segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Do século 20 ao 21 - Husserl com Barthes

 

José Paulo 

 

 

A passagem do século XX para o século XXI ocorre na relação do Estado feudal virtual com o Estado territorial nas formações socais e políticas territoriais. O século XX invadiu o século XXI com seu vocabulário ideológico de ilusões como a divisão ideológica do campo político em espaços como direita, esquerda e centro. Husserl deixou uma orientação ou atitude fenomenológica pura para tratar com o fenômeno supracitado:

“O fato de que a fenomenologia tenha de lidar com a <consciência>, com todas as espécies de vividos, com atos, com correlatos de atos, não altera em nada tal situação. Ver isso com clareza exige, sem dúvida, não pequeno esforço dos hábitos dominantes de pensar. Colocar fora de circuito todos os atuais hábitos de pensar, reconhecer a pôr abaixo as barreiras espirituais com que eles restringem o horizonte de nosso pensar, e então apreender, em plena liberdade de pensamento, os autênticos filosóficos, que deverão ser postos de maneira inteiramente nova e que somente se tornarão acessíveis num horizonte totalmente obstruído - são exigências duras”. (Husserl. 2006: 27).

A ciência política materialista dialética começa na Grécia da antiguidade- como ciência de Estado, com Platão e Aristóteles. No século XX, ela se torna uma ciência política universitária do americanismo do mercantilismo corporativo/empresarial militar do Estado suicidário (Virilio). Na América Latina, os países subdesenvolvidos dominados pela gramática geopolítica/ditatorial dos EUA, copiaram os esquemas mentais e vocabulário do general intellect gramatical americano impuro. (Bandeira da Silveira. 2022ª).    Esse cosmopolitismo subdesenvolvido rendeu de um dramaturgo barroco carioca a alcunha de <cachorro vira-lata> para a nossa elite intelectual bandeirante, principalmente paulistana e da USP. 

Husserl:

“O que, com efeito, torna tão extraordinariamente difícil a assimilação [gramaticalização]  da essência da fenomenologia, a compreensão do sentido peculiar de sua problemática e de sua relação com todas as outras ciências (e em especial com a psicologia) é que , além de tudo isso, é necessário uma nova ,maneira d se orientar [uma nova atitude fenomenológica] inteiramente diferente da atitude ou orientação natural na experiência e no pensar. Aprender a se mover livreme3nte nela, sem nenhuma recaída nas velhas maneiras de se orientar, aprender a ver, a diferenciar, descrever o que está diante dos olhos, exige, ademais, estudos próprios e laboriosos”. (Husserl. 2006: 27).

O Brasil é um país subdesenvolvido no campo das gramáticas da realidade dos fenômenos do século XXI.

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A ciência política materialista existe em função do conhecimento da conjuntura. Poulantzas teceu um conceito de conjuntura:

“O conceito de conjuntura está situado, em Lenin, no campo das práticas e da luta de classes. A originalidade historicamente individualizada de uma formação social que é o objeto da prática política é constituída em primeiro lugar pela ‘ação combinada das forlas sociais. A homogeneidade de campo da conjuntura consiste na consideração das práticas de classe – em particular das práticas políticas de classe -, relativas à sua ‘ação’ sobre a estrutura, como forças sociais’. (Poulantzas. 1977: 90).

A conjuntura é uma tela gramatical em um campo político estrutural. A prática política é ação sobre a estrutura política, ou seja, sobre o Estado. A conjuntura tem um ser individual <contingente>:

“Ciências políticas são ciências de <fatos>. Os atos fundantes da experiência põem o real individualmente, ele o põe como espaço-temporalmente existente, como algo que está neste momento do tempo, tem esta sua duração e um conteúdo de realidade que, por sua essência, poderia igualmente estar em qualquer outro momento do tempo; põem-no, por outro lado, como algo que está neste lugar, com esta forma física (por exemplo, está dado juntamente com um corpo desta forma), embora este momento real, considerado segundo sua essência, pudesse igualmente estar noutra forma qualquer, em qualquer outro lugar, assim como poderia modificar-se, quando é faticamente imutável, ou poderia modificar-se de modo diferente daquele pelo qual faticamente se modifica. Dito de maneira bem geral, o ser individual é, qualquer que seja sua espécie, <contingente>. Ele é assim, mas poderia, por sua essência, ser diferente”. (Husserl. 2006: 34-35).      

