segunda-feira, 22 de julho de 2024

Litoral e Sertão - Euclides, Hegel, Newton da Costa

 

José Paulo 

 

Moro no Rio. A cidade foi capital da Colônia, monarquia e república. Na década de 1950, o presidente mineiro JK construiu a capital Brasília modernista no Centro-Oeste da corrupta <burguesia burocrática>, fenômeno este revelado pelo marxista paulista Caio Pardo Jr. Moro em um bairro que foi o centro da capital na república. Ele respira o passado, ele evoca a monarquia e, sobretudo, a república de Getúlio Vargas.

O que é um bairro?

“O bairro constitui o termo médio de uma dialética existencial entre o dentro e o fora”. (Certeau: 42).

A gramática do bairro é uma ideia de Pierre Mayol (Certeau: 48). Há o dentro e o fora como construção poética do espaço no caminhar nas ruas do bairro de Laranjeiras. O bairro é um contexto como ersatz da nação do Brasil profundo, este diferente do Brasil profundo pós-modernista (Bandeira da Silveira: 2021) e, hoje, que deu ao país o governo heteróclito de Jair Bolsonaro, homem de um outro litoral, do litoral da classe média da Barra da Tijuca, bairro pós-modernista - que assassinou o irmão médico da deputada Samia Bomfim. Hoje, Brasília é a capital da oligarquia política rural de commodities do capital rural e da burguesia política urbana do Sudeste - que dominam o país.  

Na época de JK, o paradigma da geografia política litoral/sertão foi elaborada e poetizada pelo artista/escritor barroco-moderno Euclides da Cunha.   Euclides, também, descobriu um segredo do Brasil, que talvez se estenda à América do Sul. Ele viu o desencaixe fatal entre a realidade existente e a superestrutura do campo das ideologias científicas cosmopolitas:

“Tem tudo e falta-lhe tudo, porque lhe falta esse encadeamento de fenômenos desdobrados num ritmo vigoroso, de onde ressaltam, nítidas, as verdades da arte e da ciência – e que é como que a grande lógica inconsciente das cousas”.

“Daí esta singularidade: é de toda a América a paragem mais perlustrada dos sábios e é menos conhecida. De Humboldt, a Em. Goeldi – do alvorar do século passado aos nossos dias, perquirem-na, ansiosos, todas os eleitos. Pois bem, lêde-os. Vereis que nenhum deixou a calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se acolheu, deslumbrado, no recanto de uma especialidade. Wallace, Mawe, W. Edwards, d’Orbigny, Martius, Bates, Agassiz, para citar os que me acodem na primeira linha, reduziram-se a geniais escrevedores de monografias”.

“A literatura científica amazônica, amplíssima, reflete bem a fisiografia amazônica: é surpreendente, preciosíssima, desconexa. Quem quer que se abalance a deletreá-la, ficará, ao cabo desse esforço, bem pouco além do limiar de um mundo maravilhoso”. (Euclides: 250-251).  

Euclides da Cunha foi o primeiro a ver claramente a desconexão [desencaixe} entre as ideologias científicas do Norte e as realidades do Sul (Santos: 2021):

“há uma frase do Professor Frederico Hartt, que delata bem o delíquio dos mais robustos espíritos diante daquela enormidade. Ele estudava a geologia do Amazonas, quando em dado momento se encontrou tão despeado das concisas fórmulas científicas e tão alcandorado no sonho, que teve de colher de súbito, todas as velas da fantasia:

- Não sou poeta. Falo a prosa da minha ciência. Revenons!”

“Escreveu: e encarrilhou nas deduções rigorosas. Mas decorridas duas páginas não se forrou a novos arrebatamentos e reincidiu no enlevo...É que o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana, evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio precavido. As ‘amazonas’ de Orellana, os titânicos ‘curriquerés’ de Guillaume de l’Isle, e a ‘Manoa del Dorado’, de Walter Releigh, formando no passado um tão deslumbrante ciclo quase mitológico, alcochetam-se em nossos dias às mais imaginosas hipóteses da ciência. Há uma hipertrofia da imaginação no ajustar-se ao desconforme da terra, desequilibrando-se a mais sólida mentalidade que lhe balanceia a grandeza. Daí, no próprio terreno das indagações objetivas, as visões de Humboldt e a série de conjeturas em que se retravam, ou contrastam, todos os conceitos, desde a dinâmica de terremotos de Russel Wallace ao bíblico formidável das geleiras prediluvianas de Agassiz”. (Euclides: 251).

