sábado, 6 de julho de 2024

Da democracia feudal modernista

 

José Paulo 

 

O Estado burguês de exceção teve três formas de governo: fascismo, bonapartismo, ditadura militar. Hoje, temos um Estado de exceção burguês-feudal. O fascismo é a forma especial do estado de exceção do mercantilismo do capital multinacional, que usou trabalho compulsório na Europa. O Estado de exceção burguês-feudal já aparece na democracia feudal moderna em um campo político com direita e extrema-direita, esquerda e extrema-esquerda. No Brasil, a extrema-direita governou com Bolsonaro e a esquerda com Lula a partir de 2023. Nos EUA, a extrema-direita governou com Donald Trump e a direita governa com Joe Biden. O campo político brasileiro é mais completo do que o campo americano. A França é o campo mais completo pois possui a extrema-esquerda.

Ao Estado de exceção burguês-feudal corresponde uma crise política da gramática do campo político da democracia feudal moderna. Com a região da extrema direita habitada pelo fascismo pós-modernista, no Brasil, o fascismo quer desintegrar o Estado nacional virtual da Constituição de 1988, em uma guerra civil que faz da contrarrevolução o aprofundamento da forma capital-feudal subdesenvolvido - em uma época mundial do mercantilismo do capital feudal asiático como paradigma das relações internacionais. A conciliação barroca capital e feudalismo existiu na Revolução francesa estudada por Alex de Tocqueville. (Tocqueville: 1967). Não é um raio em um céu azul da atualidade.

O Estado de exceção burguês-feudal pós-modernista significa o direito à mais-valia pública para o dominante: capital subdesenvolvido. Da Constituição de 1988, o Estado feudal-democrático modernista significa direitos para o dominado `a mais-valia pública. A ideia de mais de um Estado - na formação social brasileira - aparece no marxismo brasileiro, como já mostrei em outros textos. Na plurivocidade de Estado no campo político, há um Estado dominante. Tal fenômeno pode se traduzir pela guerra civil aberta ou latente. Esta ideia não é uma novidade. O Estado de exceção estabelece a stasis como um fenômeno natural do campo político onde ele é o dominante, soberano. O governo de Bolsonaro foi um governo da guerra civil aberta contra o STF e região da esquerda, por exemplo.  O Estado de exceção burguês-feudal medieval tinha como meta a desintegração da democracia feudal modernista da Constituição de 1988. Nos EUA, Donald Trump quer mudar a gramática do campo político americano. Na França, o partido fascista quer fabricar um Estado nacional do novo medieval, fundado na mitologia de origem da grande monarquia feudal. 

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A ciência política materialista é uma criação de Engels, em 1844. A tese 11 do texto de Marx sobre Feuerbach:

“Los filósofos se han limitado a interpretar el mundo de distintos modos; de lo que se trata es de transformarlo”. (Marx e Engels. 1974: 668).

Na tese 11 se encontra a ideia luminar da história feita por aparelho ideológico [interpretar a gramática do mundo pelo idealismo] e por aparelho de hegemonia, isto é, mudar a gramática do campo político. Lenin fala do aparelho ideológico da filosofia como partido idealista e partido materialista. O partido da revolução é o aparelho de hegemonia como príncipe moderno gramsciano - que quer fundar um novo Estado. Então, o problema da ciência literária política materialista de Engels, Marx, Lenin e Gramsci é o Estado nas civilizações. Faço uma longa citação do livro ‘A ideologia alemã”:

“Nos povos surgidos da idade Média, a propriedade tribal se desenvolve passando por várias etapas – propriedade feudal da terra, propriedade mobiliaria corporativa, capital manufatureiro – até chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e a concorrência universal, até chegar à propriedade privada pura, que se tem despojado já de toda aparência de comunidade e tem eliminado toda influência do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade. À esta propriedade moderna corresponde o Estado moderno, paulatinamente, comprado, rigorosamente, pelos proprietários privados, entregue completamente a estes pelo sistema da dívida pública e cuja existência, como revela a alta e a baixa dos valores do Estado na Bolsa, depende inteiramente do crédito comercial que lhe concedam os proprietários privados burgueses”. (Marx e Engels. 1974: 71).