O ser individual do conceito de conjuntura de Poulantzas é a sociedade classes sociais como prática política que transforma – pela luta de classes – o Estado na conjuntura. O ser individual é contingente, mas por sua essência poderia ser diferente em outra conjuntura. O que é a essência? Pode ser uma tela gramatical? Qual espécie de tela gramatical? de significados sociais contingentes narrativos - conjunturais - que não se repetem? Morrem em sua singularidade? Não são comparáveis ou análogos a outros significados contingentes em um outro espaço/temporal?

Husserl:

Um objeto individual não é meramente individual, um este aí!, que não se repete; sendo <em sim mesmo> de tal e tal índole, ele possui sua especificidade, ele é composto de predicáveis essenciais que têm de lhe ser atribuídos (<enquanto ele é como é em si mesmo>), a fim de que outras determinações secundárias , relativas, lhe possam ser atribuídas [...]. Um outro indivíduo também pode ter tudo o que faz parte da essência de um indivíduo, e generalidades eidéticas máximas, do tipo que acabamos de indicar nos exemplos, circunscrevem, <regiões> ou <categorias> de indivíduos”. (Husserl. 2006: 35).

Portanto, há regiões de indivíduos como generalidades eidéticas máximas:

“O sentido dessa contingência, entretanto, que ali se chama facticidade, limita-se por ela ser correlativamente referida a uma necessidade, que não significa a mera subsistência fática de uma regra válida de coordenação dos fatos espaço-temporais, mas possui o caráter de necessidade eidética e, assim, referência à generalidade eidética. Se dissemos que <por sua essência própria> todo fato poderia ser diferente, com isso já exprimíamos que faz parte do sentido de todo contingente ter justamente uma essência e, por conseguinte, um eidos a ser apreendido em sua pureza, e ele se encontra sob verdades de essência de diferentes níveis de generalidade”. (Husserl. 2006: 35).

A conjuntura é regida por uma plurivocidade de tela gramatical que se constituem como essência eidética na história da civilização política da sociedade de classes e de Estado lacaniano. Este existe em todas as conjunturas faticamente, e assim, sua essência precisa ser definida na dialética materialista da contradição principal entre o dominante e o dominado que são parte da stásis ou pólemos (Derrida.1994 :110-111), isto é, na luta política ou guerra feudal do dominante [ou guerra barroca do dominado] pela distribuição da mais-valia pública ou plus-de-jouir. (Bandeira da Silveira. 2022b: cap. 12).           

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Alfred Stepan fala da gramática eidética liberal, isto é, sem significado contingente individualizado, a não ser :o mercado no comando do Estado:
“No enfoque pluralista-liberal a preocupação normativa, empírica e metodológica é com os indivíduos que, buscando seus interesses individuais, econômicos e políticos, compõem junto a sociedade. Na teoria pluralista, os indivíduos podem se organizar em grupos, mas como eles todos têm uma variedade de interesses, tendem a se associar a grupos numerosos e diferentes cujos interesses se cruzam. Um pressuposto metodológico e normativo tanto entre os pensadores políticos econômicos na tradição (gramática} pluralista-liberal é que é indesejável usar o conceito de bem comum”. (Stepan: 31).

O Estado militar de 1964 seguiu a gramática liberal em um contexto subdesenvolvido [conjuntura]. Assim a gramática eidética liberal adquire uma contingência individualizada, que parece ser a de um Estado liberal-mercantilista:

“A questão então é, não que a sociedade seja realmente autorreguladora, mas que se pressupõe que o mecanismo de mercado só seja autorregulador se o Estado fornecer as infraestruturas administrativa, institucional e fiscal indispensáveis, neutras e imparciais para o capitalismo funcionar. Esta é, na verdade, uma tarefa bastante grande para o Estado realizar em qualquer sociedade e, longe de ser automática, seu desempenho exige grande habilidade e poder político. Quando nos voltamos para a tarefa dos países desenvolvidos tardios, o fato deles serem economias caudatárias torna muitas das despesas da infraestrutura indispensável ‘não-lucrativas para qualquer indivíduo’, e o papel do Estado mais decisivo. Desde 1964 o Brasil, por exemplo, tem sido considerado em grande parte como seguindo um modelo de desenvolvimento liberal de mecanismo de mercado. Apesar disso Roberto Campos, um importante arquiteto [gramático ditatorial do liberal/mercantilismo} econômico do regime, acredita que, a fim de fazer o mecanismo de mercado funcionar, eram necessários investimentos e intervenção do Estado {liberal/mercantilista ditatorial subdesenvolvido] em larga escala e sistemáticos em quase todos os aspectos das estruturas econômicas e especialmente sociais do país. A última década de domínio do mecanismo de mercado no Brasil levou assim não tão paradoxalmente a uma das épocas mais importantes de expansão do objetivo do poder de Estado na história do Brasil”. (Stepan: 33).

