sábado, 17 de fevereiro de 2018

DO PRÍNCIPE INFAME


José Paulo 

GENEALOGIA DA POLÍTICA HISTORIAL 

A genealogia materialista racional da moral em descontinuidade reaparece como genealogia da vontade potência. Nietzsche é usado em geral para a reflexão da cultura como história. Trata-se de manejá-lo para pensar a vontade de potência na filosofia da história política do século XXI.

Primeiro, a crítica demolidora de Nietzsche à política moderna como continuação da decadência do homo logicus de Sócrates e Platão. Trata-se da ruptura entre o trágico e o racional. Marx mostrou como o trágico histórico criou a sociedade burguesa. Weber mostrou como a sociedade burguesa se transforma em uma sociedade capitalista regida pela razão instrumental em detrimento da narrativa trágica, lírica ou épica. Trata-se da sociedade da burocracia capitalista ou privada ou pública.

Marx viu uma fantasia do futuro como o lugar de uma história épica em uma genealogia da vontade de potência política:
“A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda veneração supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se iludirem quanto ao próprio conteúdo. A fim de alcançar seu próprio conteúdo, a revolução do século XIX deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes frase ia além do conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase”. (Marx. 1974: 337).   

A genealogia em tela tem um ponto de partida em Maquiavel com as noções da política como um agir de um gramático como efeito da Fortuna e da Virtú. Maquiavel designou seu gramático prático ou rhetor percipio como condottiere. Gramsci fala de um gramático Príncipe moderno fazendo pendant como o partido comunista. Então vamos avançar devagar.

O que é Fortuna? O que é Virtú?

O que é Fortuna?

A Fortuna é a época dada como conjuntura no sentido de Marx no O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Na genealogia materialista racional da política como vontade de potência, Maquiavel fala das particularidades do tempo e das coisas da política local, nacional e internacional. Ele pensa a Fortuna política como um quadro global de forças.

Nietzsche diz:
“Tudo esteve aí inúmeras vezes, na medida em que a situação global de todas as forças sempre retorna. SE alguma vez, sem levar isso em conta, algo igual esteve aí, é inteiramente indemonstrável. Parece que a situação global forma as propriedades de modo novo, até nas mínimas coisas, de modo que duas situações globais diferentes não podem ter nada de igual”. (Nietzsche.1999 :439).

Se as situações globais de forças são sempre diferentes, temos aí a ideia da conjuntura política como um quadro de forças de uma época (os estruturalistas falariam em estrutura do quadro global de forças) atualizada em uma situação política concreta com suas particularidades do tempo e das coisas políticos
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    II                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Gramsci estabelece a Fortuna como os graus de relações de força na sociedade capitalista do século XXI:
“1) uma relação de forças sociais estreitamente ligada à estrutura, objetiva, independente da vontade dos homens, que pode ser mensurada com os sistemas das ciências exatas ou físicas. Com base no grau de desenvolvimento das forças materiais de produção, têm-se os agrupamentos sociais, cada um dos quais representa uma função e ocupa uma posição determinada na própria produção.
2) O momento seguinte é a relação das forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais.
 3) o terceiro momento é o da relação das forças militares, imediatamente decisivo em cada oportunidade concreta. (O desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo) ”. (Gramsci. 2014: 40-43).
Há a passagem do quadro de relações de força onde um gramático permite pensar a dimensão relações de força na tela gramatical? Trata-se do Príncipe moderno gramatical voltado para a realização da revolução social gramatical do século XXI? Gramsci pensou o quadro de relações de força para a sociedade moderna capitalista da Itália e da Europa ocidental do século XX - quando tudo era claro e distinto para a política do marxismo ocidental.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 III                                                                                                                                                                                                                                                                     O quadro global de forças obedece à lógica da força? Ou se pode pensar uma tela gramatical onde habitam as relações de força?

Maquiavel diz que há uma relação sujeito político (Príncipe) e o objeto político (Estado) onde existe o governo do um como governo dos homens. Fundar, conquistar, governar e manter o Estado é obra do Príncipe? Claude Lefort diz que o imperio é o nome dado ao poder político que exerce o um ou grupo de homens (oligarquia) sobre os outros homens (Lefort: 348-349), mulheres e crianças. Trata-se de um poder que se exerce no Estado e na sociedade, sobre os civis e os religiosos.