O conceito de Estado burguês moderno parte da economia pública da mais-valia pública como laço social da dívida pública entre o Estado e o capital moderno. Trata-se de um Estado moderno nacional da sociedade capitalista do proprietário burguês inglês. Com o mercantilismo do capital europeu do fim do século XIX, o Estado burguês inglês passa a habitar o campo político com o Estado imperialista e colonial de vários países europeus. Este Estado europeu é uma estrutura de dominação ideológica da raciolização entre povos europeus [superiores} e povos africanos inferiores, definido assim pela antropologia como aparelho de vaidade ideológico do Estado imperialista e colonialista europeu.  

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 A filosofia é a forma cultural que cria o aparelho ideológico puro. Este cria e recria as regiões do campo político como ilusão estética [como por exemplo a direita fascista brutalista ou a esquerda como forma de transição entre o barroco e o neobarroco] e como partido político muda a forma de governo. O aparelho de hegemonia muda a gramática do campo político e, como Príncipe moderno, funda um novo Estado. Portanto, continuo com o Estado:

“A burguesia, por ser uma classe, e não um simples estamento, se acha obrigada a organizar-se em um plano nacional e não já somente em um plano local e dar a seu interesse médio uma forma geral. Mediante a emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado cobra uma existência especial junto à sociedade civil e a margem dela; porém, não é tão pouco mais que a forma de organização que se dão necessariamente os burgueses, tanto no interior como no exterior, para a mútua garantia de sua propriedade e de seus interesses. A autonomia do Estado só se dá, hoje, naqueles países em que os estamentos ainda não se têm desenvolvido totalmente até converter-se nas classes, donde ainda desempenham papel de estamentos”. (Marx e Engels. 1974: 71-72).            

O Estado burguês-feudal medieval da contemporaneidade faz da classe política um estamento e da burocracia pública, também, estamentos de juízes e generais:

‘eliminados os estamentos nos países mais desenvolvidos, donde existe certa mescla e donde, portanto, nenhuma parte da população pode chegar a dominar sobre os demais. Com efeito, isto ocorre na Alemanha. O exemplo mais acabado de Estado moderno é o dos EUA. Os modernos escritores franceses, ingleses e estadunidenses se manifestam todos no sentido de que o Estado só existe em função da propriedade privada, o que, a força de repetir-se, se tem incorporado já à consciência comum. (Marx e Engels. 1974: 72).    

O estamento vive da mais-valia pública da antiprodução; ele não vive como uma categoria da economia pública assalariada do Estado nacional; o estamento estabelece no Estado burguês-feudal medieval de hoje a relação [na distribuição da mais-valia pública] do dominante [aristocracia feudal medieval de juízes e generais] com o dominado: o professor universitário público da plebe romana modernista. O Estado burguês-feudal pós-modernista, de hoje, faz analogia com o Estado alemão feudal-burguês de 1845.

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E o evangélico do americanismo? Ele põe e repões problemas para o aparelho de hegemonia da razão linguística e para o aparelho ideológico de vaidade de gosto:

“Quem reconhece como más sua poesia ruim não é tão limitado em seu conhecimento ou em sua essência como aquele que aprova em sua inteligência suas más poesias”. (Feuerbach: 50).

O evangelismo americanista faz da política secular um aparelho ideológico de vaidade popular - de gosto duvidoso:

“O que te domina quando o som te domina? Que ouves nele? O que mais a não ser a voz de teu próprio afeto ou coração? Por isso só o sentimento fala ao afeto, por isso o sentimento só é inteligível pelo campo de afeto, isto é, por si mesmo, exatamente porque o objeto do afeto só pode ser o próprio afeto. A música é um monólogo do afeto. Mas o próprio diálogo da filosofia é, com efeito, um monólogo da razão: o pensamento só fala para o pensamento. O brilho das cores dos cristais arrebata os sentidos; mas à razão só interessam as leis da cristalonomia. Para a razão só é objeto o racional”. (Feuerbach:50).