Com a mundialização do Estado mercantilista/liberal feudal a partir da Ásia ocorre a transição do século XX para o século XXI; tal fenômeno consiste no ocaso do Estado do capital capitalista e a entrada por uma porta feudal do campo político mundial do Estado feudal mercantilista/liberal territorial/nacional do dominado na China condensado na pequena burguesia do general intellect gramatical de 500 milhões de indivíduos:

 “A luta de classe do general intelect contra o capital desintegrará a gramática do neoliberalismo. Esta desintegração vai sendo acompanhada por uma decomposição do campo das ideologias do capital. No lugar deste, se erguerá um campo de ideologias do general intelecto”. (Bandeira da Silveira. 2022ª: cap. 9).

O Brasil vai aos trancos e barrancos sendo atropelado pelo campo de ideologias do século XXI. Todavia, o velho século XX resiste com seus espectros ideológicos do desenvolvimentismo e liberalismo puro na sociedade do rico.     

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Lacan:

‘Mais de uma coisa no mundo é passível do efeito do significante. Tudo o que está no mundo só se torna fato, propriamente, quando com el se articula o significante. Nunca, jamais surge sujeito algum até que o fato seja dito”. (Lacan. S. 16: 65).

Ortega e Gasset:

“<Todo fato é já teoria>, Diz Goethe”. (Hegel: 23).

A tela gramatical do significante lacaniano diz o que é o fato:

“<Essência> designou, antes de mais nada, aquilo que se encontra no ser próprio de um indivíduo como o que ele é. [comme son <quid> (sein Was]. Mas cada um desses <o que ele á, pode ser <posto em ideia>. A intuição empírica ou individual pode ser convertida em intuição de essência (ideação) – possibilidade que também não deve ser entendida como possibilidade empírica, mas como possibilidade de essência. O apreendido intuitivamente é então a essência pura correspondente ou eidos, seja esse a categoria suprema, seja uma particularização dela, daí descendo até a plena concreção“. (Husserl. 2026: 35-36; 1950: 19-20).

O eidos da tela gramatical sem significado contingente se atualiza como efeito na conjuntura como fato do campo político textualizado em imagens de concreção:

“A essência (eidos) é uma espécie de objeto [gramática do fenômeno ou fato]. Assim como o que é dado na intuição individual ou empírica é um objeto individual, assim também o que é dado na intuição de essência é uma essência pura”. (

O Estado lacaniano sem significado contingente é uma essência pura e, por outro lado, um fenômeno que se atualiza em conjunturas [como objeto individualizado] ao longo da história da civilização política quando a tela gramatical do fenômeno-  o diz como fato.    

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O Estado lacaniano é um juízo com sua gramática de sujeito-verbo-predicado existente na realidade eidética, na realidade transcendental da essência da civilização policiada:

“Inversamente, todo juízo sobre essências pode, de maneira equivalente, ser convertido num juízo geral incondicionado sobre singularidades dessas essências como tais. Desta maneira, os juízos de essência puros (juízos puramente eidéticos) pertencem a um mesmo grupo, qualquer que possa ser a forma lógica dele. O que têm em comum é que não põem nenhum ser individual. Mesmo quando – em pura generalidade eidética – formulam juízo sobre o individual”. (Husserl. 2006: 40).

