sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

FILOSOFIA GRAMATICAL DA HISTÓRIA

José Paulo

                                                                         

HEIDEGGER, LÉVINAS, MARX

Marx pensou o fim da filosofia como metafísica? Trata-se da filosofia como uma das formas ideológicas da luta de classes na produção do contemporâneo do século XIX. (Marx. 1974: 136). No marxismo da segunda metade do século XX, Althusser cria a fórmula da filosofia como luta de classe na teoria. SE a filosofia é luta de classes na teoria, ela gera efeitos teóricos:  nas ciências e também, nas ideologias. (Althusser: 41).

Althusser esquece a questão de Marx que consiste na supressão da filosofia como metafísica? Esquece que a filosofia é uma forma ideológica? Por sua vez, Marx esquece a questão da clareira do seer?                      

Marx diz com todas as letras:
“Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídica, política, religiosa, artística ou filosófica, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim”. (Marx. 1974: 136).

A filosofia é e não é uma forma ideológica, pois, é luta de classes na teoria, isto é, no território das formas ideológicas. Trata-se da relação dialética teoria e prática. Em Althusser, a filosofia é o partido da filosofia que estabelece a linha de massa e as práticas de massa:
“Si la philosophie est lutte de classe dans la théorie, si elle dépend en dernière instance de la politique, elle a, comme philosophie, des effets politiques: dans la pratique politique, dans la façon de conduire ˂l’analyse concrète de la situation concrète>, de définir la ligne de masse, et les pratiques de masse. Mais si elle est lutte de classe dans la théorie, elle a des effets théoriques: dans les sciences et aussi dans les idéologies. Si elle est lutte de classe dans la théorie, elle a des effets sur l’union de la théorie et de la pratique: sur la façon de la concevoir et de réaliser”. (Althusser. 1973: 41).
Como luta de classe na teoria, a filosofia é o partido político da filosofia. (Lenin. 1975:  268, 279).
                                                             II

É reconhecido que Althusser é um seguidor de Bachelard no uso da ideia de obstáculo epistemológico:
 “O epistemólogo deve tomar os fatos como se fossem ideias, inserindo-as num sistema de pensamento. Um fato mal interpretado por uma época permanece, para o historiador, um fato. Para o epistemólogo, é um obstáculo, um contra-pensamento”. (Bachelard. 1996: 22).

Qual é o contra-pensamento que age no discurso de Marx? Trata-se do obstáculo epistemológico hegeliano, do discurso de Hegel?

A escola de pensamento althusseriano é a filosofia como luta de classe na teoria contra a teoria burguesa hegeliana, contra a ideologia hegeliana no pensamento de Marx. A investigação por uma dialética materialista leninista freudiana no livro Pour Marx se baseia na categoria de contradição leninista (acumulação das contradições na teoria do elo mais fraco) fazendo pendant com a categoria de sobredeterminação freudiana onde a acumulação se torna fusão no elo mais fraco e dissipação da formação social capitalista, pois, o presente passa a determinar e refazer o passado, que pesa como chumbo no cérebro dos vivos. (Althusser. 1967: 73-103).

Trata-se da suprassunção (ultrapassagem) da dialética hegeliana formada por tese, antítese e síntese. A revolução social não é uma síntese do comunismo com o capitalismo. Ela é a revolução da Comuna de Paris 1871. Para Althusser, a revolução russa é uma continuação por outros meios da revolução da Comuna de Paris. Althusser faz assim a leitura da revolução russa explanada no livro “O Estado e a revolução”. (Lenin. 1977: v. 25: 485-493).

A propósito, em Mao, a dialética é sintetização do capitalismo pelo socialismo. (Zizek: 219).

O mal epistemológico hegeliano é o historicismo na teoria de Marx. (Althusser. 1969: 21).   No livro Para leer el capital, o historicismo é tratado como ideologia burguesa no pensamento de Marx. Trata-se de um efeito da luta de classe da filosofia burguesa contra o marxismo na própria teoria de Marx.
A nova teoria da leitura de Althusser busca o sintoma historicista para erradicá-lo do discurso marxista. Através do sinthoma, a leitura sintomal descobre um outro texto no texto literal, texto ausente e lacunar para uma época. (Althusser. 1969: 33). A leitura sintomal estruturalista freudo-lacaniana de Marx mostra a ruptura teórica do Marx maduro com o jovem Marx e o Marx hegeliano em geral. (Althusser. 1984: 77-80).

No entanto, trata-se de uma leitura epistemológica do lógico marxista Althusser que desenha uma fronteira stalinista entre ciência e ideologia. Por exemplo, estabelece a fronteira stalinista entre a filosofia (ideologia) do jovem Marx e a ciência da história do Marx maduro. (Althusser.1969: 19). Segue neste caminho e transforma a economia política clássica moderna (Ricardo) na fase ideológica (pré-científica) da crítica da economia política. Para finalizar, transforma o pensamento de Hegel em uma ideologia filosófica da modernidade. Quanto a este último ponto, Lacan discorda abertamente de Althusser.

Althusser lê Marx como lógico. Hoje, é preciso ler Marx como gramático. Este caminho nos leva a ontologia de Marx estabelecida por Heidegger. E a retomada desta leitura por Lévinas na cultura da pós-modernidade. Nesta, o discurso abandona o sujeito lógico (com toda a sua rigidez fatal para o autor, onde este não pode cometer erros) pelo sujeito gramático do paradoxo e da paralogia. Na cultura da pós-modernidade saímos do contrato social dos lógicos e entramos no contrato social do gramático (Lyotard. 1979: 119).

