sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Dominação, poder, arte, mitologia

 

José Paulo 

 

 

UM PODER não violento começa na discussão sobre a dominação na sociologia:

“Segundo a definição já dada, chamamos <dominação> a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas. Não significa, portanto, toda espécie de possibilidade de exercer <poder> ou <influência> sobre outras pessoas. Em cada caso individual, a dominação (<autoridade>) assim definida pode basear-se nos mais diversos motivos de submissão: desde o hábito inconsciente até considerações puramente racionais, referentes a fins. Certo mínimo de vontade de obedecer, ou seja, de interesse (externo ou interno) na obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação”. (Weber. 1984: 170).

O poder:

“significa toda probabilidade de impor a própria vontade em uma relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade”. (Weber.1994: 33).

O poder não necessita de obediência; ele vai contra a resistência, portanto, ele implica o uso da violência para a realização da própria vontade.

Hannah Arendt diz:

“Visto que a autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Todavia a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, autoridade em si mesmo fracassou. A autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, autoridade é colocada em suspenso. Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária, que sempre é hierárquica. Se autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos”. (Arendt:129).

Habermas fala do poder em relação ao campo político do indivíduo e à manipulação das convicções do indivíduo e multidão. Quem manipula é um agente no campo político da sociedade/Estado; Habermas fala  do poder em Arendt:

“Porque, segundo a sua hipótese, o poder só pode surgir nas estruturas da comunicação não-coercitiva; não pode ser ‘gerado de cima’”. (Habermas: 114).

Poder e autoridade romana é a relação que Arendt estabelece em um contraponto à sociologia do poder e dominação de Weber. A dominação não é a vontade de se submeter à alguém, não depende da vontade de ser assujeitado; o poder não é uma relação de força na qual um agente do poder encontra resistência ou contrapoder.

Foucault se tornou o teórico do biopoder na universidade francesa:

“Aquém, portanto, do grande poder absoluto, dramático, sombrio que era o pode da soberania, e que consistia em poder fazer morrer, eis que aparece agora, com essa tecnologia do biopoder, com essas tecnologias do poder sobre a <população> enquanto tal, sobre o homem enquanto ser vivo, um poder contínuo, científico, que é o poder de <fazer viver>. A soberania fazia morrer e deixava viver. E eis que agora aparece um poder que eu chamaria de regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer”. (Foucault: 220).

 Foucault fala da relação do poder com o ser vivo no campo político sociedade/Estado. Para o brasileiro, a relação entre biopoder e racismo é algo da realidade sensível. Há toda uma legislação penal que castiga o racismo:

“E aí, creio eu, que intervém o racismo. Não quero de modo algum dizer que o racismo foi inventado nessa época. Ele existia há muito tempo (...). o que inseriu o racismo nos mecanismos do Esatdo foi mesmo a emergência desse biopoder”.

“Com efeito, o que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. (Foucault: 227).

O biopoder faz a racialização da sociedade de classes no Brasil. Há classes que devem viver e classes que devem morrer; o aparelho policial age de acordo com lógica do biopoder da racialização para as classes populares negras. Isso é bem conhecido e reconhecido, entre nós. No entanto, esse fenômeno não é o poder de Arendt, pois, é violência real. Então, há o poder arendtiano no Brasil?

                                                                     2

Freud fala de um poder estético funcionado pelo princípio de prazer no campo político do indivíduo [e da multidão]:

“A consideração desses casos e situações, que têm a produção de prazer como seu resultado final, deve se empreendida por algum sistema de estética [...]. (Freud. vol. XVIII: 29).

Freud fala da relação do princípio do prazer como experiência agradável (ética) e com a experiência desagradável ou páthos. A dominação da criança sobre uma experiência da brincadeira ou jogo infantil acaba se referindo ao outro:

“Quando a criança passa da passividade da experiência para a atividade do jogo, transfere a experiência desagradável para um dos seus companheiros de brincadeira e, dessa maneira, vinga-se num substituto”.  (Freud. v. XVIII: 29).