O Estado lacaniano é um juízo geral incondicionado pela estrutura de dominação ideológica de suas singularidades contingentes. Ele é o juízo da extração e distribuição da mais-valia pública entre dominante e dominado. Seja na antiguidade, seja no feudalismo, seja na sociedade moderna, a sociedade de classes sociais contingente não condiciona o Estado lacaniano como juízo geral da essência da civilização política.  As formas lógicas do Estado de entendimento lacaniano pertencem ao mesmo grupo eidético no campo político da civilização policiada. O Estado de entendimento lacaniano não põe ou repõe ser individual no campo político, se ele é gramaticalizado como generalidade eidética, pois ele é um ser geral da tela gramatical transcendental e, assim, ele existe na consciência de Estado do campo político, se ela não estiver em estado de desintegração. A globalização liberal do fim do século XX procurou pôr a consciência de Estado em estado eterno de desintegração.

Na quase quarta década do século 21, o fenômeno de desintegração da consciência de estado pertence ao campo das ideologias do século XX. É o fenômeno epoché universal que faz emergir do real eidético a consciência da essência do Estado de entendimento lacaniano dos jogos de caligrafia:

“É, todavia, possível, em lugar desta universalidade da abstenção passos isolados, uma maneira inteiramente diversa da epoché universal, a saber, aquela que põe fora da ação, de um golpe, a efetivação completa que atravessa a totalidade da vida natural do mundo e o entretecido inteiro (latente ou manifesto) das validades, a efetivação que, como <atitude natural> una, constitui precisamente o <simples>, o <direito> viver imerso. Por intermédio da abstenção da efetivação que inibe este modo de viver num curso até aqui ininterrupto, é alcançada uma transformação completa da totalidade da vida, um modo de vida inteiramente novo”. (Husserl. 2006: 122; 1976:170-171).

A epoché é o fenômeno da substituição da plurivocidade de tela gramatical que rege o campo político e, por conseguinte, a substituição do campo de ideologias do século XX pelo do século XXI como transformação inteira da totalidade da vida, a emergência do real do século XXI de um modo de vida inteiramente novo:

“e sobre a possibilidade da alteração radical da humanidade inteira por meio dessa epoché, que se atinge a profundidade filosófica da humanidade”.

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“o grave, o que nos dá que pensar, não é de modo algum prefixado por nós, nem somente estabelecido ou pre-sentado. Segundo a afirmação em questão, o que de por si dá mais o que pensar, o gravíssimo, é isso; que todavia não pensamos”. (Heidegger. 1972: 12).

Não pensamos o século XXI.

“Por isso tratemos de aprender a pensar. Caminhemos juntos por esta via e não dirigimos exortações a ninguém. Aprender significa ajustar nosso trabalho e não-trabalho ao que em cada caso se nos atribui como essencial. Segundo seja a índole do essencial, segundo o âmbito de  onde se verifica  sua atribuição, será distinta a correspondência e, com isto, a classe de aprendizado requerido”. (Heidegger. 1972: 19-20).

A relação do pensar como gravíssimo o século XXI aparece na relação entre o campo das afecções e os efeitos deste na tela de juízo de gosto. Tela poética:

“Assim, escutamos, no caminhar ao pensar, uma palavra de poesia. Por que e com que direito, sobre que terreno e dentro de qual limites nosso intento de pensar envolve um dialogo com a poesia, e mais ainda com o hino desse poeta, é uma pergunta ineludível a qual, no entanto, so poderemos discutir quando nós mesmos estejamos já encaminhados em um caminho do pensar”. (Heidegger. 1972: 23).

 

O artista tem um papel importante na confecção do campo de ideologias do século XXI. ele é um olhar sensível da epoché da atualidade ao lado da filosofia que não nasceu e da psicanálise que a já nasceu (Bandeira da Silveira: 2017):

“Nós, que hoje filosofamos, levamos a termo de fato a epoché como uma alteração da atitude que, não contingentemente, mas de modo essencial, a precedia a, a atitude doo ser-aí humano natural, ou seja, da atitude que, em toda a sua historicidade, jamais tinha sido interrompida na vida e na ciência. Mas é necessário, então, que se torne verdadeiramente inteligível que não se trata somente de uma abstenção habitual sem significado, mas que com o olhar do filósofo se torne pela primeira vez de fato inteiramente livre e, antes de mais nada, livre do vínculo interior mais forte e mais universal de todos e, por isso, mais oculto, o vínculo da pré-doação do mundo. Com esta libertação, e nela, é dada a descoberta da correlação universal, inteiramente encerrada em si e absolutamente autônoma, do próprio mundo e da consciência do mundo. Neste último aspecto, é visada a vida da consciência da subjetividade realizadora da validade do mundo, da subjetividade que, nas suas aquisições duráveis tem, em cada caso, mundo, e, também, que sempre de novo ativamente se configura. Resulta a conclusão, que deve ser apreendida na sua máxima extensão: a correlação absoluta do ente de qualquer espécie e sentido, por um lado, e a subjetividade absoluta, por outro, como constituinte, deste modo mais vasto, do sentido e da validade do ser”. (Husserl. 2006: 123-124).

