quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Da prática política - sonho, do rico, pequena-burguesia, Estado

 

José Paulo

 

É necessário refletir sobre a <prática política> como um fenômeno materialista no campo político da cultura histórica de uma conjuntura ou contexto. Para isso, é preciso saber o que é a <prática>. A tese 1 de Marx sobre Feuerbach reinicia a ciência política materialista-dialética:

“A falha principal, até aqui, de todos os materialismos [incluindo o de Feuerbach] é que o objeto, a realidade efetiva, a sensibilidade, só é percebido sob a forma do objeto ou da intuição; mas não como atividade sensivelmente humana, como prática, e sim de maneira subjetiva. É por isso que o lado ativo foi desenvolvido de maneira abstrata pelo idealismo – que, naturalmente, não reconhece como tal a atividade real efetiva, sensível – em oposição ao materialismo. Feuerbach procurou objetos sensíveis – realmente distintos dos objetos pensados: porém não captou a própria atividade humana como atividade objetiva. É por isso que só considera, em ‘A essência do cristianismo”, a atitude teórica como verdadeiramente humana, enquanto que a prática apenas é percebida e fixada em sua manifestação sordidamente judia. É por isso que ele não compreende o significado da atividade <revolucionária>, da atividade <prático-crítico”. (Labica: 30-31).

A ciência do homem não opera com o conceito materialista de prática. O conhecimento comum do jornalismo quer falar da prática política, mas cai em um anarco-empirismo idealista de fatos sem gramática. A prática política é um efeito da gramática e do contexto conjuntural das lutas ideológicas e gramaticais. Qual o motor da prática política. Aristóteles fala de um poder racional que move fenômenos racionais. (Aristote. Tomo 2: 496). Assim, o poder simbólico seria o poder racional aristotélico que move as coisas e agentes no campo político:

“Os <sistemas simbólicos>, como instrumento de conhecimento e de comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnosiológica: o sentido imediato do mundo [e, em particular, do mundo social] supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, isto é, <uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre inteligências>. (Bourdieu. 1989: 9).

O poder simbólico move a prática política pela concordância entre as inteligências?

Outra concepção de prática política pode ser traduzida da gramatica aristotélica:

‘La passage de la puissance à l’entéléchie, dans la production provenant de la pensé, se definit: la volonté de l’artiste se réalizant sans rencontrer aucun obstacle estérieur, et sans recontrer aussi, d’autre parte , c’est-à-dire dans l’être qu’on guérit, aucun obstacle intérieur”. (Aristote. Tomo 2: 504).

A enteléquia é ação do agente sobre si, molecularmente, e ação transitiva ou fabricadora como prática que visa a produção de uma coisa separada do artista. A prática política da democracia feudal do dominado tem como agente o artista da palavra e dos jogos gramaticais. Assim, o poder simbólico como enteléquia se transforma em prática política, ou seja, em um poder racional do hegemonikón (Elorduy: 26) ou eu hegemônico de uma conjuntura histórica, em um campo político de gosto da multidão. Isso é um paradigma da democracia feudal do dominado na atualidade da crítica da gramática do mercantilismo/liberal.

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Bourdieu põe o capital político como fenômeno do campo político [<campo de poder>] ao lado de outras formas de capital:

“Enquanto as outras formas de acumulação são mais ou menos completamente controladas, o capital político torna-se o princípio de diferenciação principal, pois, os membros da Nomenklatura política não têm outros adversários na luta pelo princípio de dominação dominante que acontece no campo de poder a não ser os detentores de capital escolar [tudo leva a supor que as mudanças recentemente ocorridas na Rússia e em outros lugares têm por base as rivalidades entre os detentores de capital político, da primeira e sobretudo da segunda geração, e os detentores de capital escolar, tecnocratas e sobretudo pesquisadores ou intelectuais, em parte membros da Nomenklatura política”. (Bourdieu. 1994: 34).