Como aparelho de vaidade de gosto, a prática política da massa não pode conhecer a tela de afeto como tela celestial, isto é, como amor gótico:

“Como poderias perceber a divindade através do afeto se o sentimento não fosse por si mesmo de natureza divina? O divino só pode ser conhecido pelo celestial., ‘Deus só pode ser conhecido por si mesmo’. A essência celestial que o sentimento percebe é em verdade apenas a essência do afeto arrebatada e encantada consigo mesma – o sentimento embriagado de amor e felicidade”. (Feuerbach: 51).

A religião evangélica medieval pós-modernista é uma tela de vaidade de gosto, de amor, que abole o cristianismo como um campo de dogmas de Jesus, da fé no Deus carnal, como aparelho de hegemonia celestial da tela metafísica religiosa”. (Feuerbach: 51).               

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A ciência política materialista de Engels fala do choque agônico entre aparelho de hegemonia científico e o aparelho ideológico metafísico alemã moderno, ao qual pertence o livro “A essência do Cristianismo”. O aparelho de hegemonia marxista é portador de uma concepção política da história que parte da tese 11 sobre Feuerbach. Também parte da atividade da prática como definindo a realidade histórica. (Labica: 43, 76, 77). A prática é parte de uma rede de conceitos como: história, revolução, ideologia, produção ...proletariado, massa:

“Trata-se do caráter de uma prática. E de uma prática inserida no cotidiano. Vamos chamá-la pelo seu nome: luta de classe”. (Labica: 87, 63).

A luta de classe do proletariado é motor da história, mas as massas fazem a história (Althusser: 27); elas são o nome real da prática política que existe como aparelho de hegemonia proletária, prática que é capaz de fundar um novo Estado. Engels pensa a diferença entre o aparelho de hegemonia revolucionário e o aparelho ideológico comparando a história da França com a Alemanha:

“Tanto quanto na França do século XVIII, a revolução filosófica foi na Alemanha do século XIX o prelúdio de desintegração do campo político; os franceses em guerra civil aberta contra toda a ciência oficial, contra a Igreja e, não raro, mesmo contra o Estado; suas obras impressas fora das fronteiras, na Holanda ou na Inglaterra, e, além disso, os autores, com muita frequência, iam dar com os costados na Bastilha. Os alemães, ao contrário, eram professores em cuja mãos o Estado colocava a educação da juventude; suas obras, livros de texto consagrado; e o sistema que coroava todo o processo de desenvolvimento – o sistema de Hegel – era inclusive elevado, em certa medida, ao nível de filosofia oficial de Estado monárquico prussiano! Como poderia a revolução ocultar-se por trás desses professores, por trás de suas palavras pedantemente obscuras e de suas frases longas e aborrecidas? Pois não eram precisamente os liberais, considerados então os verdadeiros representantes da revolução, os inimigos mais encarniçados desta filosofia que trazia confusão às consciências”. (Engels: 171).  

A história de Hegel como aparente aparelho de ideologia dominante da monarquia passa pela universidade, pois, Hegel era professor:

Nunca houve uma tese filosófica que atraísse tanto reconhecimento de governos míopes e a cólera de liberais, não menos curtos de visão, como a famosa tese de Hegel: <Tudo o que é real é racional, e tudo que é racional é real>. Não era, concretamente, a santificação de tudo que existe, a benção filosófica dada ao despotismo, ao Estado policial, à justiça de gabinete, à censura? Assim acreditavam, realmente, Frederico Guilherme III e seus súditos”. (Engels: 171-172).

A relação orgânica entre forma de governo e filosofia aparece hoje como algo ininteligível. Todavia, na época de Hegel, a filosofia era vista, pelo governante, como um aparelho ideológico puro do dominante. No campo do indivíduo e da multidão não havia a autonomia absoluta da filosofia em relação a prática política; “As ideias não estavam fora de seu lugar real”, elas funcionavam como legitimação da prática ou como crítica da realidade:

“Para Hegel, porém, o que existe está longe de ser real pelo simples fato de existir. Em sua filosofia, o atributo da realidade corresponde apenas ao que, além de existir, é necessário; ‘em seu desdobramento a realidade revela-se como necessidade’. Eis porque Hegel não considerava como real, pelo simples fato de ser imposta – qualquer medida governamental- como um ‘sistema tributário determinado’, por exemplo, citado por ele mesmo. Todavia, o que é necessário demonstra-se também, em última instância, como racional. Assim, aplicada ao Estado prussiano da época, a tese hegeliana permite uma única interpretação: este Estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é necessário; se, no entanto, nos parece mau, e continua existindo, apesar disso, a má qualidade do governo justifica-se pela má qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos da época tinham o governo que mereciam”. (Engels: 172).