A epoché da plurivocidade de gramática dos Estados do século 21 tem na forma ideológicas da consciência uma fratura com a consciência natural do século 20:

“Para chegar à clareza sobre isso, investiguemos a fonte última de que se nutre a tese geral do mundo que estabelecemos na orientação natural, a qual possibilita que eu encontre, na forma da consciência, um mundo material existente diante de mim, que eu me atribuía um corpo neste mundo e que eu mesmo nele me insira. Essa fonte última é manifestamente, a experiencia sensível. Para nossos fins não basta, porém, considerar a percepção sensível, que num certo bom sentido desempenha, entre os atos de experiência, o papel de uma experiência  originária, da qual todos os atos de experiência tiram uma parte capital de sua força fundante. É próprio de toda consciência perceptiva ser consciência da própria presença em carne e osso de um objeto individual, que, por sua vez, é indivíduo no sentido lógico puro ou numa derivação lógico-categorial dele. No nosso caso, que é o da percepção sensível ou, mais distintamente, da percepção de coisa, o indivíduo lógico é a coisa; e é suficiente considerar a percepção de coisa como representante de todas as outras percepções (de qualidades, de eventos etc.)”. (Husserl. 2006: 94-95).

O indivíduo lógico é a coisa, o Estado de entendimento dos jogos de caligrafia é a coisa/lógica. A internacionalização da contradição principal no mundo ente o Estado feudal, virtual da multinacional e o Estado feudal, virtual/territorial asiático, eis o que é o gravíssimo parasse não pensar nele:

“Eu medito, em primeiro lugar, como homem <ingênuo>. Vejo e toco a cosa mesma em carne e osso. Certamente, de quando em quando eu me engano e não apenas quanto às qualidades percebidas, mas também quanto à existência mesma. Sucumbo a uma ilusão ou alucinação. A percepção, então, não é percepção <autêntica>. Mas se o é, vale dizer, se ela pode ser <confirmada> no nexo da experiência atual, eventualmente com auxílio de pensamento experimental correto, então a coisa percebida é efetiva e está realmente dada ela mesma, em carne e osso, na percepção. Considerando -o meramente como consciência e abstraindo do corpo e dos órgãos do corpo, o perceber aparece então como algo inessencial em si mesmo, como um olhar vazio que um <eu> lança na direção do próprio objeto, e que entra em contato com este de uma maneira digna de e3spanto”. (Husserl. 2006: 95).

O eu político estoico ou hegemonikon (Elorduy: 26) é o pensamento experimental do Estado de entendimento que percebe o campo político conjuntural como seu objeto, que está dado em carne e osso na consciência perceptiva do Estado de entendimento dos jogos caligráficos da guerra feudal e da guerra barroca.      

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No mundo da vida da comunicação, há o Estado écrit (por escrito) e o Estado écran. (Debray: cap. 2). Roland Barthes diz existir um Estado da gramática:

“trata-se de relações sintáticas plenas de verdadeiros semantemas lógicos (do tipo: apesar de, tal maneira que); em outras palavras, o que a transcrição permite e explora é3 uma coisa de que a linguagem falada não gosta, e que se chama em gramática a subordinação; a frase torna-se hierárquica, desenvolve-se nela, como numa encenação clássica, a diferença dos papéis e dos planos; socializando-se (já que passa para um público mais amplo e menos conhecido), a mensagem reencontra uma estrutura de ordem; ‘ideias’, entidades apenas discerníveis na interlocução, onde incessantemente são ultrapassados pelo corpo, aqui são postas na dianteira, ali na retaguarda, mais além em contraste; esta nova ordem – mesmo que a sua emergência seja sútil – é servida por dois artifícios tipográficos, que se acrescentam, assim aos ‘ganhos’ da escritura: o parênteses, que não existe na fala e que permite assinalar com clareza a natureza secundária ou digressiva de uma ideia, e a pontuação que, como s sabe, divide o sentido (e não a forma, o som)”. (Barthes: 11-12).