Para fazer parte do campo político é necessário acumulação de capital simbólico. O sociólogo parisiense fala da prática do golfo etc. esquecendo o conceito de prática de Marx. Neste, a prática das relações técnicas de produção aparece como motor de transformação do mundo. Ela existe como parte do trabalho social (Habermas. 1982:46-47) na relação da espécie humana com a natureza, a sociedade e o Estado. A prática é uma atividade materialista-dialética que conserva ou transforma as gramáticas do campo político habitado por expressões da espécie humana, da sociedade civil ou do Estado. A essência do homem é as relações técnicas de produção, essência materialista que faz pendant com a essência do homem dada pelo Espírito. É possível ver o espírito hegeliano como tela verbal narrativa. Assim, há o espírito ou tela verbal das relações técnicas de produção:

“É aqui que se entrevê, no tecido mesmo de tão pesada trama, a luz da mais leve tela. Ela transparece na observação do prefácio da primeira edição alemã – o decisivo Vorwort zum ersten Auflage – quando só percebe o alcance que pode haver no fato de ‘contar’ ao leitor alemão o que ocorre com o trabalhador inglês. Se, com efeito, o leitor alemão devesse dar de ombros, de modo farisaico, para o estado do trabalhador inglês, da terra ou da indústria, então, como foi visto, ‘devo gritar para ele: De te fabula narratur! [O relato aqui é sobre ti!]”. (Faye: 150).       

O sociólogo poderia usar um outro conceito de Marx para falar da relação do intelectual em geral com o campo político, isto é, o conceito general intellect, isto é, general intellect gramatical. (Bandeira da Silveira; 2022). Em Marx, o capital é relação social de produção entre classes antagônicas e não simplesmente acumulação. Esta é um processo histórico paraconsistente do movimento do capital. Quanto ao campo político especificamente da democracia representativa, a prática é atividade sensível, real, efetiva, isto é, fato com gramática, ou seja, “a práxis dos cidadãos que discutem e atuam”. (Habermas. 1987: 83).

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A relação entre o capital político e o capital cultural põe e repõe o problema da relação entre razão prática e razão teórica no campo político contextualizado por imagens textuais. A prática política é o agir da razão prática em disjunção com a razão teórica? A prática política é autotélica em relação à tela verbal narrativa das relações técnicas de produção? ou o capital cultural condensado em general intellect gramatical se traduz como uma prática política de unidade entre razão prática e razão teórica, isto é, como razão linguística?:

“A reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural se dá na relação entre as estratégias das famílias e a lógica específica Da instituição escolar”. (Bourdieu. 1994: 39).

Mesmo em um país subdesenvolvido indústrial, o campo político contextualizado parece ser acolhedor para a sociologia parisiense. No Brasil, há famílias que habitam a prática política como uma forma de capital cultural, ou seja, como oligarquia política, no regime de 1988. A oligarquia política rural é o fenômeno, por excelência, que traduz o capital cultural para o campo da política contextualizado. Porém, um outro fenômeno completa a estrutura de dominação ideológica do capital cultural: a burguesia política urbana - que tem como antecedente a <burguesia burocrática> de Caio Pardo Jr.  Há um poder hegemonikón – como enteléquia - até no campo político subdesenvolvido de países altamente urbanos e industrializados.                

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Na Europa, o poder hegemonikón se exaure com a estratégia de substituir o Estado territorial nacional pela União Europeia. Com a globalização liberal pós-modernista, a União Europeia acelera a decomposição do Estado territorial socialdemocrata e mergulha no Estado reprofundo burguês pós-modernista do capital fictício ocidental. O campo político europeu se torna um efeito da gramática geopolítica do Estado burguês pós-modernista americano. A guerra da Rússia na Ucrânia é o fenômeno de bloqueamento da passagem da Europa ocidental para o mercantilismo/liberal asiático. A Europa não assimila a realidade da atualidade, sua história política sofre uma estagnação:

“O Estado moderno barroco hegeliano é conciliação do direito consigo próprio na pena, isto é, conciliação barroca do aparelho de Estado com a legislação penal, causa da validez da lei e da perspectiva subjetiva do delinquente, isto é, como lei reconhecida por ele e válida para ele e para sua proteção. O campo grotesco das ideologias infrajurídico cibernético substitui a estrutura de dominação ideológica moderno/barroco supracitada por uma estrutura de dominação infra-ideológica grotesca, cena cibernética do simulacro de simulação, seja da subjetividade do penitenciado, seja da proteção a sua subjetividade oferecida na legislação penal do aparelho de Estado”.“A imagem real do Estado moderno barroco é aquela de quem se põe problemas que pode resolver ao contrário do Estado pós-moderno grotesco”. (Bandeira da Silveira, 2024: 195).            

