terça-feira, 17 de dezembro de 2024

história, retórica, filosofia

 

José Paulo

O PRIMEIRO conhecimento científico que obtive sobre o Estado foi com Engels:

“Em nenhuma parte melhor do que na antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu, ao menos na primeira fase de sua evolução, com a transformação e substituição parciais dos órgãos de constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completamente instauradas autoridades com poderes realmente governamentais – quando uma <força pública> armada a serviço dessas autoridades (e que, por conseguinte, podia ser dirigida contra o povo), usurpou o lugar do verdadeiro <povo em armas>, que havia organizado sua autodefesa nas gens, nas fratrias e nas tribos”. (Engels. 1974: 120).

Heródoto faz a primeira prosa historiográfica de uma época na qual os povos viviam uma vida na barbárie perversa:

‘Assim quando Croisos recebeu a soberania deixada por seu pai mandou matar o homem que havia conspirado contra ele, pondo-o entre os dentes de uma máquina de cardar, depois de confiscar os seus bens e consagrá-los aos deuses da maneira e nos templos mencionados por mim. Isso é tudo que direi a respeito das oferendas de Croisos”. (Heródoto: 50).

Heródoto fala da criação de um aparelho de Estado entre os medos; deixa a narrativa dele introduzir o leitor no problema:

“Depois de quinhentos e vinte anos de dominação na Ásia, os medos foram os primeiros a rebelar-se contra eles; sua luta contra ao assírios pela liberdade parece tê-los transformados num povo corajoso que, desvencilhando-se do jugo, conquistou a liberdade. Depois disso os outros povos subjugados também fizeram o mesmo que os medos”;

“Todos os povos do continente se viram livres, mas foram novamente submetidos à tirania da maneira seguinte: havia entre os medos um homem muito inteligente chamado Deioces filho de Fraortes. Deioces aspirava ardentemente à tirania e fez o seguinte para alcança-la: os medos moravam em povoados esparsos; Deioces, que já era um homem notável em seu povoado, resolveu dedicar-se com empenho ainda maior à prát5ica da justiça; ele fez isso numa época em que a injustiça preponderava em toda a Média, cônscio de que a injustiça é inimiga da justiça. Então os medos do mesmo povoado, observando seu modo de agir, escolheram-no para seu juiz, e ele, com o pensamento no poder, foi correto e justo. Agindo assim ele obteve não poucos louvores de seus concidadãos, e se propagou pelos povoados vizinhos a fama de que Deioces era o único homem a julgar retamente; os habitantes dos outros povoados, vítimas até então de sentenças injustas, ouvindo isso passaram com satisfação a submeter-se ao seu julgamento, e, finalmente não aceitavam qualquer outro juiz. (Heródoto: 51).

Um ersatz de aparelho de Estado emerge no campo subpolítico da barbárie:

“98. Eles propuseram imediatamente que se escolhesse um rei,; todos os homens sugeriram o nome de Deioces, tecendo-lhe elogios, e então concordaram que ele seria o rei. Deioces lhes deu ordens para construírem uma casa digna de sua condição de rei e para lhe darem uma guarda pessoal com o objetivo de firmar sua autoridade. Os medos agiram de acordo com  seu pedido, construíram uma casa grande e fortificada, no local por ele determinado,  escolheram entre todos os medos os guardas para o rei. Senhor do poder, ele compeliu os medos a construir uma cidade única e a abandonar todas os povoados. Os medos lhe obedeceram também nisso, e construíram a cidade chamada atualmente Agbátana, cujas fortificações são de grandes dimensões e sólidas e são constituídas de muralhas em círculos concêntricos. Elas foram planejadas de tal maneira que cada círculo de muralhas excede o precedente por uma altura equivalente à de suas ameias; o local escolhido – uma colina isolada – certamente favorece essa disposição, mas ela deve mais ainda aos desígnios dos construtores. Há sete círculos ao todo; dentro do último círculo interno ficam o palácio e o rei e seus tesouros, e a muralha tem aproximadamente a mesma extensão da muralha que circunda a cidade de Atenas. As ameias do primeiro círculo são brancas, as do segundo são negras, as do terceiro são de cor púrpura, o quarto é azul e o quinto ´alaranjado; então as  ameias de cinco círculos são pintadas em cores diferentes; quanto às ameias dos dois últimos círculos, as de um deles são prateadas e as do outro são de douradas. (Heródoto: 52).

