quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Políbios, Dalton Trevisan

 

José Paulo 

 

Há a relação entre discurso e perversão:

“O sofrimento tem sua linguagem, e é realmente uma pena que qualquer um posso dizê-lo sem saber o que diz. Mas, enfim, esse é precisamente o inconsciente de todo discurso”. (Lacan. S. 16: 68).

Rousseau põe e repõe a criança e o <bom selvagem> fora da perversão, fora do inconsciente de todo discurso. (Sloterdijk: 92-93). Dalton Trevisan põe e repõe a criança no inconsciente do discurso do perverso.

Dalton faz a gramática literária da dor do homem, mulher, criança:

“Umas cuidam bem de suas protegidas, assim a galinha com o pintinho. Ah, criatura mais perversa não existe que a criança doente de solidão: essa judia da amiguinha, castiga-a, devora a milagrosa – embora azeda – laranja que, saiba você como, surgiu entre os dedinhos rapinantes, sem dar um gomo à companheira, que engole em seco. E não bastasse, espreme a casca no seu olhinho guloso. Se a menos faz xixi na cama, denunciada à vigilante, que a exibe no meio do pátio – o lençol na cabeça até secar”. (Trevisan: 35).

O brutalismo do capital com a criança tem na imagem do dedo decepado pela máquina de fiar o significante da relação da dor que o capital produz na criança agenciando o inconsciente perverso desse inconsciente de discurso capital/criança. (Bandeira da Silveira. 2021).

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A prática política da história tem dois aspectos: tikhé e ação dos homens. A tikhé é <sorte> ou acaso. Mas como ela se traduz para a ação do homem:

“É-se tentado então, em casos desse gênero, a falar num delírio de origem divina e dizer que todos os macedônios foram atingidos coletivamente pela cólera dos deuses, como se verá claramente em seguida...”. (Políbios: 542).

O delírio da multidão de uma prática política é tikhé; é um fenômeno que está fora do cálculo do agente perverso da história quanto à sua gramática da dor do acontecimento:

“1. Embora a Hélade em conjunto e as suas diversas regiões separadamente hajam sofrido reveses frequentes, a nenhuma de suas derrotas anteriores pode-se aplicar com mais prioridade o nome de desastre em toda a extensão da palavra do que aos eventos da minha própria época. De fato, devemos sentir comiseração pelos helenos diante dos seus sofrimentos, mas também não podemos dexar de pensar que as suas próprias iniciativas lhes foram ainda mais ruinosas que a ação do inimigo quando conhecemos detalhadamente a verdade. [...] Mais ainda; os cartagineses, tendo sido completamente exterminados pela calamidade que os atingiu, não puderam sentir os seus sofrimentos mais tarde, enquanto os helenos, continuando a presenciar s suas desgraças, passaram de pai para filho a memória de seus infortúnios. Sendo assim, se considerarmos que os sobreviventes, sujeitos à castigos, merecem mais comiseração que os combatentes mortos na própria batalha, devemos julgar as calamidades sofridas pelos helenos mais lamentáveis que o destino de Cartago, salvo se, manifestando-nos sobre o assunto, ignoramos toas as noçõs de nobreza e decoro e fixarmos os nossos olhos somente na vantagem material”. (Políbios: 543).

Um povo como modo de ser psíquico perverso é a metonímia da linguagem do sofrimento do inconsciente do discurso político.  

A gramática da dor do povo helênico (da revolução barroca da antiguidade) é análoga a gramática da dor da criança barroca de Dalton Trevisan:   

“2. Supõe-se que  o maior pavor causado pela Sorte aos helenos tenha sido a invasão da Europa por Xerxes. Com efeito, naquela ocasião todos eles estiveram em perigo, mas bem poucos foram realmente atingidos. Os mais sacrificados foram o atenienses; estes, porém, prevendo sabiamente o que viria a acontecer, abandonaram a sua cidade, levando consigo as suas mulheres e crianças. Sem dúvida eles sofreram grandes males na época, pois os bárbaros, tornando-se senhores de Atenas, destruíram impiedosamente a cidade, mas os atenienses não incorreram em qualquer em qualquer censura ou vergonha; ao contrário, a sua conduta foi considerada por todos a mais gloriosa pelo fato de, relegando a segundo plano qualquer consideração a respeito do que lhes poderia ocorrer, terem decidido compartilhar a sorte dos outros helenos. Consequentemente, graças à sua escolha corajosa eles não somente recuperaram sem demora a pátria e a sua terra, mas dentro de pouco tempo estavam disputando com os lacedemônios a hegemonia da Hélade”. (Políbios: 544). 