O colapso do Estado moderno-barroco, territorial-nacional avança nas Américas, também. A crise catastrófica dos países apresenta um Brasil desterritorializado com 60% de seu território fora domínio do Estado brasileiro, este em decomposição institucional acelerada. Na Venezuela, a contradição antagônica entre a sociedade do capital subdesenvolvido e o Estado anacional mafioso [uma vez que o Estado nacional é para todos os nacionais], expulsa milhões de venezuelanos de seu próprio país. Na Argentina, Milei personifica o fim do Estado territorial nacional em uma comédia de erros crassos na prática política.

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O enigmático título da peça “A vida é sonho” é sobre discurso político?

Segismundo – A tua voz enternece, tua presença me encanta...eu te respeito por força. Quem és? Nada sei do mundo...Esta torre me foi berço e sepulcro. Nunca vi nem falei senão a um homem e só por ele sei notícias do céu e da terra. Sou um homem para as feras e uma fera para os homens. Dos animais, aprendi política, e aconselhado pelos pássaros contemplei os astros e aprendi a medir os círculos”. (Calderón: 38).

O Principe barroco espanhol aprende o discurso político, como círculo, esferas, com os animais; o homem é um animal político; o discurso político é a gramática retórica do sonho?  Lacan entrou nesse universo de imagem textualizada da gramática política como alunissagem:

“Mas, ao entrar o discurso político – atente-se para isso – no avatar, produziu-se o advento do real, a alunissagem, aliás sem que o filosofo que há em todos nós, por intermédio do jornal, se comovesse com isso, a não ser vagamente”. (Lacan. 2003: 535). 

Como gramática barroca retórica do sonho, o discurso político do filósofo-leitor de jornal - que existe em todos os leitores cotidianos da imprensa – emerge do real [na alunissagem] do campo político de imagens contextualizadas em uma formação social. O discurso político é uma experiencia lunar, vida sem oxigênio natural da prática política da multidão. A prática política lunar se transformou em uma região sublunar no campo político do contexto pós-modernista. Daí para a criação de uma superfície reprofunda heteróclita é apenas necessário um pequeno passo para a multidão.

O Estado burguês pós-modernista é esse primeiro passo, pois, Hobbes diz que o Estado é um Deus Mortal como efeito da prática política da multidão (Hobbes:109-110)), esta como tela verbal narrativa metafísica moderna.

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O Estado burguês pós-modernista se apresenta como uma prática política desencaixado dos interesses do dominante. Esta é a característica do Estado bonapartista moderno:

“Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autônomo. A máquina do Estado consolidou a tal ponto a sua posição em face da sociedade civil que lhe basta ter à frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro, um aventureiro surgido de fora, glorificado por uma soldadesca embriagada, comprada com aguardente e salsichas e que deve ser constantemente recheada de salsichas. Daí o pusilânime desalento, o sentimento de terrível humilhação e degradação que oprime a França e lhe corta a respiração. A França se sente desonrada”.

“E não obstante, o poder estatal não está suspenso no ar. Bonaparte representa uma classe e justamente a classe mais numerosa da sociedade francesa, os pequenos [Parzellen] camponeses”. (Marx.1974: 402).

O Estado pós-modernista burguês territorial é um Estado bonapartista, mas não é análogo ao Estado cesarista de Napoleão III; ele não representa os camponeses; ele tem como classe-apoio as lúmpen pequenas-burguesias rural e urbana (volto a esse tema adiante); o campo das ideologias pós-modernista fala do Estado como se ele fosse um aparelho do dominado. Assim, o rico quer que ele seja um aparelho neutro, técnico, objetivo;

“Le pragmatisme est caractérizé par l’abandon de l’idée d’un point de vue neutre – objective, universel, transcendant... – à partir duquel il serait possible et nécessaire de juger en vérité et de la vérité [du bien fondé] de ce qui s’énonce en fonction, au sein et à propos de différents contextes historiques pratiques toujours associés à des intérêts et donc à des points de vues particuliers. A des degrés divers, mais sans renouer ni avec la métaphysique du surplomb ni avec le positivisme de l’objectivité, les trois chapitres de cette Section mostrent qu’il n’est pas possible ni souhaitable de faire léconomie d’une perspective irrédutible à la particularité du contexte pragmatique où l’on s’exprime. “. (Hottois: 75).