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Heródoto quer fazer um conhecimento que não seja do domínio da retórica. O ersatz de monarquia dos medas não se diferencia da forma de governo tirânico. Para um contraste com a monarquia romana como fenômeno retórico, o livro “Da monarquia, vida nova”, de Dante Alighieri é o melhor modelo político:

“Todo aquele que tem em mira o bem da República busca o direito. Essa proposição prova-se deste modo: o direito é uma proporção real e pessoal de homem a homem; desde que essa medida e essa proporção sejam respeitadas, a sociedade está sã e salva. Se forem violadas, a sociedade se decompõe. A descrição que faz o Digesto não diz o que é o direito, mas o descreve segundo seu gênero de utilidade. Se nossa definição precedente dá exatamente a essência e o fim do direito; se, além disso, o fim de toda sociedade é o bem comum; o bem comum é, por conseguinte, o fim do direito, e é impossível existir um direito que não porfie pelo bem comum. por isso, Túlio escreve, com razão, no seu primeiro livro da Retórica, ‘a utilidade da República explica sempre as leis. Se as leis não tiverem em vista a utilidade dos cidadãos, não são leis justas; não são leis senão de nome; de fato e realmente, porém, não são leis’. As leis, na verdade, têm por meta unir os homens entre si visando ao bem gral. Daí a palavra de Sêneca, no livro das Quatro Virtudes: ‘ A lei é o bem da sociedade humana’. Assim pois, todo aquele que tiver por escopo o bem da República tem por escopo o direito. Se os romanos visaram o bem da República, pode-se dizer que o se alvo foi o direito”.

“Que o povo romano tenha visado o bem comum, quando conquistou o Universo, é o que suas ações o proclamam. Despojado inteiramente dessa cobiça que é inimiga do bem comum, impelido pelo único amor a paz e da liberdade, esse povo santo, piedoso e glorioso parece ter negligenciado seus próprios interesses, a fim de procurar tão-somente o bem do gênero humano”. (Dante: 40-41).

Dante fala do cesarismo como civilização sem barbárie. E, no “Antônio e Cleópatra” , Shakespeare faz uma ciência política materialista do cesarismo como um fenômeno dialético, isto é,  como barbárie e civilização, definindo qualquer campo político por esses dois aspectos contraditórios: ditadura e democracia, dominação e hegemonia, barbárie e civilização.

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A gramática da retórica é literatura e pode ter significantes da realidade como a ratazana perversa grotesca;

“Acha-se muito longe do interesse humano aquele que, mestre nas doutrinas políticas, não cuida de conferir à República nenhum dos frutos que colheu. Esse homem não é como ‘a árvore que plantada junto à água corrente, no tempo devido produz frutos’, mas antes uma cloaca pestilenta, que tudo draga e devora, sem nada restituir”. (Dante: 13).

A ratazana grotesca é um ponto fora da curva do gênero humano como general intellect da prática política da espécie humana, ela já é o domínio do heteróclito, do monstruoso:

“Já insistimos bastante sobre este ponto: a tarefa própria do genro humano, tomado na sua totalidade, é a de atuar continuamente a plenitude do poder do intelecto possível, em primeiro lugar em vista da especulação e, depois, por sequência lógica, para a prática”. (Dante: 17).

O <poder do intelecto> é um efeito da especulação e da prática, da retórica e da história. Ele é o poder do intelecto retórico no campo da prática política da história. Marx fala em general intellect:

“Nos estudos preliminares à ‘Crítica da economia política’ encontra-se uma versão, segundo a qual a história da espécie humana está comprometida com uma conversão automática de ciência natural e tecnologia em uma autoconsciência do sujeito social (general intellect) que controla o processo da vida material”. (Habermas. 1982: 64).  