Ter poder sobre o outro é colocá-lo na experiência do pathos, do desagradável. O agradável e desagradável é um objeto de Aristóteles:

“A vida de atividade conforme à excelência é agradável em sim, pois o prazer é uma afecção da alma, e o agradável para cada pessoa é aquilo que se costuma dizer que ela ama [...]”. (Aristóteles: 26).

Amar o agradável como princípio de prazer como afecção do campo político do indivíduo [ou da multidão}, eis algo que se refere a dominação no campo político/estético.

A ética é a estética/política do moderno da antiguidade. O páthos é a estética/política do páthos, ou seja, o princípio do grotesco que pode fazer do desagradável do heteróclito [em relação ao moderno]  uma fonte de energia de prazer:

O páthos é o contrário do gramático, ele é o grau zero da gramática:

“Um homem somente será um gramático, então, quando disser algo pertinente à gramática e à maneira dos gramáticos, ou seja, graças aos conhecimentos gramaticais que ele mesmo possuir”. (Aristóteles: 39).

A gramática da estética/política é, ou da ordem do princípio do prazer ou grau zero da estética moderna, ou seja, estado de páthos ou experiência do desagradável relacionada ao princípio de prazer estético do heteróclito, ou seja, o que está do lado de fora da gramática do renascimento grego da antiguidade

“Algumas coisas são agradáveis por natureza, e destas umas são irrestritamente agradáveis, enquanto outras o são em relação a determinadas classes de animais ou de pessoas; por outro lado, outras não são naturalmente agradáveis, mas algumas destas se tornam agradáveis por causa de aberrações, outras por causa de hábitos e outras ainda por causa de taras”.

O páthos pode funcionar pelo princípio do prazer da experiência agradável. Continua:

“Sendo assim, é possível descobrir em relação a cada uma das espécies da segunda classificação afecções de caráter análogas ás identificadas a respeito do primeiro caso; refiro-me às afecções bestiais, como no caso da fêmea que, segundo dizem, abria o ventre das fêmeas grávidas e devorava os fetos; ou das coisas com que, de acordo com certas narrativas, algumas das tribos selvagens do litoral do mar Negro costumavam deleitar-se – com alimentos crus ou carne humana, ou com a troca de crianças entre as tribos para serem seviciadas em suas festas – ou como na história que se conta de Fálaris. (Aristóteles: 137).

Aristóteles fala do princípio doo prazer de uma estética/política grotesca selvagem que se opõe ao renascimento da antiguidade grega.

                                                                        3

Freud arte do significado estético como produção da intenção e vontade de expressão do artista nos pormenores da escultura do “O Moises de Michelangelo:

Mas prossigamos na suposição de que esses pormenores possuem significação. Há uma solução que removerá nossas dificuldades e permitirá o vislumbre de um novo significado”. (Freud. v. 23:267).

Resolvo partir do fantasma como objeto ideal ou virtual, como pressuposto saber; e da fantasia como objeto real ou agir no campo político estético, ambos no campo político do indivíduo ou da multidão, ou da polis, ou do Estado lacaniano gestor da mais-valia pública que construí polis obra de arte e mitologia política:

“O surgimento e primeiro desenvolvimento da poesia lírica na Grécia são simultâneos ao florescimento do da liberdade e surgimento do republicanismo. Primeiramente a poesia se vinculou às leis e serviu para transmiti-las. Logo, como arte lírica, se entusiasmou pela fama, liberdade e bela socialidade. Tornou-se a alma da vida pública, a que dava esplendor às festas (...)   O elemento rítmico dos Estados gregos, a clareza de consciência dos gregos, totalmente voltada para si mesmos, para sua existência e seu agir, inflamou as paixões mais nobres que eram dignas da musa lírica. Na mesma época que a lírica, a música animava as festas e a vida pública. Em Homero ainda há, inclusive sacrifícios e cultos divinos sem música. Da identidade da epopeia homérica também faz parte o princípio heroico, o princípio da monarquia e da dominação”. (Schelling: 273).