A ideologia científica cosmopolita fez pendant com as ideologias políticas do Norte na Constituição liberal-cesarista de 1824, hiperbólica de Pedro I, com o <poder moderador>. Sigo com Euclides:

“Parece que ali a imponência dos problemas implica o discurso vagaroso das análises: às induções avantajam-se demasiado os lances da fantasia. As verdades desfecham em hipérboles. E figura-se alguma vez em idealizar aforrado o que ressai nos elementos tangíveis da realidade surpreendedora, por maneira que o sonhador mais desinsofrido se encontre bem, na parceria dos sábios deslumbrados”. (Euclides: 251).

As ideologias científicas cosmopolitas do Norte fazem da vida do Sul – sonho e o futuro de uma ilusão.

A relação entre realidade e ideologia define a crise na formação social. As relações técnicas de produção do século XXI são cibernéticas. NOS EUA, a estrutura de dominação ideológica é liberal do século XX. O partido democrata é uma forma ideológica liberal do século XX. Donald Trump começou primeiro tateando confusamente, em zigue-zague, a mudança do partido republicana liberal para uma forma ideológica segundo a ideologia mercantilista de Hamilton. Com David Vance, o discurso político republicano se torna mercantilista. Assim, a eleição de 2024 aparece como o choque capital entre o liberalismo de Biden e o mercantilismo republicano de Trump, Vance e a Suprema Corte.

A gramática da crise americana é a gramática do mundo em crise. Xi Jinping, Putin são o mercantilismo asiático e o partido democrata americano e a União Europeia são as formas ideológicas do velho liberalismo do final do século XX. Metade do eleitorado americano quer permanecer no século XX. A outra metade quer se aventurar no caminho do mercantilismo da atualidade do século XXI. Biden retira sua candidatura para a reeleição. O novo candidato do partido democrata conduzirá esse partido para o século XXI mercantilista?        

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O DESENCAIXE entre a realidade e o campo das ideologias é a causa de doença social no indivíduo e na multidão? Hegel tem uma palavra sobre isso:

“Reconhecer a razão como rosa na cruz do sofrimento presente e contemplá-la com regozijo, eis a visão racional, medianeira e conciliadora com a realidade [...]”. (Hegel.1990: 15).

Trata-se de conciliar com as ideologias de uma conjuntura:

“O conceito de conjuntura está situado, em Lenin, no campo das práticas e de luta de classes. A originalidade historicamente individualizada de uma formação social que é o objeto da prática política, é constituída em primeiro lugar pela ‘ação combinada das forças sociais. A homogeneidade de campo da conjuntura consiste na consideração das práticas de classe – em particular das práticas políticas de classe – relativas à sua ‘ação’ sobre a estrutura, como forças sociais”. (Poulantzas: 90).

Hegel diz:

“que o que é preciso é viver em paz com a realidade; ora a paz que nasce do verdadeiro conhecimento é uma paz mais calorosa”. (Hegel. 1990: 16).

Lenin buscou a paz no campo do conhecimento da conjuntura russa/europeia de sua época, sobretudo, através da crítica das ideologias científicas na prática ´política socialdemocrata. Como se aplicar a Lenin a fórmula hegeliana:

“Lorsque la philisophie peint sa grisaille dans la grisaille, une manifestation de l avie achève de vieillier. On ne peut pas la rajeunir avec du gris sur gris qu’au début du crépuscule que la chouette de Minerve prend son vol”. (Hegel.1940: 45).