O general intelecto se desenvolve além da ciência natural no campo político humano como retórica e técnica. A prática política é retórica e relações técnicas de produção. A gramática da retórica se define por fazer da prática política o bem da soberania do Um - como forma de governo:

“Tudo quanto é bom, é bom justamente pelo que o torna um. Ora, a concórdia como tal é um certo bem; é, pois, evidente que ela deve ter sua raiz e sua fonte no um. Saberemos qual é essa raiz, se a natureza ou a razão da concórdia forem examinadas. A concórdia é um movimento uniforme de muitas vontades; essa definição mostra claramente que a unidade das vontades, designada pelas palavras ‘movimento uniforme’, é a raiz da concórdia; mas ainda é a própria concórdia”. (Dante: 31).

Para existir, a prática política tem que obter consensos. A retórica do sofista criava o consenso na politeia. Portanto, o um pode ser constituído como forma de governo democrático. Há-um na multidão da prática política democrática.  É um UM que se constitui na prática viva e não na estrutura da forma de governo como a monarquia retórica de Dante.      

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A gramática da retórica é capaz de ver o significante funcionando na história. Porém, o discurso político retórico não cria significante. Este emerge do real da história como narrativa, como no caso do significante TRANSFUGA:

“30. Dessa cidade se navega por uma distância igual àquela que separa Elefantina da capital dos etíopes e se chega á terra dos Trânsfugas. Esses Trânsfugas são também chamados de Asmach, que na língua dos helenos quer dizer ‘aqueles que ficam à mão esquerda do rei. Constituindo um grupo de duzentos e quarenta mil egípcios em idade militar, em certa ocasi~]ao eles se voltaram e se juntaram aos etíopes. Suas razões foram as se3guintes: no reinado de Psaméticos havia guarnições sediadas em Elefantina defronte dos etíopes, em Dafne de Pelúsion defronte dos árabes a assírios, e em Mares defronte dos líbios (ainda em minha época distribuem suas guarnições de maneira idêntica a essa adotada  no tempo de Psaméticos; há guarnições persas em Elefantina e em Dafne). Esses egípcios ficaram de guarda durante três anos e ninguém veio substituí-los; então eles se reuniram para deliberar e de comum acordo desertaram do serviço de Psaméticos e foram para a etiópia; Psamétcos, advertido daqueles acontecimentos, veio em sua perseguição, e quando os alcançou exortou-os com muitas palavras a não abandonarem os deuses de seus antepassados e suas crianças e mulheres. Nessa ocasião um deles, apontando para os seus órgãos sexuais, disse que onde esses estivessem teriam de estar suas mulheres e crianças. Assim eles foram para a Etiópia e se entregaram ao rei dos etíopes; esse rei, para oferecer-lhes um presente com os quais estava em retribuição, mando-os expulsar de suas terras certos etíopes com os quais estava em litígio e ocupá-las. Esses soldados, estabelecendo-se na Etiópia, contribuíram para civilizar os etíopes, ensinando-lhes os costumes egípcios”. (Heródoto: 97-98).                              

A Etiópia e o Egípcio podem representar duas regiões do campo político da atualidade; uma, respectivamente, bárbara e a outra civilizada.   O trânsfuga se desloca de uma região para outra; e leva consigo a civilização para a região bárbara do campo político humano.    

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Heródoto fala de civilização e barbárie como fato histórico; ele define a Hélade como civilização e o Egito como barbárie:

“50. De fato, a Hélade recebeu do Egito quase todos os nomes de deuses. Estou convencido de haver descoberto que eles vieram dos bárbaros – sobretudo do Egito, penso eu”. (Heródoto: 105).