Atenienses vivem e se comportam – na prática política - como homem barroco da antiguidade, não como ratazana perversa sublime como Alexandre, o Grande:

“Algum tempo depois os tebanos assistiram á destruição total da sua cidade quando Alexandre o Grande, pretendendo marchar contra a Ásia, pensou que castigando os tebanos atemorizaria as outras cidades, levando-as a ficar-lhe submissas enquanto ele se dedicava à execução dos seus próprios planos. Mas nesse caso todos se apiedaram dos tebanos pelo tratamento cruel e injusto de que foram vítimas, e ninguém tentou justificar a conduta de Alexandre”. (Políbios: 544).      

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Dalton Trevisan faz do conto “Morte na praça” o palco da ratazana perversa da vida privada. Jonas é um assassino e Anita a esposa que trai Jonas, gerando uma situação de vingança irrevogável:

“Os perversos insistiam:

-Tão pálida, tão magra.

Manhã seguinte Jonas estava morto. Se Anita o envenenou ou se comeu, enganado, o prato com arsênico que a ela destinava...Anita chorou no enterro, o vestido de cetim preto e, sob o véu, a boquinha pintada. De noite a casa, escura seis meses, iluminou o canto da praça, atraindo os grandes besouros que, ao cair, batiam a negra carapuça na pedra e, de costas, agitavam as patinhas no ar. Escândalo da cidade, a luz do corredor apagava e acendia. Não soubera Anita da fuga do escrivão”. (Trevisan: 84).

A ratazana animal é um ser que vive na cidade sem ser perturbada pelos homens, mulheres e crianças:

“As pancadas do martelo faziam parar, curiosa e rabinho satisfeito, a velha ratazana que rebolava no pó amarelo”. (Trevisan: 85).

Anita faz companhia para a ratazana animal:

“Outro dia ela abriu a farmácia, você não tinha coragem de escolher chupeta ou escova de dentes. Sentada atrás do balcão, olho dourado na penumbra. Por vezes, andava até a porta: uma ratazana pardacenta e gorda cruzava a rua, da igreja para o hospital. Apenas um caboclo pediu um copo de água”. (Trevisan: 84).

O povo da cidade não se mete com a ratazana perversa ou a ratazana bicho. A cidade não tem Estado territorial, tem igreja e hospital. Há uma analogia virtual com a ratazana perversa de Políbios? 

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A imagem da ratazana perversa grotesca se contrapõe a imagem do santo:

“Com a revelação jurou que, antes de voltar para a Tutuca, daria um tiro no ouvido. Insistiam os amigos que dona Maria era santa, ele rato piolhento de esgoto. Santa podia ser, mas imprestável na cama. (Trevisan: 152).

Um povo pode ser uma ratazana perversa grotesca que se define pela insensatez; ele não possui gramática de sentido da prática política? Ele está fadado ao desastre:

Políbios:

“De um modo geral tratava-se no passado de reveses isoladas ou de grupos de cidades, umas aspirando á hegemonia ou querendo impor as sus pretensões, e outras opondo-se a ataques traiçoeiros de tiranos e de reis. Sendo assim, raramente s vítimas de infortúnio incorriam em censura, ou era possível usar com propriedade em relação a elas a expressão <desastre>, pois deve-se considerar que todos os povos ou indivíduos vítimas de calamidades extraordinárias são infortunados, mas somente se pode falar em desastre no caso dos que se cobrem de opróbio em consequência de sua própria insensatez. (Políbios: 545).

A ratazana perversa grotesca surge em períodos de calamidade política; com a multidão vivendo o delírio de que aquela é a expressão subjetiva das condições objetivas. 