A cultura da pós-modernidade aposentou o discurso do obstáculo e da ruptura epistemológicos de Bachelard a Althusser. (Lecourt: 31-36). Assim, ela abriu a janela para o surgimento do gramático na filosofia em especial no livro Gramatologia, de Derrida e na obra de Lacan. Então se trata não de ler o livro O capital, e sim de gramaticalizá-lo.

Como gramático, o capital é uma gramatica em narrativa lógica que atravessa a época da modernidade e alcança o século XXI. Hoje, o capital é o gramático de uma sociedade pós-capitalista. Assim, se estabelece a distinção fundante (da produção do contemporâneo do século XXI) entre crítica da economia política do capital e a sociedade pós-capitalista. No lugar da crítica do capital entra a gramaticalização do capital. O capital deixa de ser algo do domínio da física da economia política (Marx.1977: 12-13), que significa a supressão da metafísica do capital. Ele se transformar em capital gramatical persistente em o seer da sociedade pós-capitalista.           
                                                                 III

A passagem da metafísica do capital para a física do capital abalou os alicerces da filosofia desde Platão.

Heidegger diz sem pestanejar:
“Através de toda a História da Filosofia, o pensamento de Platão, ainda que em diferentes figuras, permanece determinante. A metafísica é o platonismo. Nietzsche caracterizou sua filosofia como platonismo invertido. Com a inversão da metafísica, que já é realizada por Karl Marx, foi atingida a suprema possibilidade da Filosofia. A Filosofia entrou em seu estágio terminal. Toda tentativa que possa ainda surgir no pensamento filosófico não passará de um renascimento epigonal e de variações deste. Por conseguinte, o fim da Filosofia será uma cessação de seu modo de pensar? Tal conclusão seria muito apressada”. (Heidegger. 1973 :270).

A refundação da Filosofia (como filosofia da praxis e, hoje, como filosofia gramatical historial) encontra-se no nano texto Teses sobre Feuerbach, de Marx. (Labica: 144; Gramsci. 1977: 1844-1846). Heidegger fez a leitura ontológica da tese 11 e concluiu a passagem   da filosofia da contemplação à filosofia do agir, isto é, a filosofia da prática como força prática revolucionária. (Lenin. 1974: 29).

Heidegger diz:
"O sacrifício é a despedida do ente em marcha para a defesa do favor do ser. O sacrifício pode, sem dúvida, ser preparado e servido pelo agir e produzir na esfera do ente, mas jamais pode ser por ele realizado. Sua realização emana da in-sistência a partir da qual todo homem historial age – também o pensamento essencial é um agir – protegendo o ser-aí instaurado para a defesa da dignidade do ser. Esta in-sistência é a impassibilidade que não permite que seja contestada a oculta disposição para a despedida própria de cada sacrifício. O sacrifício tem sua terra natal na essência daquele acontecimento que é o ser chamando o homem para a verdade do ser. É por isso que o sacrifício não admite cálculo algum pelo qual seria calculada sua utilidade ou inutilidade, sejam os fins visados mesquinhos ou elevados. Tal cálculo desfigura a essência do sacrifício. A mania dos fins confunde a limpeza do respeito humilde (preparado para a angústia) da coragem para o sacrifício, que presume morar na vizinhança do indestrutível”. (Heidegger. 1973: 248-249).

A filosofia da praxis ou pensamento-agir não está articulado pela lógica do interesse. Ele é a in-sistência do gramático historial do sacrifício na política. Ele se realiza antes e/ou depois do fenômeno da representação moderna. O sacrifício tem seu sucedâneo na estética do desinteresse kantiano na política. (Kant: 49-50).

Como pensar o sacrifício diante do significante-mestre da política moderna, a saber: a representação. Qual é a relação da representação moderna com a metafísica?

Heidegger diz:
“Ser um si-mesmo caracteriza, sem dúvida, a essência daquele ente que existe; mas a existência não consiste nem no ser-si-mesmo, nem a partir dele se determina. Pelo fato, porém, de o pensamento metafísico determinar o ser-si-mesmo do homem a partir da substância ou, o que no fundo é o mesmo, a partir do sujeito, o primeiro caminho que leva da metafísica para a essência ekstático-existencial do homem, deve passar através da determinação metafísica do ser-si-mesmo do homem”. (Heidegger. 1973: 258).

Escapar do sujeito-ente como sentido na representação parece uma tarefa impossível para um moderno. A solução ontológica é a do sentido do ser, do seer enquanto tal em seu desvelamento. A metafísica diz o que é o ente enquanto ente. Ela contém um lógos (enunciação) sobre o ón (o ente). A metafísica se movimenta no âmbito do òn he òn. Sua representação se dirige ao ente enquanto tal. O problema da representação faz pendant com o da compreensão:
“Uma tentativa de passar da representação do ente enquanto tal para o pensamento da verdade do ser deve, partindo daquela representação, também representar ainda, de certa maneira, a verdade do ser, para que esta, finalmente, se mostre como representação inadequada para aquilo que deve ser pensado. Esta relação que vem da metafísica e que procura penetrar na referência da verdade do ser ao ser humano é concebida como compreensão. Mas a compreensão é pensada aqui, ao mesmo tempo, a partir do desvelamento do ser. A compreensão é o projeto ekstático jogado, quer dizer, o projeto in-sistente no âmbito do aberto. O âmbito que no projeto se oferece como o aberto, para que nele algo (aqui o ser) se mostre enquanto algo (aqui o ser enquanto tal em seu desvelamento) se chama sentido (cf. Ser e Tempo, p. 151). “Sentido do ser” e “verdade do ser” dizem a mesma coisa”. (Heidegger. 1973: 259).    