A unidade entre governo e povo, entre governo e multidão, evoca o Estado como Deus mortal de Hobbes. Hegel faz a crítica da modernidade do Estado prussiano, não defende sua conservação:

“segundo Hegel, a realidade não constitui um atributo que, em todas as situações e em todas as épocas, seja inerente a um determinado estado de coisas político ou social. Ao contrário. A república romana era real, mas o império romano que a suplantou também era real. Em 1789, a monarquia francesa se havia tornado tão irreal, isto é, tão destituída de toda necessidade, tão irracional, que teve de ser varrida pela grande Revolução, de que Hegel falava sempre com o maior entusiasmo.” Engels: 172).

Hegel fala da Revolução como atividade da prática política:

“uma mudança pela qual o indivíduo, como efetividade especial e como conteúdo peculiar, se opõe àquela efetividade universal. Essa oposição vem a tornar-se crime quando o agente suprassume essa efetividade de uma maneira apenas singular; ou vem a tornar-se um outro mundo – outro direito, outra lei e outros costumes, produzidos em lugar dos presentes – quando o agente o faz de maneira universal e, portanto, para todos”. (Hegel. 1992: 194).

A Revolução é um aparelho de hegemonia ou Príncipe moderno que cria e recria uma outra gramática, um mundo novo, no lugar da antiga gramática, do velho mundo.

Engels segue:

“Aqui, pois, o irreal era a monarquia e o real ´a revolução. E, assim, no processo de desenvolvimento, tudo que antes era real se transmuta em irreal, perde sua necessidade, seu direito natural de existir, seu caráter racional; à realidade que agoniza sucede uma realidade nova e vital; pacificamente, se o que caduca é bastante razoável para desaparecer sem luta; pela violência, se se rebela contra essa necessidade; A tese de Hegel transforma-se assim, pela própria dialética hegeliana, em seu contrário: tudo que é real, nos domínios da história humana, converte-se em irracional, com o passar do tempo; já o é, portanto, por seu próprio destino que carrega consigo, o germe do irracional, e tudo que é racional no cérebro do homem está destinado a ser real um dia, por mais que ainda se choque hoje com a aparente realidade realmente existente. A tese de que tudo que é real é racional se resolve, segundo todas as regras do método do pensamento de Hegel, nessa outra: tudo que existe deve perecer”. (Engels: 172).         

Hegel faz a crítica da gramática da modernidade do Estado monárquico como um pressuposto saber da prática política revolucionária. Aí, há o fim da unidade entre teoria e prática do Estado, seu colapso legítimo, na medida em que ele só existe como ilusão ideológica ilegítima no campo político/estético.

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A relação entre forma de governo e multidão passa pelas regiões do campo política reprofundas como: pensar, querer e amar. O pensar é a prática política pela razão gramatical; o querer é a vontade de poder heideggeriana; o amar é a relação do campo do afeto da vaidade como gosto do governamental. Quando o aparelho de gosto governamental da multidão rompe com o soberano, aí temos o rei ideológico como ilegítimo:

‘essa filosofia dialética põe fim a todas as ideias de uma verdade absoluta e definitiva e a um consequente estágio absoluto da humanidade. Diante dela, nada é definitivo, absoluto, sagrado; ela faz ressaltar o que há de transitório em tudo que existe; e só deixa de pé o processo ininterrupto do vir-a-ser e do perecer, uma ascensão infinita do inferior ao superior, cujo mero reflexo no cérebro racional é esta própria filosofia. E reconhece a legitimidade de determinadas formas sociais e de conhecimento, para sua época e sob suas circunstâncias; Com efeito, ela tem também seu aspecto conservador quando reconhece a legitimidade de determinadas formas sociais e de conhecimento para sua época e sob suas circunstancias; mas não vai além disso; o conservantismo desta concepção política de mundo é relativo; seu caráter revolucionário é absoluto, e a única coisa absoluta que ela deixa em pé”. (Engels: 173).