Em Maquiavel, é claro que se trata do governo de uma força animal/homem (Príncipe/condottiere) sobre o quadro global das forças. (Maquiavel. 1973: cap. X). O imperio governa pela força (sujeito despótico animal) ou pela lei (sujeito político humano). A distinção entre natureza e cultura vai muito além da lógica da força. (Maquiavel. 1973: cap. XVIII). A lei inscreve o Príncipe ou poder político no reino da liberdade em contraposição ao reino da necessidade da força. Com a cultura ergue-se uma tela gramatical e o agir do gramático ou imperio. Assim, o Príncipe é definido como o gramático por sua relação com o imperio na tela gramatical animal e humana.

Maquiavel pensa a relação de força como natureza/cultura (animal/homem) e Nietzsche e Gramsci pensam a relação de força como gramatical.

O imperio é abarcado por significantes como Fortuna, virtú e Príncipe infame. A virtú diz respeito a um Príncipe com qualidades que remetem para o Bem. Aí, o Príncipe não está além do bem e do mal. No entanto, conquistar, governar e manter o Estado depende das relações do exercício do poder político com a Fortuna e a virtú não subtrai um terceiro fenômeno que surge na tela gramatical. Trata-se do fenômeno designado pela teoria política grega clássica como tirano. Se esta rechaça o tirano da ordem da lógica da política normal, já Maquiavel trata o tirano como o Príncipe infame.

Qual a diferença entre tirano grego e Príncipe infame maquiavélico?

O tirano é prisioneiro da lógica do antagonismo bem e mal. O tirano jamais será visto como um fenômeno positivo, e sim como devastação da política grega. Ao contrário, Maquiavel vê o Príncipe infame como um fenômeno positivo na época moderna.

 Agátocles Siciliano é o exemplo historial de Príncipe infame, de um poder político infame. Há duas maneiras de se chegar ao poder as quais não se podem atribuir totalmente à fortuna e a virtú (mérito, competência, habilidade, qualidades políticas subjetivas). Tais modos são: “chegar ao principado pela maldade, por vias celeradas, contrárias a todas as leis humanas e divinas; e tornar-se príncipe, por mercê do favor de seus conterrâneos”. (Maquiavel. 1973: cap. VIII).

Agátocles vem de condição impura e abjeta. Filho de oleiro, foi um criminoso em sua juventude. Fazia o mal com um vigor de animus e de corpo, e assim fez carreira vertiginosa na milícia de Siracusa: “Neste ponto, deliberou tornar-se príncipe e manter, pela violência e sem favor dos outros, aquele poder que lhe fora concedido por acordo entre todos”. (Idem: cap. VIII). Para expandir seu imperio, assassinou todos os senadores e os homens mais ricos de Siracusa. Mortos estes, ele se apoderou do governo daquela cidade e o conservou sem nenhuma hostilidade por parte dos cidadãos.

O Príncipe infame: “Como acima se disse, não por favor de quem quer que fosse, mas passando por todos os postos conquistados na milícia através de inúmeros dissabores e perigos é que alcançou o principado que manteve depois, à força de tantas decisões audazes e cheias de perigo. Ainda que não se possa considerar ação meritória a matança de seus concidadãos, trair os amigos, não ter fé, não ter piedade nem religião, com isso pode-se conquistar o mando, mas não a glória. Mas, considerada a habilidade de Agátocles, no entra e sair dos perigos, e sua fortaleza de ânimo no suportar e superar as coisas adversas, não há por que se deva julgá-lo inferior a qualquer dos mais ilustres capitães (condottiere). Todavia, a sua bárbara crueldade e desumanidade e os seus inúmeros crimes não permitem que seja celebrado entre os mais ilustres homens da história. Não se pode, pois, atribuir à fortuna ou a valor aquilo que ele conquistou sem uma e sem outro”. (Idem: cap. VIII).