Lenin recriou a ciência política materialista de Marx e Engels:

“Engels fundou o campo da ciência política materialista em 1844. (Marx e Engels. V. 2: 226). É a política do aparelho de hegemonia do Estado nacional inglês, da história da criação e recriação do Estado nacional na forma de governo monárquica constitucional”. (Bandeira da Silveira. 2024a: 8).  

Lenin criou um aparelho de hegemonia da revolução russa com sua gramática que foi aplicada na realidade pelo partido bolchevique. As “teses de abril” é a conciliação barroca de Lenin com a realidade como parasintática. Roger Bastide nos ajuda nessa interpretação da saúde mental de Lenin:

“Prediz assim Michel Foucault a próxima constituição de uma linguagem comum a todas as ciências humanas e que seria a linguagem do discurso do inconsciente. Pois, tal como faz a psicanálise, a etnologia não interroga o homem em si mesmo, interessando-se mais pela região secreta que torna possível um conhecimento sobre o homem, visto atingir as normas a partir das quais os homens realizam as funções da vida, as regras através das quais mantêm suas necessidades, os sistemas que servem de embasamento para os significados”. (Bastide: 187).

A conciliação com a realidade é a conciliação em uma tela gramatical narrativa de significados. Lenin ergueu a tela gramatical narrativa dos significados sociais de um campo político/de gosto russo que ele descobriu e inventou na prática política das massas dominadas. Lenin é o voo da Minerva em uma conjuntura de desaparecimento do Estado tzarista russo subdesenvolvido e feudal-burguês.

O Estado feudal-burguês russo cria e recria o campo heteróclito sublunar da política; como Hegel diz, conciliar com esse campo é entregar-se ao diabo:

“Este remédio caseiro, que consiste em tornar dependente do afeto o trabalho muitas vezes milenário do pensamento e do entendimento, talvez sirva para dispensar todo o esforço de conhecimento e de inteligência racional dirigido pelos conceitos do pensar. Em Goethe [uma boa autoridade], Mefistófeles diz o que já citei em outro livro: <Se desprezares a inteligência e a ciência, que são os dons mais altos da humanidade, entregas-te ao diabo e estais perdido”. (Hegel. 1940: 36).

Na atualidade do século XXI, o campo diabólico heteróclito é o do Estado burguês-feudal, virtual, pós-modernista liberal.     

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O Estado feudal-burguês virtual estabeleceu axiomas como a pós/verdade e de que no mundo só a narrativa é a realidade existente. Assim, ele faz o trabalho de desmoralizar a ciência do Estado territorial (Dumézil:39). Hegel enfrentou esse acontecimento em sua época na Europa:

“Ora como estes chicaneiros do livre-arbítrio se apossaram do nome da filosofia [gramática] e convenceram uma enorme parte do público de que uma tal maneira de pensar é a filosofia, tornou-se quase uma desonra falar filosoficamente da natureza do Estado, e não podemos queixar-nos das pessoas corretas que manifestam a sua impaciência ao ouvirem falar de uma ciência do Estado”. (Hegel. 1940:l37).

A época da soberania do capital capitalista no campo político da cultura do gosto desintegra a ciência política do Estado até Engels e Marx. Estes criarem uma gramática do Estado burguês moderno, do Estado como aparelho de Estado e poder de Estado:

‘Menos nos admiramos de ver os governos darem as costas para uma tal filosofia, tanto mais que entre nós a filosofia não é exercida, como nos gregos, como uma arte privada, mas que ela tem uma existência público, sobretudo, ou mesmo exclusivamente ao serviço do Estado. (Hegel. 19430: 37).

A ciência política universitária estadunidense não fala do Estado. Assim, ele se tornou uma ciência política contra o Estado territorial-nacional; ciência imperialista contra o Estado nacional-territorial dos povos subdesenvolvidos; estes perdem o direito natural de fabricar seu próprio Estado burguês moderno.