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Já mostrei em outros textos que há uma leitura materialista do conceito de espírito em Hegel. O espírito é tela gramatical:

“L’intitulé général Constituition recouvre une théorie de l’etat. Elle commence par poser que l’etat est pour ainsi dire l’esprit de la loi”. (Taminiaux:57).

O Estado é espírito da lei, ele é tela gramatical da lei. A gramática da tela é a materialidade do Estado. A ciência política hegeliana do Estado é ciência da tela gramatical. Marx fala do Estado como aparelho de Estado e poder de Estado. (Balibar: 94). Assim, a ciência política literária materialista do Estado estabelece uma continuidade entre Hegel e Marx/Engels.

A luta de classes é um conceito da cultura europeia. Ela faz da economia um fenômeno do campo político/estético. Assim o materialismo adquire, plenamente, uma natureza reconcreta, com a imagem textual de interesse econômico na história da sociedade moderna:

“Desde a implantação da grande indústria, isto é, desde a paz de 1815 pelo menos, que já não era segredo para ninguém, na Inglaterra, que a luta política girava em torno das pretensões de domínio de duas classes: a aristocracia latifundiária (landed aristocracy) e a burguesia (middle classe). Na França, o mesmo fato tornou-se evidente com a volta dos Bourbons; os historiadores do período da Restauração, de Thierry e Guizot, Mignet e Thiers, o proclamam constantemente como o fato que dá a chave para compreender-se a história da França, desde a idade Média. E desde 1830 em ambos os países se reconhece como terceiro combatente, na luta pelo poder, a classe operária, o proletariado. As condições tinham-se simplificado a tal ponto, que seria necessário fechar deliberadamente os olhos para não ver na luta dessas três grandes classes e no choque de seus interesses a força motriz da história moderna, ao menos nos dois países mais desenvolvidos”. (Engels: 200).

O paradigma de Marx/Engels se tornaria o aparelho de hegemonia da história moderna:

“Pelo menos na história moderna é demonstrado que todas as lutas políticas são lutas de classes e que todas as lutas de emancipação de classes, com sua inevitável forma política, é uma luta política, girando, em última instância, em redor da emancipação econômica. Portanto, aqui, pelo menos, o Estado e o regime político são elementos subordinados, e a sociedade civil, como o reino das relações econômicas, o aspecto dominante. A ideia tradicional, consagrado por Hegel, fazia do Estado o aspecto determinante e a sociedade civil o aspecto condicionado pelo Estado. E as aparências levam a pensar desse modo [...]; na história moderna a vontade do Estado obedece, em geral, à supremacia desta ou daquela classe e, em última instância, ao desenvolvimento das forças produtivas e das condições de troca”. (Engels: 201).

Engels põe e repõe a luta de classes, o Estado, as relações técnicas de produção no campo político da modernidade evoluindo e recobrindo a Idade Média. A crítica à gramática do Estado de Hegel, entre nós, define a ciência social em geral como materialismo de interesse econômico, abrindo as comportas para o desenvolvimento de um campo de ideologias científicas economicistas como concepção política da história, cujo maior exemplo é o stalinismo:

“E se mesmo numa época como a moderna, com seus gigantescos meios de produção e de comunicação, o Estado não é um domínio autônomo, com um desenvolvimento próprio, mas tem sua existência e sua evolução explicadas, em última instância, pelas condições de existência econômica da sociedade, com maior razão ainda isso deve ter ocorrido em todas as épocas anteriores, em que a produção da vida material dos homens não se verificava com recursos tão abundantes e em que, portanto, a necessidade dessa produção devia exercer um domínio ainda mais considerável sobre os homens. Se ainda hoje, na época da grande indústria e das estradas de ferro, o Estado, de modo geral, é um reflexo em forma condensada das necessidades econômicas da classe dominante que domina a produção [...]”. (Engels: 201).