O príncipe infame encontra seu gramático na transdialética para além do bem e do mal:
“Nossas mentes rechaçam a ideia do nascimento de uma coisa que pode nascer de uma contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do verdadeiro da vontade do erro; o ato desinteressado do egoísmo ou a contemplação pura do sábio, da cobiça. Tal origem parece impossível: pensar nisso parece próprio de loucos. As realidades mais sublimes devem ter outra origem, que lhes seja peculiar. Não pode ser sua mãe esse mundo efêmero, falaz, ilusório e miserável, esta emaranhada cadeia de ilusões. Desejos e frustrações. No seio do ser, no qual não morrerá nunca, num deus oculto, na ‘coisa em si’ é onde deve se lobrigar seu princípio, ali e em nenhuma outra parte”. Nietzsche.  :17-18)

O Príncipe é cultuado como um fenômeno sublime, figura ilustre e, talvez, bela da política historial. Só assim ele é metabolizado positivamente. Maquiavel inscreve o infame na positividade da política na aurora da era moderna. Maquiavel é nietzschiano antes de Nietzsche. Ele pensa o gramático na tela gramatical transdialética na ciência da política moderna. O Bem não é um valor transcendental e sim um valor conjuntural usado estrategicamente; ele não é uma virtude; ele é usado se for útil à fundação e/ou conservação do poder de Estado. Ele pode ser posto como um significante entre outros do poder estratégico. (Maquiavel. 1973: cap. XVI). 

Para termos base de comparação, Habermas fala do poder estratégico no espaço da comunicação. Pode ser o Príncipe eletrônico (Octavio Ianni) na sociedade do espetáculo de comunicação de massa ou mais ainda:
“Pero Habermas considera las formas ˂estratégicas>de comunicación (tales como mentir, despistar, engañar, manipular, etc.) como derivadas; implican la suspension de ciertas pretensiones  de validez (especialmente de la veracidade), son parásitas del habla orientada ao entendimiento genuino”. (McCarthy: 333). O poder estratégico usa atos de fala na superfície da cultura como: mentir, despistar, enganar, manipular, sugestionar, simular, dissimular, etc. Tal fato consiste em um modo de produção da aparência da semblância da política em si (discurso do político) e da cultura da política.

Ao se descoberta como algo equivalente, na alta cultura, ao Príncipe infame da sociedade da comunicação, o condottiere Habermas e sua brilhante, substanciosa, teoria do espaço público procedural (a alta cultura como efeito do diálogo e da luta entre interlocutores competentes, vencendo o melhor) foram sepultados no cemitério da cultura mundial.

O agir estratégico de Habermas teve como objeto de desejo infame o escritor renovador da filosofia alemão na década de 1980 (com sua obra magistral, desafiadora e instigante Crítica da razão cínica) Peter Sloterdijk.        
                                                                           IV
                       
A política é aparência e os resultados dos fatos consumados (Maquiavel. 1973: cap. XVIII). Então, o Príncipe mesmo com sendo infame no real da política pode ser tomado como um poder positivo. Ele não pode ter a aparência de odioso: “desprezível, o ser considerado volúvel, leviano, efeminado, pusilânime, irresoluto”. (Maquiavel. 1973: cap. XIX). Porém, o poder deve aprender a ser mau, a fazer o mal: “Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade”. (Idem: cap. XV).

Maquiavel pensa a política a partir do Príncipe natural (príncipe hereditário), príncipe antigo e do Príncipe novo. O Príncipe infame só pode estar na espécie Príncipe novo. Ele jamais será um efeito da natureza (das linhagens de sangue reais da Idade Média) ou da ética da política da antiguidade. Ele pode ser um efeito da política como campo de forças onde o poder deve encontrar as condições de um equilíbrio. (Lefort: 352).

A propósito. A Fortuna é mulher! (Idem: cap. XXV). A Fortuna é não-todo, não-toda. Trata-se de um quadro global de forças incompleto (não é a totalidade fálica do quadro global completo). Assim, há lacunas de força (buracos no poder político) onde o Príncipe pode agir na tela gramatical de forças. A tela gramatical tem espaço para o acaso e o agir na sua incompletude ou lacunas ou falta de lógica (sgrammaticatura) da narrativa da política.
                                                                     V- APARENCIA E SEMBLANCIA  

Um discurso que não fosse semblância parece desejar o retorno da dupla metafísica: aparência e essência; superfície e profundidade; verdade e erro; verdadeiro e mentira, etc. Já observamos que o discurso nietzschiano sepulta a dupla da metafísica socrática/platônica. Maquiavel pensa como Nietzsche que em política só existe superfície e aparência. No entanto, Hannah Arendt fala da aparência da semblância tornando o pensar do espaço político mais complexo e intrincado. E Lacan fez da semblância um caminho necessário para se pensar o discurso político em sua relação com o real. (Lacan. 2003:  535).