Nietzsche fez de fatos fenômenos filosóficos. Ele parte do culto de Dionísio como fenômeno da barbárie, como Heródoto:

“49. A propósito disso, em minha opinião Melâmpus filho de Amitêon não ignorava esse ritual , e até estava perfeitamente ciente dele; com efeito, Melâmpus foi o introdutor do nome de Diônisos na Hélade, bem como dos sacrifícios a esse deus e da procissão com o falo; não vou dizer que ele compreendeu exatamente todo o assunto a ponto de poder explica-lo, mas vários sábios o explicaram melhor posteriormente; de qualquer modo, porém, foi ele o introdutor da procissão com o falo entre os helenos, e estes aprenderam como ele a fazer o que fazem quanto a isso. Em minha opinião, portanto, Melâmpus demonstrou ser um homem inteligente ao instituir a arte profética, e ao ensinar aos helenos, entre outros conhecimentos adquiridos no Egito, o culto de Diônisos, modificando-o ligeiramente. Jamais eu atribuiria um caráter fortuito à semelhança entre o culto egípcio e o culto helênico ao deus, pois se assim fosse esse culto estaria em consequência com os costumes dos helenos e não teria aparecido tardiamente na Hélade. Eu não diria tampouco que os egípcios teriam copiado esses ritos ou quaisquer costumes dos helenos. Creio, porém, que Melâmpus tomou conhecimento do culto de Dionisio principalmente através de Cadmos, o tirio, e dos fenícios que vieram instalar-se com ele na região atualmente chamada Boiotia”. (Heródoto: 105).

Nietzsche fez de Dionisio um fato da filosofia:

“Ou haverá um pessimismo da força? Uma predileção intelectual pela aspereza, pelo horror, pela crueldade, pela incerteza da existência, predileção devida à saúde excedente, ao excesso de força vital, à excedência da vida? Tão excessiva plenitude não trará consigo um certo sofrimento? (Nietzsche. 1982: 180).

Nietzsche associa o <mais-gozar> à comunidade psíquica de significante do perverso?  O excedente do princípio de desejo ergue uma concepção política de mundo do perverso:

“A visão mais penetrante não será por isso mesmo dotada de uma temeridade irresistível, que busca o terrível como quem busca o inimigo, que procura um adversário digno contra o qual posso experimentar a sua força? Não pretenderá ela saber o que é o ^<pavor>? Que significa o mito <trágico>, precisamente entre os gregos da época mais alta, mais forte, mais valorosa? E esse fenômeno prodigioso do espírito dionisíaco? Que significa a tragédia, filha dele? – Em compensação, aquilo que causou a morte da tragédia, o <socratismo> da moral, da dialética, da ponderação e da serenidade do homem, - sim, o socratismo – não poderá ser tomado justamente por um signo de decadência, de lassidão, de esgotamento, de anarquismo dissolvente dos instintos? A <serenidade helênica> dos últimos gregos, não teria sido um crepúsculo? O esforço epicurista contra o pessimismo, não seria apenas uma preocupação do doente? A própria ciência, sim, a nossa ciência, encarada como sintoma da vida, que significa ela, afinal? Para quê, ou antes, de que nos vem toda a ciência? Pois quê? O espírito científico será mais do que receio e distração em frente do pessimismo? mais do que um expediente engenhoso contra – a <verdade>? Ou, para falar moralmente, um análogo do medo e da hipocrisia? ou, para falar imoralmente, da astúcia? Ai, Sócrates, Sócrates: era então esse o teu segredo? Ô misterioso ironista: era essa talvez a tua ironia?” (Nietzsche. 1982: 18-19).   

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A ironia da história europeia consiste em Sócrates ter criado a civilização helênica. Ele um modo de ser psíquico da comunidade psíquica de significante do perverso. A civilização surge das mãos desse perverso verdadeiro que cria o mundo como teatro de comédia do discurso do filósofo:

“Um problema fundamental será o de medir a subjetividade do Grego perante o sofrimento, o seu grau de sensibilidade. Teria sido invariável este grau? Teria variado de extremo a extremo? Pergunta fundamental é a de saber se o seu desejo de <beleza>, sempre crescente, o seu desejo de festas, atos de regozijo, novos cultos não era resultante da miséria, melancolia, dor? Supondo que fosse verdade, - e Péricles (ou Tucídides) assim o dá a entender na grande oração fúnebre, - : donde viria então a tendencia contrária e cronologicamente anterior, o <desejo do horrível>, a sincera e acre inclinação dos primeiros helenos para o pessimismo, o mito trágico, a representação de tudo que há de terrível, de cruento, de misterioso, de aniquilante, de fatal no fundo de tudo quanto é vivo, - donde viria então a tragédia?”. (Nietzsche. 1982: 22; 1977: 14).