É possível estabelecer analogias entre a cultura política estética grega e a nossa cultura?              

                                                          4

No campo/político estético da antiguidade, o poder se dedica a produção da mitologia como obra-de-arte, e ele é parte do Estado lacaniano/estético que produz polis obra-de-arte; o campo estético/político é movido pelo princípio do prazer do gosto.

O campo político/estético possuía fenômenos como o cesarismo e a insurreição:

“Os primeiros ritmos líricos, como se observou, foram aqueles em que se cantaram as leis dos Estados livres: isso ainda ocorre em Sólon. As canções guerreiras de Tirteu eram ‘aguilhoadas ‘por uma paixão’ inteiramente objetiva. Alceu foi o cabeça dos conjurados contra os tiranos. Combatendo-os não só com a espada, mas também com seus cantos”. (Schelling:274).

O campo político/estético antigo é diferente do moderno. Este corte histórico estético é assim:

“Assim como o máximo florescimento da arte lírica dos gregos coincide com o surgimento da república, o florescimento máximo da vida pública, assim também os primórdios da lírica moderna coincidem com a época de agitações públicas no século XIV, e com a dissolução geral da liga republicana e dos Estados italianos. Quando a vida pública desapareceu, em maior ou menor medida, ela teve de se voltar para dentro. Os tempos venturosos que a Itália viveu graças a alguns príncipes magnânimos, principalmente os Médices, vieram só mais tarde e favoreceram bastante a epopeia romântica, que se aperfeiçoou em Ariosto, Dante e Petrarca; os primeiros criadores da poesia lírica, surgiram nos períodos da insurreição, da dissolução social, e seus cantos, quando se referem àqueles objetos externos, exprimem, em alto e bom som a infelicidade daquela época”. (Schelling: 275).

Há relação entre insurreição estética e a realidade heteróclita?

A mitologia da antiguidade não exclui o heteróclito do campo político/estético, ele se localiza na escuridão da profundida:

“Como germe comum dos deuses e dos homens, o Caos absoluto é noite, trevas. Ainda informes são também as primeiras figuras que dele a fantasia faz nascer. Um mundo de figuras informes e monstruosas precisa submergir para que possa surgir o reino ameno dos deuses venturosos e duradouros. Também nesse aspecto as criações poéticas gregas permanecem fiéis à lei de toda fantasia. Os primeiros descendentes dos encontros amorosos de Urano e Gaia ainda são monstros, gigantes, de cem braços, Ciclopes imponentes e os selvagens Titãs, descendentes diante dos quais o próprio progenitor se horroriza aos quais no Tártaro de novo se oculta. O Caos tem de devorar novamente a própria pole. Urano, que esconde os próprios filhos, tem de ser suplantado: começa o domínio de Cronos. Mas também Cronos devora os próprios filhos”. (Schelling:57).

A mitologia fala, por alegorias e outras figuras de gramática, de um mundo no qual domina os monstros; ela fala de uma realidade heteróclita do campo político/estético cesarista, o mais primitivo possível - que os antigos designavam como tirania.             

O cesarismo mitológico encontra-se no começo do mundo político e pode anunciar o fim da política.

 

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. SP: Perspectiva, 1988

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: EDUNB, 1992

FOUCAULT, Michel. Il faut défendre la société. Paris: Gallimard/Seul, 1997

FREUD, Sigmund. Obras Completas. Volume 13. O Moises de Michelangelo (1914). RJ: Imago, 1974

FREUD, Sigmund. Obras Completas. Além do princípio do prazer. RJ: Imago, 1976  

HABERMAS. Sociologia. SP: Ática, 1980

SCHELLING, F. W. J. . Filosofia da arte. SP: EDUSP, 2001    

WEBER, Max. Economia y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1984

WEBER, Max. Economia e sociedade. V. 1. Brasília; UNB, 1994        

 

  

 

       

Nenhum comentário:

Postar um comentário