Hannah Arendt pensa a semblância fazendo pendant com o conceito de ideologia de Marx? Lacan julgou que a ideologia é concepção-do-mundo. Marx não fez ideologia; o pensamento de Marx é um evangelho. (Lacan. 1975: 32-33). Marx agiu no território da teologia materialista racional? então, trata-se de aniquilar a ideia de mundo teológica como uma ideia metafísica. (Lacan. 1975: 43). Não há mundo; há a Terra, o planeta, o território. Mundo é aparência da semblância da ideologia no território da teologia religiosa, da filosofia metafísica e da história tradicional.

Lacan vê a incultura de massa como satisfação do blablabla que não faz laço social. (Lacan. 1975: 49). A incultura da sociedade do espetáculo de massa luta para produzir a aparência de semblância sem chegar a ser um dos discursos lacanianos. (Lacan. 1991: 31).     
           
                                                                                 VI
O sujeito diante de uma árvore florida vê o quê? Vê a realidade tout court?

Heidegger fala da relação do homem com a árvore florida como imagem e signo, de onde retira-se o dito. (Heidegger. 1972: 53). Indo além, trata-se da linguagem da representação do pensar. Se a árvore é o mundo, a física desmancha a árvore como imagem e signo do homem comum; dissolve no discurso do físico o mundo como representação, o olhar do homem comum sobre a realidade; o mundo aparece para o físico como constituído de partículas. O homem comum pensa a realidade como um todo cultural de sentido (e como engano dos sentidos) e jamais vê o mundo do discurso do físico. O mundo do discurso do físico é falta de sentido, ou melhor, não é a realidade do físico um mundo. (Heidegger. 1972: 330).

Pensar o mundo é o caminho do pensar o sentido do mundo. Assim é o enunciado de Nietzsche “O deserto está crescendo: desventurado aquele que alberga desertos”. (Heidegger. 1972: 52). A desertificação significa que o homem não consegue mais se manter no caminho do pensar a realidade do pensamento ocidental como homo logicus. (Heidegger. 1972: 26). Trata-se do gravíssimo de uma época grave não estar no caminho do pensar a própria época: decadência do pensar ocidental. Chegamos a época na qual pensar é apenas opinar.

As ciências em geral não têm meios de pensar o que é o pensar; a matemática é incapaz de pensar o que é a matemática, a historiografia o que é a ciência da história. (Heidegger. 1972: 36). O pensar é menos do que o saber científico da história que conhece em detalhe a realidade histórica. No entanto, a linguagem da ciência da história não pode pensar o que é tal linguagem. A coisa se complica quando Lacan diz que a linguagem (a língua forjada no discurso filosófico que pensa o mundo) não existe. (Lacan. 1975: 126). A matemática não sabe se pensar como língua, mas ela é capaz de atingir um real, de ser a matematização do real como fantasma (fantasia lacaniana) na realidade de lalangue (Idem: 118, 126).

A realidade como fantasia se inscreve no habitus. O homem tem o habito de ver o sol nascer e/ou se pôr. O nascer do sol não se espera na base de uma intelecção científica. SE contestará que o homem está habituado com a regularidade deste fenômeno. (Heidegger. 1972: 39). Aqui se subtrai o olhar científico sobre o fenômeno como realidade objetiva em prol de um olhar da realidade como fantasia lacaniana ou princípio da realidade freudiano. O que tudo isso tem a ver com a realidade política? 

Nesse caminho do pensar a realidade com Heidegger e Lacan encontro Hannah Arendt e sua teoria da semblância.

Não há identidade entre aparência e semblância: “A semblância é inerente em um mundo governado pela dupla lei do aparecer para uma pluralidade de criaturas sensíveis, cada uma delas dotada das faculdades de percepção”. (Arendt: 31).

A aparência da semblância remete para a percepção do mundo político?