A representação do sentido do ser da política moderna ocorre através da entidade do ente soberania popular. Passar da representação do ente como tal para o pensamento da verdade do ser significa subtrair do ente soberania popular o pensamento-agir como força prática da compreensão do seer? Nisto consiste o sentido do seer soberania popular na filosofia da praxis ou/e na filosofia gramatical historial?

Heidegger diz do pensamento-agir na medida em que a verdade é interpretada a partir do ser como a certeza do saber a respeito do seer, a Alétheia, o desvelamento como clareira do discurso do político.

Heidegger diz:
“Estas questões das quais a Filosofia tão estranhamente se abstém, nem mesmo podem ser colocadas por nós, enquanto não tivermos experimentado o que Parmênides deveu experimentar: a Alétheia, o desvelamento. O caminho que conduz até lá separa-se da estrada em que vagueia a opinião dos mortais. A Alétheia não é nada de mortal, assim como não o é também a própria morte”. (Heidegger. 1973: 277).

Aqui estamos, exclusivamente pensando o caminho que leva ao desvelamento da política como Alétheia: caminho da política que não está ao alcance da opinião dos mortais, cujo sentido da vida, na política, é evitar a morte do corpo carnal, e não a morte do corpo político representativo onde se produz o advento do real.

Na palavra de Lacan:
“Mas ao entrar o discurso político – atente-se para isso – no avatar, produziu-se o advento do real, a alunissagem, aliás sem que o filósofo que há em todos nós, por intermédio do jornal, se comovesse com isso, a não ser vagamente”. (Lacan. 2003: 535).                      

Faço a passagem da representação na metafísica para a representação na episteme foucaultiana. Trata-se de uma mudança de platô, de terminologia e de soluções distinta da questão da relação do sujeito gramatical texto estrito com a representação e o sentido do seer.               

Na modernidade, o problema da representação se apresenta na cultura na relação entre escrita (texto livresco) e realidade dos fatos. O ponto de partida é a ideia do jogo dos signos como similitude com a realidade dos fatos. O romance de cavalaria significa o ponto de partida do jogo em tela. No entanto, a não similitude aparece na metamorfose dos encantadores:
“Si bien que tous les índices de la non-ressemblence, tous les signes qui montrent que les textes écrits ne disent pas vrai, ressemblent à ce jeu de l’ensorcellement qui introduit par ruse la différence dans l’indubitable de la similitude”. (Foucault.1966 :61).

A época moderna se define pela tomada de consciência da dessemelhança entre a escritura e a realidade dos fatos. Assim, o valor da linguagem é ser a ficcionalização do mundo. Então, D. Quixote é a prosa-delirante de que a escrita é similar à verdade. (Idem: 62, 61). No entanto, a escritura não se tornou completamente impotente, pois passa a ter novos poderes.

A modernidade é uma transformação no espaço da cultura ocidental na qual a escritura não é o reflexo da verdade da realidade dos fatos. O mundo não é semelhante aos livros modernos. D. Quixote é a primeira das obras modernas, pois, nela a razão das identidades e diferenças zombam incessantemente dos signos. A realidade de D. Quixote é a da ficção como autonomia absoluta em relação à realidade dos fatos. Foucault diz que a verdade de D. Quixote não está na relação das palavras como a realidade fática, e sim na fina e constante relação que as marcas verbais tecem de si para si mesmas:
“La fiction déçue des épopées est devenue le pouvoir répresentatif du langage. Les mots viennent de se refermer sur leur nature de signes”. (Idem: 62).

Assim, a escritura aparece como objeto de sua própria narrativa.

A modernidade na cultura ocidental faz surgir o significante gramatical louco. O louco é aquele que se aliena na escritura da analogia da ficção com a realidade. Segundo a percepção cultural que se tem do louco até o fim do século XVIII, o louco não é o Diferente senão na medida em que se recusa a saber da Diferença; o louco só vê por toda parte similitudes e sinais de semelhanças entre o jogo dos signos e a realidade dos fatos. Hoje, poderíamos dizer dos jogos de linguagem?     

A representação como ficção abre uma nova época na história da cultura ocidental. No direito moderno do século XX, Kelsen trabalhou a representação como ficção na realidade política, isto é, ficcionalização da política representativa democrática. (Kelsen. 1987: 314-317). No entanto, o senso comum do político profissional do terceiro-mundo neocolonial (e parte da ciência política universitária) crê que há similitude entre a escritura da política e a política tout court. Trata-se de uma visão de mundo delirante da política que leva a classe política a se constituir como ente autotélico que age estrategicamente (simular, dissimular, enganar, sugestionar, mentir) para manter o delírio da semelhança entre o signo político e a realidade dos fatos políticos regulados pela soberania popular transformada em soberania oligárquica. 
                                                                           IV

Talvez seja um esforço (que não interesse a ninguém), ou seja, irrelevante fazer a passagem na abordagem da episteme clássica como problema da cultura para o discurso classicista como problema de cultura política, ou mais exatamente, de cultura da política.