A particularidade do contexto de expressão do Estado burguês pós-modernista é aquela do capital capitalista. Assim, tal Estado é disputado pelas classes sociais do capital com estratégias de apropriação da mais-valia pública ou plus-de-jouir ou Mehrlust. (lacan. S. 16: 30, 29)       

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O pós-modernismo é uma máquina de guerra como prática política de uma guerra de posição para tomar o Estado moderno burguês. Assim, a desmontagem do aparelho de hegemonia moderno envolve a discussão sobre continuidade ou descontinuidade entre as gramáticas modernas e aquelas gregas, romanas e medievais. A guerra de movimento foi a definição do aparelho de hegemonia do Estado moderno como: “’Ils [les récits] définissent ainsi ce qui est a le droit de se dir et de se faire dans la culture, et, comme isl sont aussi une partie de celle-ci9, ils se trouvent par la même légitimés”. (Hottois:42).

Assim, a guerra de movimento contra o Estado moderno propõe uma espécie de anarcoempirimos no campo político da cultura no lugar do espaço público procedural da articulação da hegemonia?   A questão é manter o discurso racional como faz a prática política da práxis da comunicação. (Hottois: 42). O aparelho de hegemonia pressupõe um hegemonikón. Trava-se de deslegitimar tal eu hegemônico no campo político da cultura. Assim o pós-modernismo descontrói a ideia de legitimação em geral e, especificamente, para o Estado.

 Estado pós-modernista é visto como uma construção do artista pós-modernista. Porém com a globalização liberal pós-modernista, o Estado do artista se transforma em um Estado burguês-pós-modernista virtual como efeito da gramática das relações técnicas de produção cibernética. Entra-se em uma época da decomposição do Estado territorial nacional. Assim, o Estado-nação não será mais para todos os cidadãos e o Estado territorial é decomposto em pedaços em um processo desterritorialização generalizado e permanente.

O Estado burguês territorial aparece como aparelho de tributação da mais-valia pública para o dominante. Ou melhor.  A democracia liberal se torna um palco da luta pela apropriação e distribuição da mais-valia pública entre o capital e a sociedade civil do dominado.

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A relação entre a Constituição de 1988 e o regime político-1988 ainda não foi exaustivamente analisada do ponto de vista da relação entre gramática, campo de ideologias e contextos. Por exemplo, o lugar tributário do rico não foi interpretado devidamente. A Constituição estabeleceu um Estado potencial moderno barroco do dominado na distribuição da mais-valia pública. Assim, se desenvolveu uma aporia entre o Estado constitucional e as classes sociais dominantes em torno da distribuição da mais-valia pública ou mais-de gozar:

“A intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso – e não apenas o analítico – que não seja de gozo, ao menos quando dele se espera o trabalho da verdade”. (Lacan. S. 17: 74).

A verdade materialista-dialética é um fenômeno da luta pela mais-valia pública realizado pelas classes sociais e grupos no campo político contextualizado. No regime-88, há dois contextos. O segundo é a formação da oligarquia política rural em aliança com a burguesia política urbana. Elas criaram aristocracias feudais no aparelho de Estado como generais, coronéis, juízes e pessoal do aparelho judiciário. E excluíram os professores universitários estatais do conjunto da aristocracia feudal.

A propósito. A gramática territorial do Estado-nação é definida em imagens textuais na parte sobre a tributação. Por exemplo:

 Art. 147. Competem à União, em Território Federal, os impostos estaduais e, se o Território não for dividido em Municípios, cumulativamente, os impostos municipais; ao Distrito Federal cabem os impostos municipais. (Constituição: 96).  