Hannah diz:
“O mundo aparece no modo do parece-me, dependendo de perspectivas particulares determinadas tanto pela posição no mundo quanto pelos órgãos específicos da percepção. Esse modo não só produz erro (que posso corrigir por uma mudança de posição, aproximando-me do que aparece ou aguçando meus órgãos perceptivos com o auxílio de instrumentos e implementos, ou, ainda, usando minha imaginação para levar em conta outras perspectivas), mas também dá origem a semblâncias verdadeiras, ou seja, à aparência ilusória que não posso corrigir, como corrijo um erro, já que é causada por minha permanente posição na Terra e que continua inseparavelmente ligada à minha própria existência como uma das aparências terrenas. A semblância [dokos, de dokei moi], disse Xenófanes, está ‘inscrita em todas as coisas’, de tal modo que ‘não há nem haverá nenhum homem que conheça claramente os deuses e tudo sobre o que falo; pois mesmo que alguém tentasse dizer o que aparece em sua realidade total, ele próprio não conseguiria’ ”. (Arendt: 31).

O mundo político é percebido pelo homem comum do mesmo modo que ele percebe o sol se pôr? A política é como um hábito de quem habita a Terra? O homem comum olha a política representativa democrática como dando origem à aparência de semblâncias verdadeiras? Maquiavel parte deste pressuposto ao falar do agir correto do Príncipe. Este é um cadinho de aparência de semblâncias verdadeiras.

Pode-se falar também de semblâncias autênticas e inautênticas:
“Estas últimas miragens como a da de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa. As primeiras, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia. Aqui estamos lidando com ‘ilusões naturais e inevitáveis’ de nosso aparelho sensorial, a que Kant se referiu na introdução à dialética transcendental da razão. Ele chamou a ilusão no juízo transcendente de ‘natural e inevitável’ porque era ‘inseparável da razão humana e..., mesmo depois que seu caráter ilusório foi exposto, não deixará de lográ-la e de atraí-la continuamente para aberrações momentâneas que sempre pedem outras correções’. O argumento mais plausível, senão o mais forte, contra o positivismo estreito que acredita ter encontrado um solo firme de certeza quando exclui de sua consideração todos os fenômenos espirituais e restringe-se aos fatos observáveis, à realidade cotidiana dada aos nossos sentidos, é que semblâncias naturais e inevitáveis são inerentes a um mundo de aparências do qual não podemos escapar” (Arendt: 31), como escapa o astronauta em sua nave espacial, pois não habita mais a Terra.

Na tela gramatical da política, há esta diferença entre o mundo do político e o mundo do representado. Este habita a Terra, ou melhor, o território da política e não pode escapar da aparência das semblâncias que são um efeito do processo de representação político representado/representante.

O representante é o astronauta que olha a Terra de sua nave espacial saindo da estratosfera. A aparência de semblância de que ele representa a vontade ou o interesse do representado não existe para o político, a não ser que ele queira viver na auto- ilusão da racionalidade política da representação. Trata-se da semblância da razão política. (Arendt: 36).

Em suma:
“Assim, em nosso contexto, a única questão relevante é se tais semblâncias são autênticas ou inautênticas, se são causadas por crenças dogmáticas e pressupostos arbitrários, simples miragens que desaparecem diante de uma inspeção mais cuidadosa, ou se são inerentes à condição paradoxal de um ser vivo que, embora parte do mundo das aparências, tem a faculdade – a habilidade de pensar, que permite ao espírito retirar-se do mundo, sem jamais poder deixá-lo ou transcendê-lo. (Arendt: 36).

A tela gramatical em narrativa da aparência da semblância fala-nos sobre a linguagem política como ideologia e ciência como elaboração crítica no domínio das ciências:
“Um corpo permanece ‘maciço’ no sentido tradicional ainda que a ‘nova’ física demonstre que ele é constituído por 1/1.000.000 de matéria e por 999.999 partes de vácuo. Um corpo é ‘poroso’ no sentido tradicional, não no sentido da ‘nova’ física, mesmo após as afirmações de Eddington. A posição do homem permanece idêntica; nenhum dos conceitos fundamentais da vida é minimamente abalado e, ao menos, invertido”. (Gramsci. 2015: 169).

A ideologia ou concepção-do-mundo é o reino da aparência de semblâncias naturais ou artificiais, autênticas (ideologia orgânica) ou inautênticas (ideologia inorgânica) na tela gramatical. A luta política ocorre, até o fim, no reino supracitado como assinalou Marx. (Marx. 1974: 136).

Gramsci diz que todos os homens são filósofos gramaticais capazes de manejar uma linguagem com palavras plenas de conteúdo:
“É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são ‘filósofos’, definindo os limites e as características desta ‘filosofia espontânea’, peculiar a ‘todo o mundo’, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados, e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por ‘folclore’ ”. (Gramsci. 2015: 93).      