O Estado é condensação dos interesses econômicas da classe dominante:

“Mas o Estado não é puramente e simplesmente uma relação, ou a condensação de uma relação; ele é a condensação material e específica de uma relação de forças entre classes e frações de classe”. (Poulantzas: 141).

 A relação entre o Estado e os interesses econômicos não é economicistas. Marx fala de uma autonomia relativa do Estado em relação à sociedade civil e, portanto, retoma Hegel, através da forma de Estado bonapartista ou cesarista:

“Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo. A máquina do Estado consolidou a tal ponto a sua posição em face da sociedade civil [..]”.

“E, todavia, o poder estatal não está suspenso no ar. Bonaparte representa uma classe e, justamente, a classe mais numerosa da sociedade francesa, os pequenos (Parzellen) camponeses”. (Marx. 1974: 402).

Não sei se Marx percebeu que ele estabeleceu a relação universal e necessária do Estado como os camponeses na história das civilizações. Então, o Estado como tela gramatical se define pela extração da mais-valia pública camponesa e pelo campesinato existir como classe-apoio (Poulantzas. 1971:69) do Estado como aparelho de hegemonia na evolução das relações técnicas de produção - na história das civilizações.

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Engels fala do campo de ideologias do Estado cesarista, que Michael Mann chama de Estado despótico:

“Quando o Estado se ergue como poder autônomo face à sociedade, o Estado cria, aceleradamente, uma nova ideologia. Nos políticos profissionais, nos teóricos do direito público e nos juristas que cultivam o direito privado, a consciência da relação com os fatos econômicos desaparece inteiramente. Como, em cada caso concreto, os fatos econômicos têm que revestir a forma de motivos jurídicos para serem sancionados em forma de lei e, como, para isso, é necessário ter também em conta, logicamente, todo sistema jurídico vigente, pretende-se que a forma jurídica seja tudo e o conteúdo econômico, nada. O direito público e o direito privado são encarados como dois campos autônomos, com seu desenvolvimento histórico próprio, campos que permitem e exigem, por si mesmo, uma construção sistemática, mediante a eliminação consequente de todas as contradições”. (Engels: 203).

O campo das ideologias de Estado se define por sua autonomia relativa gótica em relação à luta de classes e interesses econômicos da sociedade de classes sociais moderna:

 “Ideologias ainda mais elevadas, isto é, que se distanciam cada vez mais das relações técnicas de produção, da base econômica, adotam a forma de filosofia e religião. Aqui, o encadeamento das ideias com suas condições materiais de existência aparece cada vez mais emaranho, cada vez mais obscurecido pela interposição de camadas intermediárias. Mas, apesar de tudo, existe. Todo o período da Renascença, desde a metade do século XV, foi em sua essência um efeito das cidades e, portanto, da burguesia, e se pode dizer o mesmo da filosofia, que renasce a partir de então. Seu conteúdo, em substância, é a expressão filosófica das ideias correspondentes ao processo de desenvolvimento da pequena e média burguesia para a grande burguesia. Isso se vê claramente nos ingleses e franceses do século XVIII, muitos dos quais tinham tanto de economistas como de filósofos, e, também, pudemos comprová-lo na escola hegeliana, mais acima”. (Engels: 203).

Engels fala da Renascença como um aparelho de hegemonia de Estado do capital mercantil. A definição de aparelho ideológico é clara:

“Toda ideologia, todavia, ao surgir, desenvolve-se em ligação com a base material das ideias existentes, desenvolvendo-a e transformando-a, consequentemente; se não seria uma ideologia, isto é, um trabalho sobre ideias conhecidas e entes dotados de substância própria, com o desenvolvimento autônomo e submetidas somente às suas próprias leis. Os homens, em cujo cérebro esse processo ideológico se desenvolve, ignoram forçosamente que as condições materiais da vida humana são as que determinam, em última instância, a marcha desse processo, pois, se não ignorassem ter-se-ia acabado toda ideologia”. (Engels: 203).