A tragédia é um modo de ser psíquico do perverso?

Nietzsche:

Talvez  mesmo da alegria, da força, da saúde exuberante, do excesso de virilidade. Que significação adquire nesse caso, em linguagem fisiológica, esse delírio particular, que foi a nascente tanto da arte grega como da arte cômica, o delírio dionisíaco? Pois quê? O delírio não seria necessariamente um sintoma de degenerescência, de decadência, de civilização esgotada? Haverá por acaso, pergunta que deixo aos médicos alienistas, - uma nevrose da saúde, da infância e da adolescência dos povos? Que significará, para nós, esta síntese de um deus e um bode na figura do sátiro? Que experiencia, que impulso irresistível levaram a representar num sátiro o sonhador dionisíaco, o homem primitivo? E no que diz respeito à origem do coro, naqueles séculos em que florescia a força física do grego, em que a alma grega transbordava de vida, pergunto: haveria talvez entusiasmos endêmicos? Haveria visões e alucinações que se manifestavam a cidades inteiras, a multidões inteiras que se reuniam nos templos? O quê? Quem sabe se os gregos, quando estavam exatamente no esplendor primeiro da sua juventude, sentiam a necessidade do trágico e eram pessimistas? Quem sabe se, usando agora uma palavra de Platão, o delírio foi justamente, para a Hélada, o maior dos benefícios? Quem sabe se, por outro lado e pela razão contrária, os gregos, na própria época da sua dissolução e de seu declínio, se tornaram cada vez mais otimistas, mais superficiais, mais cabotinos, e, por isso, cada vez mais apaixonados pela lógica, mais interessados em conceber a vida logicamente, quer dizer, tanto mais <serenos> quanto <científicos>?

O homem lógico seria o homem normal como criação do mundo como teatro de comédia do modo de ser psíquico do lógico:

‘Como assim? Ao arrepio de todas as <ideias modernas> e dos preconceitos do gosto democrático, não poderemos dizer que a vitória do otimismo, o predomínio da <razão>, a teoria e a prática do <utilitarismo>, assim como a própria democracia, contemporânea de tudo isto, - sejam talvez em conjunto o sintoma do declínio da força, da aproximação da velhice, da lassidão fisiológica? Sejam eles, e não o pessimismo? Não foi Epicuro precisamente um <doente>? – Como logo se vê, este livro está bem carregado com um verdadeiro fardo de problemas graves, - mas apresentemos agora o mais grave de todos! Que significa, do ponto de vista da vida, a moral?...(Nietzsche. 1982:23).

Nietzsche inclui o Estado e a arte como fenômenos da civilização? ;

“Efetivamente, não me parecem explicáveis o Estado dórico e a arte dórica senão como resistência e reação do espírito apolíneo: foi somente à custa de uma luta incessante contra a natureza titânica e bárbara do espírito dionisíaco que pôde existir e viver uma arte de tanta dureza e de tanta altivez, uma fortificação tão maciça, uma educação tão guerreira, um princípio governativo tão cruel e tão brutalista”. (Nietzsche. 1982: 52).

A gramática da tragédia ática é o modelo de todo campo político das civilizações, o campo político trágico é, ao mesmo tempo, bárbaro e civilizado; ele se contrapõe ao campo político do mundo como teatro de comédia:

“devido a um milagre metafísico da <vontade> helênica, os dois instintos se encontrem e se abracem para, num complexo, gerarem a obra superior que será ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca, - a tragédia ática”. (Nietzsche. 1982: 35).                 

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Marx não trabalha com a história como civilização e barbárie? Ele não vê a história como teatro do mundo de comédia? Para ele, o modo de ser psíquico não é um fenômeno da história?   A dialética da essência perversa do homem não existe?