A ciência pós-modernista da globalização burguesa faz analogia com a filosofia popular contra a ideia e existência do Estado moderno - da qual fala Hegel:

“Com efeito, essa filosofia popular, ao dizer que o conhecimento da verdade é um fato de insensatez, torna idênticas a virtude e o vício, a honra e a desonra, o conhecimento e a ignorância, nivelando todos os pensamentos e todos os objetos [fenômenos] de um modo análogo ao que o despotismo imperial de Roma utilizou para a aristocracia e os escravos”. (Hegel. 1940: 40).

A ciência política da pós-modernidade leva o estudante a desprezar a materialidade do mundo fabricado como aparelho e com aparelhos de Estado - em um taque sem quartel e frontal à ciência política materialista-dialética de Engels e Marx. Ela abole o axioma paraconsistente sobre a verdade da experiencia da prática política do Estado:

Hic Rhodus, Hic salus. (Hegel. 1940:43).

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Com Bolsonaro, o Brasil conheceu a forma do Estado irracional, isto é, o aparelho de Estado que se transforma em uma máquina de guerra pessoal do presidente da república. Bolsonaro dizia “meu exército”, os jornalistas falavam de um Estado miliciano:

“L’Etat rationnel constitue, dans la philosophie hégélianne du droit, l’aboutissement de tout processus du droit, et de as forme ultime, telle que’elle est comprise sous le concept de Sittlichkeit: il est la forme accomplie, parfait, de la socialite, dans laquelle cell-ci trouve les conditions d’une complète r´conciliation avec elle-même. D’où son caractère <divin>, maintes fois réaffirmé par Hegel: L’Etat est la réalization absolue de l’Esprit dans le monde, aprés laquelle rien d’autre, c’est-à-dire rien de supérieur, ne peut plus être pensé. En ce sens on peut parler de la fin de l”Etat, pour dire que l’Etat est lui-même une fin, le terme d’un processus dont il constitue la réalization la plus achevée”. (Macherey: 85).

Hegel está falando do Estado territorial europeu? Ou ele fala de um Estado virtual como realização absoluta do Espírito? Em analogia, Hegel não estaria se referindo ao Estado feudal-burguês virtual, pós-modernista, liberal, como processo de conclusão da história do Estado europeu ou ocidental. Bem. O Estado gramatical narrativo hegeliano, por analogia, como fim do Estado, só pode ser um Estado feudal, virtual, modernista, mercantilista do dominado do século XXI.     

A relação entre Estado e tela metafísica [Espírito] revela a ideia do fim do Estado feudal, virtual, modernista, mercantilista:

“Tout au moins n’élude-t-il pas – comment un dialecticien conscient pourrait-il le faire? – la contradiction inhérente au concept de fin, qui designe à la fois et concurremment un but et un terme, le moment d’un acccomplissement et celui d’une disparition. C’est encore dans ce sens problématique qu’il faut considérer la notion de fin  l’Etat, sur laquelle s’achève l’exposé rational du monde objective de l’Esprit. Cela signifie que, pour Hegel, l’Etat ne constitue pas une fin en soi, mais qu’il n’est lui-même qu’un moment déterminé, et donc limite, dans le processus global de l’Esprit: dans l’Etat, l’Esprit est libre objectivement, il ne l’est pas absolument”. (Macherey: 87-88).

  O fim do Estado não é o fim do campo político da cultura, este articulado e gerido por uma plurivocidade de Tela gramatical.

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Existe uma ciência política dialética com existe uma ciência política materialista? Poulantzas fala das contradições no Estado:

“Là, les contradictions de classe sont extérieures à l’Etat; ici, les contradictions de l’Etat sont extérieure aux classes Sociales”. (Poulantzas.1978 :145).

Althusser fala das contradições entre os aparelhos ideológicos de Estado. (Althusser:85). Porém, o “Estado dialético marxista” parece não se apoiar em um campo da lógica dialética. Newton da Costa procurou criar um campo da lógica dialética paraconsistente:

“No referente ao plano abstrato-formal, já vimos que pode haver objetos gozando de propriedades contraditórias: isto se passa com certos objetos abstratos aos quais se referem as teorias paraconsistente. Assim existem contradições verdadeiras de natureza abstrata e formal. Porém, o problema crucial é o de saber se a tese de Hegel vale no domínio dos objetos reais”. (Newton da Costa: 232).