Na episteme clássica, pensar a natureza binária do signo (significante ligado ao significado) significou pensá-la em junção com a teoria da representação. Na cultura política, o signo pensado é a soberania popular. Tal sentido da cultura política encontra-se exposta em Hobbes e outros filósofos e teólogos da política da idade clássica moderna.

Como ente, a soberania popular é o signo, se o signo é a representatividade popular da representação enquanto representável. (Foucault. 1966: 79). A soberania popular surge em uma cultura política que faz pendant com a cultura tout court da episteme clássica:
"En fait le signifiant n’a pour tout contenu, tout fonction et tout détermination que ce qu’il représent: il lui est entièrement ordenné et transparent; mais ce contenu n’est indiqué que dans une représentation qui se donne comme telle, et le signifié se  loge sans résidu ni opacité à l’intérieur de la représentation du signe”. (Foucault. 1966:78).

A episteme clássica da representação do signo soberania popular fornece o imaginário político da democracia representativa in-sistente, principalmente, nos países e continente ocidentais subdesenvolvidos. A in-sistência do ser de sentido da soberania popular é como se fosse uma escritura ontológica da política como tal. Na consciência inintencional do ser da política representativa democrática subdesenvolvida, o eleitor se deixa arrastar pelo fenômeno da representação do signo que remete para uma época que vai do século XVII ao século XVIII: o passado é vivido como um pesadelo no cérebro dos vivos.

Em uma passagem de Foucault, a junção da cultura em si com a cultura política encontra-se em uma lacuna sintomal arqueológica muito clara:
“Mais si on interroge la pensée classique au niveau de ce qui archeologiquement l’a rendu possible, on s’aperçoit que la dissociation du signe et de la ressemblance au début du XVII siècle a fait apparaître ces figures nouvelles que sont la probalité, l’analyse, la combinatoire, le système et la langue universelle, non pas comme des thèmes successifs, s’engendrant ou se chassant les uns les autres, mais comme un réseau unique de nécessités. Et c’est lui qui a rendu possibles ces individualités que nous appelons Hobbes, ou Berkeley, ou Hume, ou Condillac”. (Foucault. 1966: 77).     
                                                               V

Pensar o presente da política pela sobredeterminação (como fez Althusser) é pensar a representação para além do imaginário político de uma época. Outra coisa, é pensar a representação como significante no funcionamento do simbólico da cultura da política. (Fink: 89). A sobredeterminação é o fenômeno no qual o significante presente determina retroativamente a cadeia de representações do passado. Neste sentido, o passado deixa de ser a tradição da cadeia de representações como um peso de chumbo no cérebro dos vivos. (Marx. 1974: 335). Ele se torna algo suportável, ele não é mais o real como impossível de ser suportado por um homem ou mulher, ou criança da modernidade!

A tradição deixa de ser um pesadelo dos vivos, se os mortos enterram seus mortos. Assim, as representações do presente não funcionam mais por semelhança e comparação com as representações do passado. Este é o tema do imaginário em Foucault sobre a episteme clássica. (Foucault. 1966: 83). 
Foucault diz:
“Comme au XVI siècle, ressemblance et signe s’appelent fatalement. Mais sur un mode nouveau. Au lieu que la similitude ait besoin d’une marque pour que soit levé sont secret, elle est maintenant le fond indifférencié, mouvant, instable sur quoi la connaissance peut établir ses relations, ses mesures et ses identités. (Idem: 82).

A política moderna começa no fenômeno do imaginário político e é vivida através do funcionamento imaginário das representações do passado no presente. Por exemplo, a representação da política (como uma linha reta que vai da esquerda passa pelo centro e chega à direita) é uma representação imaginária do passado no presente. Na produção do presente da contemporaneidade, a política não é uma linha imaginária. Ela é um polígono mistilineo com seus lados curvilíneos e retilíneos.


Há lados na política. Por exemplo, na política brasileira temos o lado do bonapartismo tropicalista de onde advém a voz de Bolsonaro. O lado bolivariano, de onde advém a voz de Lula. O lado neoliberal neocolonial da Floresta amazônica, de onde advém a fala, em falsete, de Marina Silva etc.
Mas o tema do imaginário deu um salto qualitativo com Montesquieu:
“Ce n’est ordinairement le perte réelle que l’on fait dans une bataille (c’est-à-dire celle de quelques milliers d’hommes) qui est funeste à une Etat, mais la perte imaginaire et le découragement, qui le prive des forces mêmes que la Fortune lui avait laissées. (Montesquieu: 49).

A relação do imaginário (como perda imaginária do quê?) com o real e a Fortuna (esta só pode estar no campo do simbólico) na guerra como continuação da política por outros meios é o R.S.I. (Real/Simbólico/Imaginário), antes de Lacan. A perda do imaginário é aquela do objeto a lacaniano, isto é, objeto de desejo da política como guerra. No Brasil, a cultura da política funciona pelo imaginário a Foucault e faz cair no esquecimento o seer de sentido do imaginário Montesquieu/Lacan.

Assim, ela não abre uma clareira em o seer soberania popular na relação presente/passado/futuro (na relação da representação como relação signo/fundo do seer da tela gramatical da política como similitude) da cultura em si fazendo pendant com a cultura da política e a política tout court.  
Entre nós (e isto beira o maravilhoso grotesco), a política segue a arqueologia da episteme clássica. Ela não foi afetada ou pela revolução freudiana da sobredeterminação (Althusser/Lenin) e/ou pela revolução R.S.I.
                                                                                   VI                                                  

Com Kant ocorre pontualmente a passagem da episteme clássica moderna para a episteme da modernidade como tal. Então, é proveitoso recorrer ao conceito de sobredeterminação freudiano para pensar a cultura ocidental e sua política representativa democrática.