O Estado por escrito é o fenômeno que suporta o Estado de entendimento dos jogos de caligrafia, onde está o cruzamento da frase e da imagem:

“Manifesta-se assim no escrito um novo imaginário, o que é o do <pensamento>. Em todo lugar onde houver concorrência da fala e do escrito, escrever quer dizer de uma certa maneira: eu penso melhor, com mais firmeza; penso menos por vocês, penso mais pela <verdade>. Sem dúvida, o outro está sempre aí, sob a figura anônima do leitor; também o <pensamento>, encenado através das condições do script (por mais discretas, por mais aparentemente insignificantes que sejam), continua tributário da imagem que quero dar ao público de mim; mais do que uma série inflexível de dados e de argumentos, trata-se aqui de um espaço tático de proposições, quer dizer, afinal de contas, de posições. No debate de ideias, muito desenvolvido hoje graças aos meios de comunicação de massas, todo sujeito é levado a situar-se, a marcar-se, a formular intelectualmente, o que quer dizer: politicamente. Não há dúvida, que nisso consiste a função atual do ‘dialogo’ público; contrariamente ao que se passa em outras assembleias (a judiciária ou a científica, por exemplo), a persuasão, o arrancar de uma convicção já não é o que verdadeiramente está em jogo nestes novos protocolos de troca; trata-se , antes, de apresentar ao público, depois ao leitor, uma espécie de teatro dos empregos intelectuais, uma encenação das ideias (essa referencia ao espetáculo não retira parte da sinceridade ou da objetividade das palavras tocadas, o seu interesse didático ou analítico”. (Barthes: 12).

Barthes põe trivialmente o Estado eidético na forma da comunicação do Estado écran. O Estado do livro já se anuncia como Estado feudal, do proprietário feudal do discurso livresco:

“Picard volta-se contra mim sobretudo porque eu escrevi sobre Racine, que é propriedade dele. É o seu quinhão. Enquanto eu pretendo que Racine é de todos. É o mais escolar dos autores, aquele em que se refletem todas as ideias que criamos acerca do gênio nacional francês. Em Racine converge todo um conjunto de tabus que me parece excelente levantar”. (Barthes: 47).

Barthes diz:

“a sociedade inventa constantemente uma nova linguagem e inventa ao mesmo tempo uma nova crítica”. (Barthes: 50).

Se Racine e Barthes são autores da sociedade o que é o Marx do <crítica da economia política>? Na ciência política materialista/dialética, Eles são aparelhos de hegemonia ou contrahegemonia de Estado de entendimento dos jogos de caligrafia.     

 

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Sociologia e psicanálise gramatical. Amazon: Ebook, 2017

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramática do general intelect. EUA: amazon, 2022a

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Barroco, tela gramatical, ensaios. EUA: amazon, 2022b

BARTHES, Roland. O grão da voz. RJ: Francisco Alves, 1995

DEBRAY, Régis. L’État séducteur. Paris: Gallimard, 1993

DERRIDA, Jacques. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée, 1994

ELORDUY, Eleuterio. El estoicismo. Tomo 2. Madrid; Gredos, 1972

HEGEL. Lecciones sobre la filosofía de la hisatoria universal. Madrid: Alianza Editorial, 1980    

HEIDEGGER, Martin. Que significa pensar? Buenos Aires: Nova, 1972

HUSSERL. Idées directrices pour une phénoménologie. Paris; Gallimard, 1950

HUSSERL. LA crise des sciences européennes et la phénoménologie transcendentale. Paris: Gallimard, 1976

HUSSERL. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. SP; ideias e Letras, 2006

HUSSERL. A das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. RJ: Forense Universitária, 2012

LACAN, Jacques. O Seminário. livro 16. De um Outro ao outro. RJ; Zahar, 2008

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. SP: Martins Fontes, 1977  

STEPAN, Alfred. Estado, corporativismo e autoritarismo. RJ; Paz e Terra, 1980

VIRILIO, Paul. L’insecurité du territoire. Paris: Galilée, 1976    

                                                                     

 

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