A dialética existe no campo das ideologias científicas. Ela existe no campo política da cultura do gosto? A cultura é constituída por formas ideológicas (Marx. 1974:136). As ideologias existem materialmente nos parelhos ideológicos e nos aparelhos repressivos de Estado. As ideologias científicas, de algum modo, fazem funcionar os aparelhos como, por exemplo, o aparelho jurídico. Então, há dialética na realidade material dos aparelhos. O Estado é uma tela gramatical que acolhe o paradoxal e a aporia:

“O traço marcante das aporias, pragmaticamente falando, consiste na perplexidade que nos provocam aos princípios aceitos: não se sabe, com exatidão, quais devem ser derrogadas e quais os merecedores de conservação. Com o advento da lógica paraconsistente, os paradoxos aparecem sob luz nova e corroboram nossa tese segundo a qual a evolução da lógica se processa dialeticamente. Com efeito, aporias tidas e havidas como superadas ressurgem com toda sua força: de um lado há o problema de não se dispor de critérios indiscutíveis para se preferir a solução clássica à paraconsistente; de outro, nas próprias lógicas paraconsistentes renascem algumas aporias”. (Newton da Costa: 228-229).

A contradição faz pendant com a contradição antagônica na qual não há solução no horizonte do campo político - para os problemas da prática política:

“Noutras palavras, quando um paradoxo se reduz a falácia não é de se esperar que, para superá-lo, sejam necessárias grandes modificações na estrutura da ciência, pois, em caso contrário, ele seria aporia. Então, se formos capazes de detectar algumas características das aporias propriamente ditas, que as distingam claramente dos paradoxos falaciosos, poderíamos argumentar que possivelmente espelham contradições objetivas e reais; sua superação, sem dúvida, acarretará transformações radicais na ciência”. (Newton da Costa: 234-235).

Por analogia ente campo científico e campo político, neste as contradições objetivas e reais só podem se superadas com a mudança da soberania de uma determinada gramática na estrutura do campo político da cultura do gosto. Hoje, há a soberania militar da gramática do Estado feudal-burguês pós-modernista liberal no campo político planetário. Ele vive uma contradição antagônica com o Estado feudal modernista mercantilista do dominado. O primeiro é o velho ocidente que não quer morrer; o segundo é o novo que nasceu na China.   

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É possível falar em contradição não-conciliável no campo político territorial?

“A existência da economia subdesenvolvida requer e sustenta o campo político cesarista no regime de 1988. Portanto, a revolução barroca dentro da ordem constitucional teria que se transformar em revolução barroca contra a ordem subdesenvolvida no campo político realmente existente. (Bandeira da Silveira. 2024b: cap. 38).

A contradição não-conciliável ou aporia é um problema da lógica dialética paraconsistente. Newton da Costa dá um passo à frente e dois atrás:

“Resumindo, a superação das aporias, no terreno das ciências reais, faz-se usualmente à custa da completude e do poder explicativo das teorias, ou mediante à introdução de conceitos teóricos deveras afastadas da experiência imediata, entre outros estratagemas, e muitas vezes originam teorias alternativas. Ora, se as aporias com que nos defrontamos na ciência fossem tão-somente falácias, não teria cabimento, pelo menos à primeira vista que possuíssem semelhantes consequências. Por conseguinte, concluímos, com Petrov, que talvez elas constituam aporias espelhando contradições reais, ou, ao menos, que assim aconteça com diversas dentre elas. Mas algo é certo: como em geral a eliminação delas é possível e, entre limites razoáveis, funciona, nosso argumento não se mostra concludente para nos garantir, com segurança e cabalmente, a existência da contradição na realidade”. (Newton da Costa: 236).