Foucault diz:
“On objectera peut-être que le seul fait de voulois analyser à-la fois et d’un seul tenant, la grammaire general, l’histoire naturelle et l’économie, en les rapportant à une théorie générale des signes et de la représentation, suppose une question qui ne peut venir de notre siècle. Sans doute l’âge classique, pas plus qu’aucune autre culture, n’as pu circonscrire ou nommer le systeme générale de son savoir”. (Foucault. 1966: 90).

 Na tela gramatical do seer da política, a soberania popular encontra-se no fundo do quadro como signo da representação de uma cultura política que articulará a democracia moderna. A Gramatica Geral anuncia o gramático da política moderna, a saber: a soberania popular representativa fazendo pendant com a representação no espaço da cultura tout court europeia:
“C’est dans région qu’on rencontre l’histoire naturelle, - science des caractères qui articulent la continuité de la nature  et son enchevêtrement. Dans cette région aussi qu’on rencontre la théorie de la monnaie et de la valeur, - science des signes qui autorisent l’échange et permettent d’établir des équivalences entre les besoins ou les désirs des hommes. Là enfin que se loge la Grammaire générale, science des signes par quoi les hommes regroupent la singularité de leurs perceptions et découpent le mouvement continu de leurs pensées. Malgré leurs différences, ces trois domaines n’ont existé à l’âge classique que dans la mesure où l’espace fondamental du tableau s’est instauré entre le calcul des égalités et la genèse des représentations”. (Foucault. 1966: 88).

Com o gramático soberania popular, a política e o saber da política se constituem em um domínio territorial trans-subjetivo autônomo em relação à moral e à teologia como desejava Maquiavel e. em menor intensidade, Marx. Em Marx, a fronteira entre teologia e ciência da política jamais se desfaz, pois, a burocracia estatal é, antes de tudo, um fenômeno teológico:
“El ‘formalismo de Estado que es la burocracia es el ‘Estado como formalismo’, y como tal formalismo lo describe Hegel. Pero, como este ‘formalismo de Estado’ se constituye en poder real y se convierte por sí mismo en proprio contenido material, de suyo se comprende que la ‘burocracia’ es un tejido de ilusiones prácticas o la ‘ilusión del Estado’. El espíritu burocrático es un espíritu totalmente jesuístico, teológico. Los burócratas son los jesuitas de Estado y los teólogos de Estado. La burocracia es la république prêtre”. Marx. 1982: 359).    

O leitor pode encontrar o debate sobre junção entre teologia e ciência (teologisação da ciência), no pensamento da modernidade em Kant, em um autor israelense. (Funkenstein: 395-414). A investigação gramatical da relação entre teologia e cultura digital atravessa todo um livro de um parisiense ilustre (Lévy: 81-99). Exploro gramaticalmente a relação entre teologia e política em um livro publicado em 2017 .

                                                                                         VII

A episteme da modernidade tem na economia política sua ancoragem. Foucault diz que Adam Smith fundou a economia tout court. No centro gramatical deste saber encontra-se o significante trabalho. A economia deixa para trás a Análise das representações. A economia fala de mecanismo exteriores à consciência humana (a ideologia, ou Análise das representações). (Foucault. 1966: 238). A ideologia é reduzida a uma psicologia e no lugar dela surge a história natural do modo de produção e circulação.

Foucault lê a economia política a partir do O capital de Marx ou crítica da economia política. A história do modo de produção e circulação é aquela da sociedade capitalista das lutas de classes. A economia capitalista faz pendant com a sociedade industrial moderna. O trabalho é a força-de-trabalho que no processo de produção do capital gera a mais-valia relativa. Palavras como capitalismo e sociedade capitalista forma criadas por Marx!

Qual é o efeito da substituição do trabalho pela força-de-trabalho que produz a riqueza capitalista?  A questão principal não é mais o que é o trabalho, e sim o que é o capital. Para se chegar a ideia da sociedade industrial capitalista é preciso antes saber o que é o capital.

Em Smith, o capital é uma coisa, conjunto de meios de produção como fonte de rendimentos (Böhm-Bawerk. v. 2: 46). Pode ser o capital como técnica de produção de riqueza. (Böhm-Bawerk. v. 2: 35-37). Em Marx, o capital não é uma coisa da produção econômica, ele é a relação social capitalista que usa a técnica industrial moderna para a produção da mais-valia relativa. (Marx. 1996. Livro 1. v. II: 584, 885). Como relação social da sociedade capitalista, o capital é luta de classe entre si e a força de trabalho ou proletariado.

Qual é o efeito na cultura europeia produzido pela sociedade capitalista definida pela dialética materialista da luta de classes? O século XIX europeu é o século das lutas do trabalho contra o capital, da revolução social do trabalho que na forma de revolução popular ficou conhecida como Comuna de Paris 1971. A luta de classe produz um efeito na cultura política com a criação da organização política como forma do partido socialdemocrata de massa - com pinceladas marxistas.
Foucault diz que a organização na cultura em si é o significante motor da episteme da idade da modernidade. (Foucault. 1966: 230). Na cultura política, a organização sociológica transforma a política em algo que não é mais a representação da soberania popular. O partido político de massa substitui a representação da soberania popular por uma soberania oligárquica da elite do partido de massa. (Michels: 15). 