No “O 18 do Brumário de Luís Bonaparte”, a história europeia é a experiência ou da tragédia ou da comédia, seguindo Hegel:

“Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta – os Brutos, os Graco, os Publícola, os tribunos, os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Say, Cousin, Royer-Collard, Benjamin Constant e Guizot; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. (Marx. 1974: 336).

Marx faz o conceito formal da gramática de sentido da história:

“De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua ´própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela”. (Idem: 335).

Produzir livremente na gramática da época da sociedade moderna burguesa requer esquecer sua história da dimensão do trágico, do modo de ser psíquico do perverso?

Segue Marx:

‘Mas por menos heroica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente  austeras da República romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seus entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica”. (Marx. 1974: 336).

Bem! o cesarismo de Napoleão III é a comédia histórica:

“Só depois de eliminar seu solene adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel de imperial, e sob a máscara napoleônica imagina ser o verdadeiro Napoleão, só aí ele se torna vítima de sua própria concepção do mundo, o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia e sim a a sua própria comédia pela história universal”. (Marx. 1974: 372-373).

Com o mundo político como teatro de comédia cesarista,  a História moderna se exauri?   

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A revolução moderna evoca em seu socorro a gramática do perverso do passado. Tal fato é história e não retórica determinado, em última instância, pelas relações técnicas de produção. Não se pode falar dos povos como se eles fossem sempre povos com história. Dou como exemplo, a experiência do Brasil. A história não se reduz à história como fato e artefato. No século XIX, a “história” brasileira obedece a lógica do simulacro da retórica como ideologia dominante, como viu Joaquim Nabuco:

“Que era todo trabalho que eles faziam nas câmaras, na imprensa, no governo, senão o revolvimento surdo e interior do solo, necessário para a germinação da planta? Eles, políticos, eram os vermes do chão; a especulação, a planta vivaz e florescente que brotava dos seus trabalhos contínuos e aparentemente estéreis; eles desanimavam, ela enriquecia. O próprio Imperador, o que fazia senão trabalhar sem descanso e sem interrupção em proveito dela, que se confundia com o progresso material, intelectual e moral do país? Só ela medrava, invadia, e dominava tudo, em torno dele; reduzia a política, o parlamento, o governo, a um simulacro, ignorante da sua verdadeira função; utilizava todo o aparelho político para fabricar a sua riqueza nômade e fortuita, que às vezes durava tanto quanto uma legislatura e logo decaía, senão do seu fausto, pelo menos do seu porte e altivez “. (Nabuco: 988).

A “história” do Brasil não corresponde aos conceitos de história de Heródoto, Nietzsche ou da ciência política materialista. As Constituições a partir de 1824 foram meras cópias literárias da Europa e EUA, meros efeitos de retórica em um povo sem história. Um povo retórico aparece depois da Constituição de 1988, que é retórica, mas é também história. O período dos governos do PT são uma etapa da vida política pela lógica retórica do simulacro de simulação. (Baudrillard. 1981: 177). A estrutura de dominação retórica-1988 acolheu o fascismo em versão tupiniquim. Como a cultura de massa é retórica, o jornalismo normaliza o fascismo. Tal fenômeno cabe em uma frase: 47% da população diz na soberania popular: “Se há governo, sou contra”.

Em 2023, começou o novo governo de Lula em uma conjuntura mundial de revolução barroca dentro da ordem do Estado mercantilista:

Jean Pierre Faye fala da tela gramatical narrativa de Marx: ‘De te fabula narratur! (o relato aqui é sobre ti!’. (Faye: 150). A tela narrativa barroca da atualidade é uma fabricação da China. Mao Zedung teceu a dialética da conciliação barroca de capitalismo e socialismo como mercantilismo do capital asiático continuada por Xi Jinping. Tal capitalismo chinês é o mercantilismo do capital barroco”. (Bandeira da Silveira. 2024ª: cap. 3, parte 3).