Segue a resolução da aporia paraconsistente:

“Logo, o problema da existência de contradições reais não se encontra ainda resolvido. Quiça, não venha a ser solucionado satisfatoriamente em futuro próximo. O que se pode dizer, no entanto, é que a priori, especialmente apelando para a lógica, não se justifica nem se podem banir as contradições. A existência ou não de contradições reais só se estabelecerá a posteriore pela ciência. E, como tudo sugere, afigura-se mais fácil provar a verdade da tese de Hegel, do que sua falsidade; com efeito, uma constatação, apenas, de contradição real, comprovaria a tese de Hegel, ao passo que nenhum número finito de constatações seria suficiente para falsificá-la. (Newton da Costa: 236-237).         

A relação dialética insolúvel entre teoria e prática, na prática política, pode ser superada pela relação da tela gramatical com a prática política no campo político cultural paraconsistente do gosto.

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Um problema da ciência política-dialética é o da relação entre virtual e territorial, Espírito e matéria, gramática e aparelho de Estado. A relação entre Estado virtual e Estado territorial é como se fosse a relação entre coroa e soberano:

“Ainsi le roi tient sont pouvoir de la couronne dont il n’est que le dépositaire. Cette notion mystique s’attache aussi au skeptron homérique: un personagem ne règne, ne juge, ne harangue que le skeptron aux mains”(Benveniste: 31).

O Estado virtual é a coroa do Estado territorial, é a gramática do aparelho de Estado, pois, isso é uma nova definição do Estado integral como aparelhos repressivos de Estado, aparelhos ideológicos e aparelhos de hegemonia espiritual do Estado integral. A dialética material virtual e territorial constituiu a formação social territorial gramatical. Assim se põe no campo político o problema da relação entre lógica e gramática:

 “O argumento da linguagem natural: todos esses problemas dependem do fato óbvio de que qualquer construção logicamente rigorosa dos contextos racionais acha-se comprometida com a linguagem natural (sem ela, por exemplo, não se vê como edificar sistemas lógico-formais e suas semânticas) e que as linguagens comuns não são nem podem ser logicamente exatas”. (Newton da Costa: 239-240). 

O campo político da cultura do gosto da multidão só vive [na prática política] problemas da gramática em si ou verbal-visual das ideologias científicas em contextos racionais - como o da conjuntura dialética-materialista:

‘Daí nossa conclusão: parece que o conhecimento científico sempre estará envolvido em contradições semióticas, ao menos com as de sistematização. Assim sendo, o uso de lógicas paraconsistentes afigura-se mais sensato que o da clássica na organização geral dos contextos racionais”. (Newton da Costa: 240).

A negação recíproca entre o Estado virtual e o Estado territorial é um fenômeno muito real:

“Assim, trata-se de negação efetiva, de negação forte, e não de negação que expressa, digamos, alguma forma de oposição, como ocorre, consciente ou inconscientemente, nas exposições de vários partidários da dialética. Logo, a negação, especialmente nas sentenças atômicas, expressando fatos reais, possui caráter ontológico: tem significado real e a verdade ou falsidade de enunciados onde figura a negação depende da estrutura ao universo. E algo análogo sucede com a negação nas teorias paraconsistentes de conjuntos e em outras teorias desse tipo, bem como nas contradições semióticas, embora, como se verá adiante, a negação tenha outros significados ‘fracos’. (Newton da Costa: 240).

A tela gramatical paraconsistente permite o paradoxo, e a aporia ou contradição inconciliável funciona como negação ou motor da transformação do campo político da cultura do gosto [por exemplo barroco ou grotesco]. A negação fraca leva a mudança na forma de regime; a negação forte produz uma mudança da soberania da tela gramatical e assim altera a gramática do campo político. Um fenômeno observável é o desencaixe da nova gramática com o campo de ideologias científicas da velha gramática. A gramática do capital capitalista liberal foi substituída pela gramática do capital feudal mercantilista. Nas Américas, a superestrutura ideológica da gramática do capital capitalista do século XX permanece no século XXI, este com uma nova gramática do capital-feudal. O desencaixe apontado se realiza como crise orgânica do campo político como um todo.