Na tradução do texto acima para a ciência política materialista, a relação das relações técnicas de produção com a tela gramatical da ideologia é um problema existente no campo político da tela de gosto, para a multidão. Note leitor que nosso autor fala da gramática ideológica no cérebro como produção de ilusão. No campo da sociedade/Estado, há as regiões da gramática ideológica como ilusão, por exemplo, o campo político dividido em regiões ideológicas como esquerda e direita, progressista e conservadora, reacionária e radical.                             

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O problema do monopólio do campo político por um único Estado [campo político totalitário moderno] foi enunciado por Michael Mann em contraposição ao campo político pluralista medieval europeu:

“Não é um resquício que todas as regras sejam fixadas por um único Estado monopolista. Embora o exemplo feudal seja extremo, com efeito, em sua maioria, os Estados existem em uma civilização multi-Estado, a qual também produz certas regras normativas de conduta. Obstante, a maioria das sociedades parece ter requerido que algumas regras, particularmente, aquelas, sobretudo, relevantes para a proteção da vida e da propriedade, sejam fixadas monopolisticamente e isto tem sido um território do Estado”. (Hall:178).

O campo da democracia feudal modernista é uma plurivocidade de Estado. Há, porém, um Estado soberano, isto é, uma estrutura de dominação estatal dominante. Este Estado é uma prática política de aparelhos legal e fático que define o direito político à mais-valia pública entre dominante e dominado. A relação entre os Estados é de dominante e dominado. Em certas situações, o governo do Estado monopolista, virtualmente, pode abrir uma guerra civil com os outros Estados dominados pela conquista dos aparelhos do Estado nacional, que é um Estado territorialmente com poder político centralizador e burocracia pública e elite estatal que pode ser uma burguesia burocrática, ou uma oligarquia política rural, ou uma burguesia política com autonomia relativa em relação à luta de classes da sociedade civil.          

O direito político de Estado consiste na distribuição da mais-valia pública ou excedente econômico fiscal entre grupos: social, político, econômico, ideológico, cultural. Na atualidade, a guerra civil do Estado feudal cesarista medieval com o Estado feudal democrático modernista tem como objeto a definição da soberania popular na construção da burguesia política governamental, de Estado ou do capital. A guerra civil aberta é o sintoma social de uma crise permanente da gramática da estrutura do campo político/de gosto.

Em 2024, a crise política se desenvolve nos EUA com o Estado do partido republicano trompista e a Suprema Corte querendo ascender ao governo nacional, para alterar a gramática do campo político oligopolista dividido em um equilíbrio de força insustentável entre o Estado burguês-feudal militarizado, internacionalmente, do partido democrático  e o Estado feudal medieval republicano.

Será uma transformação ciclópica rumo à fabricação de um campo político/estético monopolista e sua forma de governo partidária de partido único? Um campo totalitário puro do século XXI?

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     Frantz Fanon diz que o racismo é uma estrutura de dominação ideológica mundial no século XX criada pela Europa. Quando começa?

O campo ideológico pode ser materialista ou materialista. O campo idealista ´a produção de ideias na universidade, por exemplo. É o campo sublunar das ideias, ideias que não se ligam à atividade da prática política; há o campo terreno das ideias?

O campo terreno é aquele da produção de imagem textual das ideologias. É um campo dos aparelhos ideológicos, seja do Estado, seja da sociedade civil: aparelhos de ideologia do capital.

Durante o século XIX, a Europa criou um campo idealista científico sublunar de ideias racistas, que falavam de povos superiores e povos inferiores. Racialmente. No fim do século XIX e primeira metade do século XX, emerge o mercantilismo do capital europeu com seus aparelhos ideológicos do Estado imperialista e colonialista. Os Estados europeus fazem da África um território de uma estrutura ideológica de racialização mundial, entre o os povos superiores europeus e os povos inferiores africanos. O dominante e o dominado além de estar nos países capitalistas [burguesia e proletariado] está também na relação entre povos, entre continentes: povos superiores e povos inferiores. Assim, por exemplo, a antropologia nasce como aparelho ideológico de racialização mundial entre povos europeus e africanos.