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No conto “Os velhinhos”, a crítica da gramática do perverso se desenvolve com o velho; antes a criança aprecia como campo da criação de perverso verdadeiros; o velho se acrescenta à criança. A criança com seu teatro do mundo lúdico e o velho com seu teatro da dor como a priori, com seu infortúnio. Qual a relação com os povos gregos? A perversão dos povos da antiguidade é a da ratazana perversa que exclui criança e velho, e mulheres:

“15. Com a morte de Critôlaos, comandante dos aqueus, em face da lei segundo a qual se acontecesse algo ao comandante em exercício este seria substituído pelo seu antecessor até a realização da próxima assembleia ordinária dos aqueus, voltou a Diaios a direção dos assuntos da Confederação. Consequentemente, após mandar uma mensagem a Mégara ele se dirigiu a Argos, de onde expediu uma carta a todas as cidades da Confederação com instruções para libertarem doze mil escravos na flor da idade nascidos e criados nas mesmas e mandá-los a Corinto depois                                                                    de armá-los. Díaios, todavia, fixou o número de escravos a serem mandados por cada cidade ao acaso e iniquamente, como sempre fazia em relação à escravos outros assuntos. Se as cidades não dispusessem do número suficiente de escravos criados nas mesmas, teriam que libertar outros para suprir a deficiência.  Vendo, por outro lado, que os recursos em dinheiro disponíveis pelas cidades estavam muito reduzidos por causa da guerra contra os lacedemônios, Diaios compeliu-as a fazerem arrecadações especiais com o  objetivo de obter contribuições dos habitantes mais ricos, não somente dos homens mas também das mulheres, ordenando simultaneamente a todos os cidadãos em idade militar que se apresentassem armados em Corinto. Em decorrência dessas medidas havia em todas as cidades apenas confusão, distúrbios e consternação. Os habitantes invejavam os homens mortos em combate e lamentavam a sorte dos que estavam em marcha, e além disso todos choravam incessantemente, como se previssem o futuro”> Políbios:549-550).

O comando das cidades nas mãos de uma ratazana perversa grotesca equivale a forma de governo tirânica transportada para a guerra:

“Os cidadãos sofriam muito com a imprudência e a insolência dos escravos, alguns dos quais acabavam de ser postos em liberdade, enquanto os demais mostravam-se excitados com a esperança de se verem livres. Ao mesmo tempo os homens eram obrigados a contribuir indiscriminadamente, sem qualquer consideração quanto as suas posses e sem que tivessem aprovado essas medidas, enquanto as mulheres deviam despojar-se das suas joias e dos objetos preciosos de seus filhos, como se tivessem decidido contribuir para a sua própria destruição”. (Políbios: 550).

A enorme dor infligida aos povos é um elemento da crítica da gramática do poder da ratazana perversa que aparece em Dalton Trevisan, ao considerar o povo de velhinhos. 

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A crítica da gramática do perverso tem na crueldade uma afecção natural do modo de ser psíquico do significante homem velhinho:

“Lavam na pia o lenço, a meia, a cueca, estendidos para secar no barbante sobre a cama. Louco de solidão, Candinho introduziu escondido um gato. Queria segurá-lo o tempo inteiro no colo, debatia-se, arranhava, miando pelos cantos. Os outros se queixavam de invejosos. Um deles empurrou o animal no poço do elevador, o bichinho uivava desesperado. Ninguém queria descer para resgatá-lo. Ficou dias lá no fosso. O dono aflito atirava migalhas de pão e retalho de carne crua. Na ponta do cordel baixou uma latinha com água. E armou um laço para o bicho, que subiu meio estrangulado. Baboso descrevia-lhe o programa de televisão

- Olhe aí, meu filho, o outro gatinho!

Dia seguinte morto diante da porta, o pires de leite envenenado. (Trevisan: 156). 

Ódio ao outro e viverem sob a desconfiança da mulher fazem parte da vida da ratazana perversa:

“Odeiam a morte, a criança barulhenta e o pagador de aposentadoria mais do que tudo no mundo – por causa dos descontos da pensão. Perseguem no corredor a nova arrumadeira – bando de moscas brancas em volta do torrão de açúcar preto. Um deles atraiu para o quarto um cachorrinho felpudo: a gritaria da dona, que o acusou servir-se do bichinho como instrumento de prazer”. (Trevisan: 157).