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Um grande esforço estabeleceu a tela gramatical narrativa dialética paraconsistente:

“recentemente se iniciou movimento sistemático para se precisar a doutrina dialética. E o surpreendente foi que as concepções [políticas] dialéticas se aclararam após as análises feitas, havendo motivos fortes a favor da tese central da dialética e, em particular, da existência de contradições reais, ainda que não se mostrem completamente conclusivos”. (Newton da Costa: 245).

A tela dialética narrativa ainda apresenta problemas paraconsistente:

 “Por outro lado, uma questão se impõe: A faixa, inerente a qualquer predicado real, monádico ou não, decorre de imprecisões da linguagem [ambiguidade] ou de fatores objetivos, ou seja, da realidade? Noutras palavras: É a vaguidade discutida subjetiva ou objetiva? Acreditamos que ela é, para utilizarmos termo que se impõe, mista; resultado simultaneamente de fatores reais e de caracteres do sujeito cognoscente. Sem tratarmos de pormenores, insistamos em determinado aspecto da questão: parece evidente a estrutura das sentenças atômicas ter algum substrato real. Por outro lado, os predicados e os objetos, no que eles possuem de geral, consistem em produtos da razão constitutiva: são categorias racionais; mais ainda, nós é que definimos os vários tipos de cor e, em geral, os predicados que nos interessam, com fundamento no real”. (Newton da Costa: 246). 

É a razão linguística da tela gramatical dialética que acolhe os fenômenos - que emergem do real - e lhes dá nome e predicados, os transformando-os em objetos inteligíveis no campo político da cultura do gosto.  O campo político dialético-materialista existe em função da unidade dos opostos:

“Em síntese, o princípio da unidade dos opostos contribui para tornar a existência das contradições reais altamente provável”. (Newton a Costa: 247).

A unidade dos opostos estabelece um campo político do semelhante/ dissemelhante, contradição e do heterogêneo; a criação de uma região do heteróclito já é a crise catastrófica do campo político da cultura do gosto:

“O aspecto da crise moderna que se lamenta como ‘onda de materialismo’ está ligado ao que se chama de ‘crise de autoridade’. Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais ‘dirigente’, mas unicamente ‘dominante’, detentora da pura força coercitiva, isto significa exatamente que as grandes massas se desencaixaram das ideologias tradicionais, não acreditam mais no que antes acreditavam etc. A crise consiste justamente no fato de que o velho não quer morrer e o novo não pode nascer; neste interregno, emergem os fenômenos monstruosos mais variados”. (Gramsci: 187).     

Hoje, a crise é da negação forte do Estado feudal-burguês pós-modernista liberal do dominante pelo Estado feudal modernista mercantilista do dominado. Vivemos uma época heteróclita na qual surgem fenômenos políticos monstruosos: A superestrutura ideológica da gramática do Estado feudal-burguês liberal do século XX invadiu o século XXI e, assim, cria e recria a região das ideologias científicas verbal-visual monstruosas - para as grandes multidões, pois, desencaixada da nova gramática da realidade do século atual.      

 

ALTHUSSER, Louis. Poisitions. Ideologia e aparelho ideológico de estado.

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Ciência política materialista. EUA: amazon, 2024a

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Além da época posmoderna. EUA: amazon, 2024b

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BASTIDE, Roger. Sociologia e psicanálise. SP: USP, 1974

BENVENISTE, Émile. Le vocabulaire des instituitions indo-europénnes. Vol. 2. Paris: Minuit, 1969

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 2. Morar e cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1996

DUMÉZIL, Georges. L’oublie de l’homme et l’honneur ds dieux. Esquisses de mytrologie. Paris: Gallimard, 1985

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GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. RJ: Civilização Brasileira, 21014o

HEGEL. Principes de la philosophie du droit. Paris: Gallimard, 1940

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MACHEREY E LEFEBVRE, Pierre e Jean-Pierre. Hegel et la société. Paris: PUF, 1984

MARX. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974

NEWTON DA COSTA. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. SP; Hucitec, 2008

POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. SP: Martins Fontes, 1977

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