – ou como na história que se conta de Fálaris”. (Aristóteles. 1992: 137).

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O grotesco é a tela de gosto do campo heteróclito sagrado, virtual; um conceito da teologia secular. (Funkenstein: 1-3). A tela grotesca tem uma versão fílmica no “            Gabinete do dr. Caligare”. UM conceito secular não teológico de heteróclito [como comunidade psíquica linguística-sociedade epocal] se encontra em Bataille:

“É porque a sociedade heterogênea dos sem eira nem beira de todos os países, os ‘imigrantes’ de hoje, para não falar, como outrora, dos ‘proletários’, ainda precisa acreditar nisto, neste Rei imortal, habitada como está por uma convicção inextinguível: não é possível que aquele que exerce o poder efetivo de punir ou de perdoar não se situe em uma esfera tão heterogênea como aquela em que frequentemente se encontram, excluídos tal como são de toda prosperidade e situados abaixo do que se costuma chamar, depois da morte do rei, de um ‘estado de direito’, supostamente protetor universal dos sujeitos que continuam, contudo, pensando que não saberiam viver de forma justa sem Rei, uma vez que é graças somente a ele que eles poderiam dispor do famoso habeas corpus”. (Nassif: 88).

A tela verbal do heteróclita se encontra em Bataille. Vejam com os próprios olhos as imagens textualizadas do grotesco na relação com o belo, na comunidade psíquica linguística-espécie humana:

“A beleza não deixa de ser subjetiva, variando de acordo com a inclinação dos que a apreciam. Em certos casos, podemos crer que certos animais a apreciam como nós, mas a hipótese ´é temerária. Retenho apenas que, na apreciação da beleza humana, deve intervir a resposta dada ao ideal da espécie. Este ideal varia, mas é dado num tema físico suscetível de variações, sendo algumas delas muito infelizes. A margem de interpretação pessoal não é tão grande. Seja como for, eu devia reter um elemento muito simples, que intervém na apreciação tanto da beleza animal como na beleza humana. [A juventude, em princípio, soma-se a esse elemento primeiro].

‘Chega a um elemento que, apesar de não aparecer claramente, não deixa de intervir no reconhecimento da beleza de um homem ou de uma mulher. Um homem, uma mulher são em geral julgados belos na medida em que suas formas estão distantes da animalidade”.(Bataille. 1987: 134).

  A gramática do belo e do grotesco [que vai além do feio e pode incluir o agradável] tem uma verdade?

A imagem da verdade:

“Do que eu disse, parece-me necessário reter uma verdade indubitável. Mas a verdade contrária, que só aparece num segundo momento, não é menos certa. A imagem da mulher desejável, que se nos oferece como tal, seria insipida – ela não provocaria o desejo – se ela não anunciasse, ou não revelasse, ao mesmo tempo, um aspecto animal secreto, de uma enorme sugestão. A beleza da mulher desejável anuncia suas partes pudendas: justamente suas partes pilosas, suas partes animais. O instinto inscreve em nós o desejo dessas partes. Mas, para além do instinto sexual, o desejo erótico responde a outros componentes. A beleza negadora da animalidade, que desperta o desejo, vai dar na exasperação do desejo, na glorificação das partes animais”. (Bataille1987. 134).

A comunidade psíquica linguística-gosto mais costumes é a essência do grotesco, do heteróclito. O iluminismo foi a preocupação de evitar o grotesco e o heteróclito no campo político europeu do modernismo moderno. As duas grandes guerras mundiais do século XX foram a resposta da comunidade psíquica linguística [do grotesco e do heteróclito] europeias  ao iluminismo da glorificação do belo da civilização policiada:  

“Mesmo que as situações variem de acordo com os gostos e os costumes, uma coisa é certa: a beleza ( a humanidade} de uma mulher ajuda a tornar menos sensível – e chocante – a animalidade do ato sexual. O que importa em primeiro lugar é a beleza, visto que a fealdade não pode ser maculada, e a essência do erotismo é a mácula. A humanidade, significativa do interdito, é transgressão no erotismo. Ela é transgredida, profanada, maculada. Quanto maior a beleza, maior a conspurcação. (Bataille. 1987: 136).     

Bataille fala da relação entre belo (elite, rico), agradável e o grotesco (classes baixas, pobre) como guerra social por imagens a partir da comunidade psíquica linguística- cristã:

‘Com o cristianismo a alternância da glorificação e de angústia, de suplícios e de orgias, constituindo a vida religiosa, é levada a se conjugar por um tema mais trágico, a se confundir com uma estrutura social doente, dilacerando-se com a mais suja crueldade. O canto de triunfo dos cristãos glorifica Deus porque ele entrou no jogo sanguinolento da guerra social, porque ele ‘precipitou as potências do alto de sua grandeza e exaltou os miseráveis’. Seus mitos associam a ignomínia social, a desgraça cadavérica do supliciado ao esplendor celestial. É assim que o culto assume a função total de oposição de forças de sentidos contrários, repartida até então entre os ricos e os pobres, dos quais uns consagram os outros à perda. Ele se liga estreitamente ao desespero terrestre, sendo ele próprio apenas um epifenômeno do ódio sem medida que divide os homens, mas um epifenômeno que tende a se substituir ao conjunto dos processos divergentes por ele resumidos. [...] a religião não procura de modo algum fazer desaparecer o que outros consideraram como a chaga humana: sob sua forma imediata, na medida em que seu movimento permaneceu livre, a religião, ao contrário, se atola em uma imundice indispensável a seus termos extáticos”.

‘O sentido do cristianismo é dado no desenvolvimento das consequências delirantes da despesa de classes, em uma orgia agonística mental praticada às expensas da luta real. (Bataille. 1975: 43).

A guerra barroca dos abjetos contra os nobres é parte da constituição da tela verbal narrativa da comunidade psíquica linguística-espécie humana:

“Todavia, por mais importância que tenha adquirido na atividade [prática política] humana a humilhação cristã é apenas um episódio na guerra histórica dos abjetos contra os nobres, dos impuros contra  os puros. Como se a sociedade consciente de seu dilaceramento intolerável tivesse ficado por algum tempo inteiramente embriagada, a fim de usufruir disso sadicamente: a embriaguez mais forte não esgotou as consequências da miséria humana e, com as classes exploradas, opondo-se às classes superiores com uma maior lucidez, nenhum limite concebível pode ser determinado para o ódio. Só, na agitação histórica, a palavra Revolução domina a confusão habitual e carrega com ela promessas que respondem às exigências ilimitadas das massas: os patrões, os exploradores, cuja função é criar formas desprezadoras que excluem a natureza humana – tal como essa natureza existe no limite da terra, isto é, da lama -, uma simples lei de reciprocidade exige que se espere que sejam entregues ao medo, na grande noite em que suas belas frases serão cobertas pelos gritos de morte das insurreições. Está aí a esperança sanguinolenta que se confunde a cada dia com a existência popular e que resume o conteúdo insubordinado da guerra de classes”. (Bataille. 1975: 43)    

        

 

  

 

           

 

 

 

      

 

 

            

 

 

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