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     A ideologia economicista fala da determinação imediata da economia sobre o campo político e o Estado. Engels procurou falar da determinação em última instancia da economia. De qual realidade econômica?

Marx descobriu e conceituou a economia com o aparelho de produção de mais-valia privada nas relações técnicas de produção; a economia privada [como aparelhos de produção de mais-valia] encontra seu sentido elevado na economia pública, como aparelho da distribuição da mais-valia pública. Esta é a transformação da mais-valia privada [excedente econômico] em mais-valia pública na relação do Estado com as classes dominadas, em última instância, pois, lucro, juros e renda da terra são formas econômicas de mais-valia privada.

O que é a última instância de determinação econômica?

O campo político se define pela distribuição da mais-valia publica pelo Estado entre dominante e dominado. No Estado feudal medieval europeu, só o dominante possuía o DEIREITO POLÍTICO à propriedade da mais-valia pública ou plus-de-jouir, ou Mehrlust : gozo da riqueza pública do Estado lacaniano.

A socialdemocracia europeia montou um Estado lacaniano do dominado, do trabalho. O dominante ou capital não tem direito político à mais-valia pública. A URSS criou um Estado lacaniano no qual o dominado se apropria in toto da mais-valia pública destinada às classes sociais. A China de Mao Zedung criou um Estado lacaniano feudal socialista gótico para o povo-nação chinês. A Coréia do Sul e Japão criaram um Estado lacaniano no qual a mais-valia pública não é repartida entre o dominado. Os EUA fazem do Estado lacaniano um Estado de distribuição do excedente público para o capital.

Assim, a determinação em última instância aparece na luta política ou guerra civil pela propriedade da mais-valia pública. No Brasil, o capital financeiro saqueia a mais-valia pública como se fosse um direito político natural dele à riqueza da economia pública. Os aparelhos ideológicos do capital definem os governos a partir do direito natural político do capital à maior parte da mais-valia pública e da negação do direito político natural do dominado à mais-valia em mãos do Estado.  O governo Temer e Bolsonaro foram a defesa radical e conservadora do direito do capital à riqueza do Estado. Defesa dessa posição feita pelos aparelhos de comunicação de massa neoliberais e aparelho ideológico dos economistas financistas ou rentistas, sendo o mais conhecido o banqueiro carioca Armínio Fraga.

O governo Lula é odiado pelo dominante por sustentar o direito político natural do dominado à mais-valia pública, à riqueza nas mãos do Estado nacional

Esta é a história política e econômica [e do Estado} da última instância econômica da ciência política literária materialista.  Ela encontra-se além do materialismo histórico, aproveitando as descobertas e invenções conceituais do campo gramatical da ciência marxista materialista. A determinação em última instância significa que a economia pública é AINTIPRODUCAO  

 

 

 

ALTHUSSER, Louis. Réponse a John Lewis. Paris: Maspero, 1973

BALIBAR, Étienne. Cinq études du matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974  

FANON, Frantz. Por la revolución africana. México: Fondo de cultura Económica. 1965

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1988

HALL, John (org.). Michel Mann. O poder autônomo do Estado...RJ: Imago, 1992  

HEGEL. Fenomenologia do Espírito. Parte 1. Petrópolis: Vozes, 1992             

 LABICA, Georges. As “Teses sobre Feuerbach” de Karl Marx. RJ: Zahar, 1990   

MARX E ENGELS. La Ideologia alemana. Barcelona: Grijlabo, 1974a

MARX. Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974

ENGELS. Marx e Engels. Obras Escolhidas. V. 3. SP: Alfa-Omega, sem data

POULANTZAS, Nicos. L’État, le pouvoir, le socialisme. Paris: PUF, 1978

POULANTZAS, Nicos. Pouvoir politique et classes Sociales. V. 2. Paris: Maspero, 1975

TAMINIAUX, Jacques. Naissance de la philosophie hégélienne de l’État. Paris: Payot, 1984

TOCQUEVILE, Alex. L’ancien régime et la Révolution. Paris: Gallimard, 1967                                                               

          

       

 

 

 

            

                                                                                     

          

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