A política se torna o lugar autotélico da classe política ou classe dirigente. (Mosca: 306-317; Gramsci. 1977. v. 3: 1565). Este caminho leva até o fascismo e o totalitarismo alemão. (Mosca: 381-390). A cultura política totalitária se desenvolve em sua forma mais completa na Alemanha. Porém, ela se espalha pela política mundial da América-Latina (Argentina, Brasil) ao Japão.

A derrota da Alemanha na II Guerra é um momento de uma ruptura com o totalitarismo clássico. No entanto, o totalitarismo se põe e repõe (depois da II Guerra) como classe política definida como organização criminosa oligárquica sociológica. Em alguns países, o sistema cultural oligárquico funciona fazendo pendant com a episteme clássica da soberania popular. Trata-se de uma democracia representativa com dominância oligárquica.

A passagem da episteme clássica para a episteme da modernidade se faz tendo como causa a sociedade industrial científica. (Bernal: 418- 429). Tal sociedade é aquela da luta de classes. Trata-se também da passagem do discurso de Smith para o de Ricardo:
“Alors que dans le pensée classique le commerce et l’échange servent de fond indépassable à l’analyse des richesses (et ceci même encore chez Adam Smith où la division du travail est commandée par les critères du troc), depuis Ricardo, la possibilité de l’échange est fondée sur le travail; et la théorie de la production désormais devra toujours précéder celle de la circulation”. (Foucault. 1966: 267).       

Com Ricardo a esfera da produção torna-se autônoma em relação à esfera da circulação (troca) e à esfera da política, ou seja, ao Estado patrimonialista. Ao contrário, ela (a economia) determina a política, pois, o Estado passa a ser um efeito da sociedade industrial. Trata-se do Estado liberal da modernidade como comitê central da burguesia. Além do mais, Ricardo pensou a historicidade da economia abrindo a janela para Marx pensar a economia capitalista como história natural (Marx. v. 1. 1996: 4-5) e expandir o significante história para o território da política, como veremos mais a diante.
Foucault assiná-la sobre Ricardo:
“Avant même que la réflexion économique soit liée à l’histoire des événements ou des sociétés en un discours explicite, l’historicité a pénétré, et pour longtemps sans doute, le mode d’être de l’économie. (Foucault. 1966: 268).

Em Marx, Ricardo reverbera na construção de uma ciência global da história (a qual faz fazer pendant com uma filosofia gramatical da história?).

Com Ricardo a finitude antropológica e a raridade econômica definem a história a partir da carência fundamental como ameaça de morte do sujeito gramatical. Kant fez da finitude antropológica o caminho para a construção da episteme do século XIX no lugar da episteme clássica da representação. (Foucault. 1966: 269).

Em Marx, a relação da história com a finitude antropológica (Foucault. 1966: 273) retira a história do imobilismo ricardiano da história com o fantasma do futuro, a fantasia do futuro, isto é, o comunismo como fim da história da raridade e abolição da carência fundamental do homem como ser ameaçado pela morte diante da não realização de sua necessidade. O capitalismo é a prova que a ciência e a técnica industrial subtraem do saber do século XIX a ideia de carência fundamental e ameaça de morte iminente? Como o capitalismo é um modo de produção e circulação voltado para a transformação da mais-valia (riqueza produzida pela força-de-trabalho) em lucro industrial, um outro sistema econômico deve liberar o homem da história da exploração capitalista e do reino da necessidade.

Foucault considera, inintencionalmente, que a URSS não realizou a promessa de Marx. (Foucault. 1966: 274-275). O socialismo realmente existente não é o fim da carência fundamental e da finitude antropológica do homem como ser ameaçado pela morte. Sabe-se como Stalin implantou um regime de terror contra o campesinato e a população em geral para resolver o problema em tela na década de 1930. (Bethelleim: 209-252).

Foucault crê que Marx não é um fenômeno do lado de fora da cultura europeia. (Foucault. 1966: 273-274). Marx é parte da episteme da modernidade do século XIX. Assim, ele acaba por fazer uma leitura economicista de Marx ao ignorar a ciência gramatical da política feita na escritura 18 Brumário de Luís Bonaparte. Ciência da política que é um domínio suplementar da filosofia gramatical da história marxista.              

A passagem da episteme da modernidade para a episteme gramatical sociológica se faz com o advento da sociedade pós-capitalista (Drucker: 27-38) e o surgimento da organização gramatical sociológica no lugar da organização sociológica em si. No lugar da luta de classes em si, temos a luta de classes gramatical que reorganiza o espaço arqueológico da cultura mundial que faz parelha com a cultura ocidental.     
                                                                            
                                                                                        VIII

A leitura ontológica de Marx por Heidegger - em Lévinas - se transmuta em filosofia gramatical da história em Marx. Sigo este caminho para pensar a ciência gramatical da política no 18 Brumário de Luís Bonaparte fazendo pendant com o livro Entre nós.

Lévinas parte do ser como um processo de ser ou acontecimento de ser ou aventura de ser. O filósofo não parte dos “entes”: coisas, corpos animados, indivíduos humanos. Ele precisa evitar a violência à guisa de entes que se afirmam sem consideração uns para os outros na preocupação em ser:
“Origem de toda violência, diversa segundo os diversos modos de ser, vida dos viventes, existência dos humanos, realidade das coisas. Vida dos viventes na luta pela vida; história natural dos humanos no sangue e nas lágrimas das guerras entre pessoas, nações e classes; matéria das coisas, dura matéria; solidez; o fechado-sobre-si até os confinamentos intra-atômicos de que falam os físicos”. (Lévinas: 18).