O quinismo torna-se uma afecção do velhinho perverso:

“Na sala de televisão, monstros de gentileza, oferecem o lugar para a nova hóspede. Sempre que tem mulher, um deles d braguilha aberta,; senta-se, pigarreia, cruza a perna, até que a dona olha escandalizada”. (Trevisan: 159).

O fetiche sexual é o princípio de mais-gozar na relação do perverso com o mundo feminino:

“Toda noite que a arrumadeira não recolhe a roupa, um deles surrupia do varal uma calcinha ou sutiã. Cada um leva no bolso a sua calcinha preferida. Os mais viciosos chegam a vesti-la debaixo da capa”. (Trevisan: 160).

O povo dos velhinhos é um campo heteróclito da vida perversa. O modo de ser psíquico do perverso a propriedade da fêmea através do fetiche, propriedade da mãe pela criança. A dor como a priori  o ódio como afecção são a fonte da vida perversa na superfície do teatro mundo, seja trágico, seja cômico.

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A gramática da realidade é a junção da história com a perversão nos povos da civilização; a barbárie não tem história, é só perversão; civilização e barbárie se transferem para o Estado como democracia e ditadura, hegemonia e dominação, respectivamente. Aí já entramos no mundo pós-antiguidade:  

“16. Todos esses fatos estavam acontecendo ao mesmo tempo, e por isso o desalento criado pelos eventos isolados de cada dia  tornava o povo incapaz daquela reflexão global e cuidadosa que levaria os cidadãos a preverem que todos eles com suas mulheres e filhos seguiam claramente o caminho da própria destruição. Assim, como se fossem levadas irresistivelmente pela força de uma corrente impetuosa, eles se resignavam a continuar avançando pela via onde os arrastavam a insensatez e o delírio de seu comandante”. (Polibios: 550).

O comandante é uma ratazana perversa grotesca sem gramática de sentido no comando do povo, ela é idolatra do delírio do desastre:

“Os patreus e os habitantes das cidades pertencentes à mesma circunscrição financeira haviam sofrido um desastre pouco antes na Facis, e a sua situação era muito mais lastimável que a dos seus aliados no Peloponeso; com efeito, alguns deles deram fim à vida num momento de desvario, e outros fugiram das cidades e andavam errantes através dos campos, sem saber por onde iam mas terrificados como o que estava acontecendo nas cidades. Alguns detinham outros para entregá-los ao inimigo como se fossem culpados de oposição aos romanos, e outros denunciavam e acusavam os seus vizinhos, embora ninguém esperasse deles esse serviço no momento. Outros apresentavam-se finalmente como suplicantes, confessando traição e perguntando qual seria a punição, embora ninguém pedisse qualquer explicação sobre a sua conduta. A Hélade inteira estava sofrendo de um distúrbio mental sem precedentes, com as pessoas lançando-se a poços e precipícios, de tal maneira que, como diz o provérbio, a calamidade da Hélade provocaria a piedade até de um inimigo, se este a presenciasse. No passado os helenos haviam realmente sofrido reveses ou catástrofes completas, às vezes por causa de divergência políticas e às vezes traídos por tiranos, mas na época à qual me refiro eles foram atingidos pelo que todos reconhecem ter sido uma verdadeira calamidade, em decorrência da irreflexão dos seus chefes e da sua própria insensatez. Os tebanos chegaram ao extremo de abandonar em massa a sua cidade, deixando-a inteiramente deserta (entre eles estava Piteas, que fugiu com a mulher e os filhos para o Peloponeso, onde passou a levar vida errante). (Políbios: 550-551).

O delírio no lugar da gramática de sentido aparece como o modo de ser psíquico dos povos que já não são mais povos com história, e sim povos da barbárie na própria civilização da antiguidade.

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Crítica da gramática do capital. EUA: amazon, 2021

LACAN, Jacques. O Seminário. De um Outro ao outro. livro 16. RJ: Zahar, 2008

POLÍBIOS. História. Brasília: UNB, 1985

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razón cínica. V. 1. Madrid: Taurus, 1989

TREVISAN, Dalton. Antologia pessoal. RJ: Record, 2023    

   

       

 

 

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