Todos os homens são “filósofos” na cultura mundial até a incultura da sociedade do espetáculo de massa destruir a pertinência da cultura oral popular urbana. Há uma ruptura na cultura mundial que desviou o caminho desenhado por Gramsci, pois, aniquilou a “filosofia espontânea” das massas gramaticalizáveis filosoficamente, pois, a própria linguagem não existe; fez desaparecer o  senso comum e o bom senso como aparência de semblâncias; afetou de um modo irrevogavelmente destruidor a religião popular, o sistema de crenças, opiniões, modos de ver e de agir do folclore político (a aparência das semblâncias da ideologia política)  do sistema da representação democrática:  
“Nota 1. Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos homem-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homem-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje, existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é consciência daquilo que é realmente, isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise”. (Gramsci. 2015: 94).   

A época do globalismo neoliberal é aquela da destruição da filosofia popular urbana na tela gramatical da política democrática representativa das metrópoles da Terra no Ocidente. A metrópole do Oriente asiático como sintetização do Ocidente capitalista vai no mesmo rumo de subtração de sua filosofia popular da cultura gramatical filosófica da Terra?    

Seguindo Nietzsche, Heidegger estabelece a cultura como técnica de interpretação de interpretação de um gramático em uma tela gramatical que pode ser a da política. A interpretação faz pendant com a loucura na tela gramatical em narrativa lógica ou sgrammaticatura.

Foucault diz que a morte da interpretação espreita no crer “que existem símbolos que existem primariamente, originalmente, realmente, com marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas”. Ao contrário, a vida da interpretação consiste em uma abrir mão da ideia de profundidade (essência, “coisa em si”, ideia transcendental, eterno, Deus) e navegar interpretativamente na superfície da aparência das semblâncias. A vida da interpretação abandona o suspeitar da linguagem da filosofia como metafísica.

Em Marx, a técnica cultural da interpretação como metafísica é a contemplação ideológica da aparência das semblâncias. Crer que não há mais do que interpretação, eis uma crença de Marx que o separa do marxismo do século XX. A ideologia crê que há profundidade abaixo da interpretação:
“La vie de l’interprétation, au contraire, c’ést de croire, qu’il n’y a que des interprétation. Il me semble qu’il faut bien comprende cette chose que trop de nos contemporains oublient, que l’herméneutique et la sémiologie sont deux farouches ennemies. Une herméneutique qui se replie en effet sur une sémiologie croit à l’existence absolue des signes: elle abandonne la violence, l’inachavé, l’infinité des interprétations, pour faire régner la terreur de l’indice, et suspecter le langage. Nous reconnaissons ici le marxisme aprés Marx. Au contraire, une herméneutique qui s’enveloppe sur elle-même entre dans le domaine des langages qui ne cessent de s’impliquer eux-même, cette région mitoyenne de la folie et du pur langage. C’est lá que nous reconnaissons Nietzsche”. (Foucault. v. 1: 574).

Na tela gramatical em narrativa lógica da política espreitam fenômenos com falta de gramática (sgrammaticatura), algo, que no domínio da cultura ocidental significa dançar na política com a loucura.

ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ: Editora UFRJ/ Relume- Dumará, 1992
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. Dits et écrits. v. 1. 1954-1969. Paris: Gallimard, 1994
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v. 1. RJ: Civilização Brasileira, 2015
----------------------------------------------------- . v 3.   RJ: Civilização Brasileira, 2014       
HEIDEGGER, Martin. ¿ Que significa Pensar? Buenos Aires: Nova, 1972
LACAN, Jacques. Le Séminaire. Livre XVII. L’envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991
LACAN, Jacques. Le Séminaire. Livre XX. Encore. Paris: Seuil, 1975
LACAN, Jacques. Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar Editor: 2003
LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard, 1972
McCARTHY, Thomas. La teoría crítica de Jürgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1992
MAQUIAVEL. Os Pensadores. O Príncipe. SP: Abril Cultural, 1973
MARX. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974 
NIETZSCHE. Os Pensadores. SP: Nova Cultural, 1999
NIETZSCHE. Além do bem e do mal. SP: Hemus, 1981
                  

  
               

         

                                  
        



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