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A globalização liberal pós-moderna foi uma espécie de fim da história hegeliano. Com o ocaso dela, a história retoma um curso que agora vai aparecendo com gramática da história. Nessa, a história do Estado-nação mercantilista do século 21 ainda não alcançou a consciência dos povos:

“No mercantilismo capitalista, se desfaz a lógica do fim do Estado e da destruição da classe dirigente. O processo de destruição da gramática social nacional é contido”.

“A China vem servindo como paradigma de uma classe dirigente e de Estado nacional como fenômenos do mercantilismo capitalista. Joe Biden tenta reverter a lógica supracitada do semiocapitalismo de Donald Trump, mas parece fracassar”.

O Brasil é um modelo de país subdesenvolvido com indústria tradicional que se situa na periferia do mercantilismo capitalista. O mercantilismo capitalista das multinacionais da comunicação invade o país e assume uma posição equivalente ao da multinacional pré-semiocapitalismo. Há uma adaptação da multinacional à gramática do subdesenvolvimento que acaba existindo como uma multinacional subdesenvolvida”. (Bandeira da Silveira. 2021: cap. 2).

Elen Musk se aliou ao fascismo brasileira e faz ataques ao STF, a corte suprema brasileira. Musk age como um chefe de um Estado feudal cibernético do dominante americano que trata o poder brasileiro como poder político de uma republiqueta de bananas. O STF reagiu e quer transformar as Big Techs em aparelho ditatorial do perverso no mundo virtual. Assim, o STF que já apareceu (na luta contra o fascismo) como defesa radical da democracia 1988 desliza para o campo da ditadura 1964 do general Golbery do Couto e Silva.

O governo Lula não foi capaz de entrar na história mundial do Estado mercantilista de hoje. Ele é prisioneiro de um campo de ideologias econômicas do século XX como o desenvolvimentismo econômico do professor Belluzo, conselheiro do governo de Lula.

O Congresso se tornou uma partidocracia ditatorial corrupta no uso da mais-valia pública ou fiscal ou dinheiro público. Trata-se de uma situação escandalosa que desintegra de vez a moralidade pública. Ao permanecer em atraso em relação à história do Estado mercantilista mundial, o Brasil se vê diante de uma experiência inédita, pois ao Estado mercantilista/liberal corresponde uma nova gramática de democracia, que inexiste, entre nós:

“O domínio da maioria, característico da democracia, distingue-se de qualquer outro tipo de domínio não só porque, segunda a sua essência mais íntima, pressupõe por definição uma oposição – a minoria – mas também porque reconhece politicamente tal oposição e a protege com os direitos e liberdades fundamentais. (Kelsen: 106)”.

“Na democracia pós-moderna, um partido mafioso da meia-noite da superfície profunda do Ocidente se constitui como vontade política de desintegrar a democracia, se aproveitando do ocaso dessa forma de tela gramatical pós-moderna. A nova moderna democracia se choca com o poder pós-moderno mafioso. Daí surge a crise catastrófica entre pós-modernidade cesarista/tirânica e a nova moderna democracia”. (Bandeira da Silveira. 2024b: 418).

O que o Brasil faz é fabricar um Estado mafioso no lugar do Estado mercantilista/liberal que vai além do mercantilismo capitalista, pois, se apresenta com um Estado mercantilista feudal, seja do dominante (EUA), seja do dominado: China.     

 

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Mundialização do mercantilismo capitalista. EUA: amazon, 2021

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Revolução barroca dentro da ordem. EUA: amazon, 2024a

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Ciência política materialista. EUA: amazon, 2024b

BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981

DANTE ALIGHIERI. Da monarquia. Vida nova. SP: Martin Claret, 2003

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. RJ: Civilização Brasileira, 1974

HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e interesse. RJ: Zahar, 1982

HERODOTO. História. Brasília: UNB, 1’988

NIETZSCHE. La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard, 1977

NIETZSCHE. Origem da tragédia. Lisboa: Guimarães, 1982

MARX. Os pensadores. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974

NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. Volume 2. RJ: Topbooks, 1997

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