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Com o golpe de Estado de Michel Temer no regime político petista, a fabricação do Estado burguês pós-modernista se militarizou a partir do governo de Jair Bolsonaro. A aliança entre oligarquia política, governo e militares se volta contra o STF, pois, se tratava de desterritorializar o Estado nacional com a invasão acelerada do capital criminoso da globalização na Amazônia. (Platt: 2017). As economias ilegais tomaram o território sem que o governo federal nada fizesse. Assim, a questão indígena caminha para um extermínio de tribos, principalmente das donas de territórios com ouro:

Artigo 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus direitos”. (Constituição: 141).     

O Art. 231 é a pedra-angular da existência de um Estado feudal democrático para o dominado, este em um antagonismo centenário com a oligarquia aristocrática colonial da terra; há uma gramática de Estado potencialmente territorial e nacional [objetiva e subjetivamente] no campo das ideologias modernas da conciliação barroca entre a nação branca/mestiça/negra e as tribos ou nações indígenas; há a proteção das concepções políticas de mundo indígenas que são constitucionalizadas.   

Já o Estado tributário feudal estabelece a relação legal entre o contribuinte e o poder tributário, garantindo o direito do dominado de  não ser objeto de um poder fático tributário despótico.

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I Exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. (Constituição: 97).  

No regime-88 tardio, um poder fático tributário despótico põe e repõe a questão da decomposição do Estado territorial nacional em feudos fáticos tributários ilegais. Assim, a forma de governo territorial desestabelece o conceito constitucional de <estado> territorial de um Estado-nação; o estado pode ser visto como província em desencaixe com o território constitucional; a província ilegal é a superfície profunda – no campo político territorial - de um campo de poderes feudal, fático, heteróclito. Um outro “Estado” territorial se desenvolve ao largo do Estado feudal, territorial/nacional constitucionalizado:

“Um Estado pode ser definido como uma organização política cujo domínio é territorialmente organizado e capaz de acionar os meios de violência para sustentar esse domínio. Tal definição é próxima daquela de Weber, mas não destaca uma reivindicação ao monopólio dos meios de violência ou o fator da legitimidade”. (Giddens: 45).

A definição de Giddens não contempla a situação supracitada. Em Michel Foucault encontra-se a ideia da dissolução do Estado territorial nacional para os países desenvolvidos:

“Não existe Estado, apenas uma estatização, e o mesmo é válido para outros casos [...] Se a forma-Estado, em nossas formações históricas, capturou tantas relações de poder, não é porque estas derivem daquela; ao contrário, é porque uma operação de ‘estatização contínua’, por sinal bastante variável de caso em caso, produziu-se na ordem pedagógica, jurídica, econômica, familiar, sexual, visando a integração global”. (Deleuze: 83).

Trata-se da integração global feudal de uma realidade estatal despedaçada em fragmentos territoriais ocupados por inúmeros grupos quase sociais. Existindo nesse Estado decomposto territorialmente e socialmente, o rico é o proprietário da riqueza da nação que se exauri como economia política:

“Abre-se o livro do chamado Smith, ‘A riqueza das nações’ – e ele não é o único, estão todos aí quebrando a cabeça, Malthus, Ricardo e os outros -, a riqueza das nações, o que é isso? Lá estão tentando definir o valor de uso, que deve ter seu peso, o valor de troca – não foi Marx quem inventou tudo isso. Ora, é extraordinário que desde que há economistas, ninguém, quanto a isso, tenha até agora – nem por um instante, não digo que seja para se deter aí – feito a observação de que a riqueza é a propriedade do rico [...] O rico tem uma propriedade. Ele compra, compra tudo, em suma – enfim, ele compra muito. Mas queria que vocês meditassem sobre o seguinte – ele não paga”. (Lacan. S. 17: 94).

A gramática territorial do rico é baseada no axioma <ele não paga> para viver no Estado nacional territorial. Ele é um grupo da sociedade que obtém parte da mais-valia pública como um direito natural da propriedade privada da riqueza feudal. O rico é o fenômeno que suporta a gramática do Estado feudal pós-modernista, fragmentado e paraconsistente.                