Da cultura cristã advém este devotar-se-ao-outro como ente ou pessoa: “Na economia geral do ser e de sua tensão sobre si, eis que surge uma preocupação pelo outro até o sacrifício, até a possibilidade de morrer por ele; uma responsabilidade por outrem”. (Idem: 18). Em Marx, a responsabilidade com o fantasma do futuro (com aqueles que ainda não nasceram) é uma ruptura gramatical com a indiferença estaticamente dominante pelo fantasma ou do passado ou do futuro.

Ir até o sacrifício pelo outrem é o que define a política ontológica de Marx segundo Heidegger como já falamos anteriormente. A ideia moderna da política como cálculo, interesse econômico, violência para realizar a ambos é próprio do surgimento da racionalidade capitalista na aurora do modo de produção especificamente capitalista industrial. Marx a considerou uma violência despótica!
Há uma certa santidade na política de Marx? Lévinas diz:
“Tudo se passa como se o surgimento do humano na economia do ser virasse o sentido, a intriga e a classe filosófica da ontologia: o em-si do ser persistente-em-ser supera-se na gratuidade do sair-de-si-para-o-outro, no sacrifício ou na possibilidade do sacrifício, na perspectiva da santidade”. (Idem: 19).
Diria o cético atual marxista-leninista: a política do sacrifício não pode ser a política do burguês na visão de Marx. Ao contrário do cético, Marx diz sobre a fundação da sociedade do burguês que:
“Mas, por menos heroica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas dos povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da República romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica”. (Marx. 1974: 336).

Nas revoluções burguesas clássicas:
“ A ressureição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não fugir de sua solução na realidade; de encontra novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez”. (Marx. 1974: 336).

O enunciado sobre a revolução da grande tragédia histórica é o lado direito da Bando de Moebius que tem no lado anverso a grande comédia histórica. Se a Revolução napoleônica foi a grande tragédia histórica francesa na filosofia gramatical da história em Marx, a revolução liberal de 1848-1851 é subtraída da política europeia séria pela grande comédia da história. Trata-se do surgimento de um fenômeno político designado por Marx como bonapartismo.

Sobrinho de Napoleão, é eleito pela nação francesa presidente Luís Bonaparte que define uma prática política de substituição da democracia representativa pelo II Império moderno do século XIX. Marx vê na ontologia política democrática representativa uma veia cômica satírica associada, inintencionalmente, à metafísica dos grandes diálogos de Platão e, especificamente. à metafísica de Aristóteles. (Lévinas:  21).

Marx diz:
“A Assembleia Nacional eleita está em relação metafísica com a nação ao passo que o presidente eleito está em relação pessoal com ela. A Assembleia Nacional exibe realmente, em seus representantes individuais, os múltiplos aspectos do espírito nacional, enquanto que no presidente esse espírito nacional encontra a sua encarnação. Em comparação com a Assembleia, ele possui uma espécie de direito divino; é presidente pela graça do povo”. (Marx. 1974: 346).  

A diferença na política entre o sério e o cômico não é um problema para a fruição do prazer do texto pelo leitor diante de uma retórica erudita. Trata-se da diferença entre a luta efetiva e a luta falsa: “Vimos que durante os meses de março e abril os dirigentes democráticos haviam feito tudo para envolver o povo de Paris em uma luta falsa e como, depois, de 8 de maio, fizeram tudo para desviá-lo da luta efetiva”. (Marx. 1974: 369).

A estética histórica da política é uma dimensão essencial da tela gramatical da política em períodos de grande crise histórica:
“Em um momento em que a própria burguesia representava a mais completa comédia, mas com a maior seriedade do mundo, sem infringir quaisquer das condições pedantes da etiqueta dramática francesa, e estava ela própria meio iludida e convencida da solenidade de sua própria maneira de governar, o aventureiro que considerava a comédia como simples comédia tinha forçosamente que vencer. Só depois de eliminar seu solene adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel imperial, e sob a máscara napoleônica imagina ser o verdadeiro Napoleão, só aí ele se torna vítima de sua própria concepção do mundo, o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia e sim a própria comédia pela história universal”. (Marx. 1974: 373).

Marx criou duas categorias estéticas gramaticais: tragédia histórica e comédia histórica bonapartista. A comédia tem como sujeito da política o psicótico Luís. A comédia histórica tem como personagem coadjuvante a própria burguesia liberal:
“A burguesia industrial aclama assim com aplausos abjetos, o golpe de Estado de 2 de dezembro, aniquilação do Parlamento, a queda de seu próprio domínio, a ditadura de Bonaparte”. (Marx. 1974: 397). Marx não se sente bem vendo o liberalismo democrático transformado em uma comédia histórica, pois, para ele a democracia representativa é um fenômeno sério e valioso para as lutas populares. (Marx. 1974: 366).

A comédia histórica tem seu ponto alto com o governo de Bonaparte:
“Essa tarefa contraditória do homem explica as contradições do seu governo, esse confuso tatear que ora procura conquistar, ora humilhar primeiro uma classe, depois outra, e alinha todas elas uniformemente contra ele, essa insegurança prática constitui um contraste altamente cômico com o estilo imperioso e categórico de seus decretos governamentais, estilo copiado do tio”. (Marx. 1974: 408).  