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O surgimento do Estado pós-modernista acontece com a mudança das gramáticas da sociedade de classes sociais e sua tradução para o campo as ideologias. Para se entender tal fenômeno é preciso fazer a distinção entre determinação estrutural de classe e posição de classe em uma conjuntura de luta de classes. (Poulantzas. 1974: 195-198). A pequena-burguesia tradicional definida pela propriedade privada mobiliária e mercantil ´é distinta da nova pequena-burguesia do general intellect gramatical:

“com o general intelecto, o trabalho vai além da luta da classe em sua contradição com o capital, pois, o capital é subsumido ao trabalho na produção da riqueza nacional: subsunção cientifica do capital ao trabalho. Trata-se da derrota da burguesia pelo trabalho”. (Bandira da Silveira. 2022: cap. 9).

A determinação estrutural da nova pequena-burguesia do general intellect gramatical é definida nas relações política [prática política] e ideológica, isto é, no campo das ideologias do Estado pós-modernista burguês ou do Estado feudal modernista do século XXI. A determinação estrutural é realizada pela tela verbal narrativa dos aparelhos de hegemonia no contexto da luta de classe.  A nova pequena burguesia vive em um estado de polarização permanente e geral [sem generalização] entre dois extremos do campo político contextualizado:  Estado burguês autoritário do dominante e Estado feudal democrático do dominado. A Constituição de 1988, pôs a nova pequena-burguesia no campo do Estado feudal democrático do dominado.

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O Estado moderno tem sua mais apurada definição em Poulantzas:

“Mais o Estado não é puramente e simplesmente uma relação, ou a condensação de uma relação; ele é a condensação material e específica de uma relação de forças entre classes e frações de classe”. (Poulantzas. 1978: 141).

Ou então, o Estado paraconsistente:

“O Estado, que mantém a unidade e a coesão de uma formação social dividida em classes, concentra e resume as contradições de classe do conjunto da formação social , consagrando e legitimando os interesses das classes e frações dominantes em face das outras classes desta formação, ao tempo em que assume contradições mundiais de classes”. (Poulantzas. 1974: 77).

Na ciência política materialista-dialética, o Estado territorial nacional implode em suas aporias e vê nascer o Estado burguês pós-modernista e o Estado feudal modernista do século XXI:

“categorias sociais dos aparelhos de Estado [burocracias administrativas, integrantes de partidos políticos etc.] para as quais o Estado permanece uma fonte de privilégios. (Poulantzas. 1974: 78).

Essas categorias sociais ou se tornam burguesia de Estado ou aristocracia feudal burguesa do dominante. O que acontece com o Estado territorial mercantilista internacionalizado e depois com a globalização liberal pós-modernista?

Poulantzas:

“De fato, olhando nessa direção, perdemos de vista as tendências reais: a saber, as transformações interiorizadas do próprio Estado nacional em vista de se encarregar da internacionalização das funções públicas com respeito ao capital. Atinge-se assim uma linha de defesa de seu ‘próprio’ Estado nacional contra as ‘instituições’ monopolistas’. De fato, essas formas institucionais internacionais não se ‘surperpõem’ também [expressão querida do PCF] a esses Estados nacionais, mas são propriamente a expressão de suas transformações interiorizadas. Essas transformações não se referem somente às intervenções econômicas do Estado nacional, mas igualmente aos aspectos repressivo e ideológico pelos quais essas intervenções se realizam”. (Poulantzas. 1974: 81).

A globalização liberal foi o dilúvio que transformou o Estado territorial moderno, nacional em um ser antediluviano do século XX. No Brasil, as formas ideológicas do século XX [partidos políticos, presidentes, congresso, tribunais etc.] continuam como estrutura de dominação ideológica narrativa na terceira década do século XXI da técnica cibernética. No Brasil do século XXI, o passado do Brasil reprofundo do século XX custa a morrer e o novo século XXI a nascer. Esta é a natureza reprofunda da crise brasileira e das Américas     

 Finalmente, o Estado feudal modernista aparece como tela verbal narrativa de aparelhos d coação legal, aparelhos ideológicos, aparelhos de hegemonia e aparelhos de tributação constitucionalizados.    

 

 

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