Lévinas estabelece a relação ontológica entre a comédia e a tragédia assim:
“A comédia começa com o mais simples de nossos gestos. Todos eles comportam uma inevitável falta de habilidade. Ao estender a mão para aproximar uma cadeira, dobrei a manga do meu casaco, risquei o parque, deixei cair a cinza do meu cigarro. Ao fazer aquilo que queria fazer, fiz mil coisas que não queria. O ato não foi puro, deixei vestígios. Ao apagar esses vestígios, deixei outros. Sherlock Holmes aplicará sua ciência a essa grosseria irredutível de cada uma de minhas iniciativas e, por aí, a comédia poderá evoluir em tragédia. Quando a imperícia do ato se volta contra o fim buscado, estamos em plena tragédia. Laios, para frustrar as predições funestas, desencadeará exatamente o que é necessário para que se cumpram. Édipo, pelo fato de conseguir êxito, opera para sua infelicidade. É como a caça que, na planície coberta de neve, foge em linha reta do barulho dos caçadores, e assim acaba por deixar precisamente os vestígios que levarão à sua morte”. (Lévinas: 23-24).

Bonarparte foi deixando seus vestígios caninos na neve da política da Europa (e na política francesa) de sua completa falta de habilidade (na política interna) e nas relações internacionais, isto é, no concerto das nações europeias da guerra como a política levada por outros meios e/ou a política como guerra por outros meios, o da luta de classes. Em 1870, Marx arrematou o fim da comédia bonapartista como tragédia gramatical política francesa:
“Qualquer que seja o desenvolvimento da guerra de Luís Bonaparte com a Prússia, dobraram já em Paris os sinos pelo Segundo Império. Acabará como começou: com uma paródia. Mas não esqueçamos que foram as classes dominantes da Europa que permitiram a Luís Bonaparte representar durante dezoito anos a farsa cruel do Império restaurado. (Marx.1975 :170).
                                                                            VIII

A política em junção com a estética não é uma clareira ontológica qualquer para a abertura da filosofia gramatical da história:
“A existência histórica, que interessa ao filósofo à medida que ela é ontologia, interessa aos homens e à literatura porque é dramática. Quando filosofia e vida se confundem, não se sabe mais se alguém se debruça sobre a filosofia, porque ela é vida ou se preza a vida, porque ela é filosofia”. (Lévinas: 23).

A filosofia gramatical da história surge na tese 11 ad Feuerbach:
Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. (Marx. 1974: 59).

Trata-se da passagem da filosofia como ideologia da análise representação para a filosofia gramatical da história, seguindo um novo conceito da relação teoria e prática: praxis.

Lévinas diz heideggerianamente :
“Pensar não é mais contemplar, mas engajar-se, estar englobado no que se pensa, estar embarcado – acontecimento dramático do ser-no-mundo”. (Lévinas: 23).

Um outro problema da filosofia gramatical historial:
A ideologia da pós-modernidade subtraiu a consciência da cultura ocidental. Evitar tratar a consciência como ideologia ou falsa consciência é uma premissa da filosofia gramatical da história, como nos diz Marx:
“E assim como na vida privada se diferencia o que um homem pensa e diz de si mesmo do que ele realmente é e faz, nas lutas históricas deve-se distinguir mais ainda as frases de fantasias dos partidos de sua formação real e de seus interesses reais, o conceito que fazem de si do que são na realidade”. (Marx. 1974: 355).

O problema da consciência remete para a questão da responsabilidade. No entanto, a consciência da realidade dos fatos na política não significa a intenção do domínio da política tout court:
“É assim que somos responsáveis para além de nossas intenções. É impossível ao olhar que dirige o ato evitar a ação por inadvertência. Temos um dedo preso na engrenagem, as coisas voltam-se contra nós. Isto significa que nossa consciência e nosso domínio da realidade pela consciência não esgotam nossa relação com ela, que nós estamos aí presentes com toda a espessura de nosso ser. O fato de a consciência da realidade não coincidir com nossa habitação no mundo – eis o que na filosofia de Heidegger produziu forte impressão no mundo literário”. (Lévinas: 24).

Todos temos um dedo preso no sistema cultural oligárquico mundial. E este não é o passado que pesa como chumbo no nosso cérebro da atualidade. O sistema cultural oligárquico é o fantasma do futuro no presente como terceiro-mundialização do planeta comendo o segundo mundo subdesenvolvido capitalista. O primeiro mundo capitalista é exterior ao sistema cultural oligárquico? Sim! Na medida em que ele é a política como democracia representativa ocidental autêntica. São 2% de países no planeta.

Neste sentido, o primeiro mundo é responsável na política para além das próprias intenções oligárquicas dele, pois, ele tem um dedo preso na engrenagem do sistema cultural oligárquico mundial do fantasma do futuro.      

O fato de a consciência da realidade dos fatos política não coincidir com nossa habitação no mundo, eis um enunciado heideggeriano de Marx antes de Heidegger. Na produção do contemporâneo do século XXI, a nossa consciência da realidade dos fatos da política mundial não coincide com nossa habitação no sistema cultural oligárquico neocolonial da Terra com suas espécies autocráticas regressivas de governo como o criminostat (Virilio: 54-55), e/ou o Estado minimum do anarco-capitalista (Deleuze: 578), ou ainda, o duplo Estado: Estado com monopólio constitucional legítimo da violência real ou simbólica e/ou o Estado como monopólio fático deslegitimo da violência. (Giddens: 45).       

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