A republica romana é a forma
mista de governo articulada a partir das três formas de governo mais
reconhecidas da cultura política universal: monarquia, aristocracia e governo
popular (das massas sujeito zero social).
O que se observa no texto de
Cícero é a articulação de uma linguagem política banhada a ouro pelo princípio
do narcisismo aristocrático. Nenhum sistema político sério sobrevive na cultura
política universal se a energia mítica narcísica não se condensa na classe
governante (classe necessariamente aristocrática verdadeira). Tal axioma tem
que ser observado na tela gramatical plástica da política, conceito de Cícero
que faz pendant como o significante cultura política. Passemos para o texto de
Cícero.
A tela política gramatical plástica
está exposta sem subterfúgios:
“ Assim, antes da nossa época,
vemos a força dos costumes elevar varões insignes, que por sua parte procuravam
perpetuar as tradições dos seus antepassados. Nossa idade, ao contrário, depois
de ter recebido a República como uma
pintura insigne, em que o tempo começara a apagar as cores, não só não cuidou
de restaurá-la, dando novo brilho às antigas cores, como nem mesmo se ocupou em
conservar pelo menos o desenho e os últimos contornos. Que resta daqueles
costumes antigos, dos quais se disse terem sido a glória romana? O pó do
esquecimento que os cobre impede, não já que sejam seguidos, mas conhecidos. Que
direi dos homens? Sua penúria arruinou os costumes; é esse um mal cuja
explicação foge ao alcance da nossa inteligência, mas pelo qual somos responsáveis
como por um crime capital. Nossos vícios, e não outra causa, fizeram que,
conservando o nome de República, a tenhamos já perdido” (Cícero: 183).
O nome República conservado no
discurso político não significa garantia da ex-sistência do fenômeno republica.
Hoje no Brasil, o discurso político se refere insistentemente ao nome
República. Mas o fenômeno ex-siste na realidade dos fatos? Cícero é o mais
reconhecido nome da filosofia eclética da antiguidade romana. Espantem-se! Ele
foi o primeiro escritor a apresentar na tela gramatical política da filosofia
eclética verdadeira (pensamento político da antiguidade após Platão e Aristóteles)
o significante República. Para diluir o ceticismo dos filósofos modernos
oferecemos o texto ciceroano:
“ I. ‘Se Roma existe, é por seus homens e seus hábitos’.
- A brevidade e a verdade desse
verso fazem com que seja, para mim, um verdadeiro oráculo. Com efeito: sem
nossas instituições antigas, sem nossas tradições venerandas, sem nossos
singulares heróis, teria sido impossível aos mais ilustres cidadãos fundar e
manter, durante tão longo tempo, o império de nossa República” (Idem: 183).
A cultura política é instituição,
tradição (que pesa como chumbo no cérebro dos vivos), heróis singulares,
fundação e conservação da política. Ela é a articulação de processos
trans-subjetivos (tradição), forma objetiva (instituição) e biografias heroicas
(interseção da subjetividade com o trans-subjetivo). Meus contemporâneos podem
não acreditar, mas este significante se define como cultura política universal.
A propósito, há uma afluição
intensa de energia narcísica mítica banhando a cultura política intelectual universal
da história mundial condensada no significante virtude: “ o que pode haver de
mais belo e preclaro do que a virtude governando a República? ” (Cícero: 157).
Montesquieu estabelece a virtude
como um significante trans-subjetivo da cultura política universal: “ A virtude
é tão necessária no governo popular quanto na aristocracia. É verdade que aqui
ela não é tão absolutamente requerida” (Montesquieu: 146). O Estado popular é o
Estado das massas sujeito zero estrangeiro: “ Libânio afirma que em Atenas um
estrangeiro que se imiscuísse na assembleia do povo era punido com a morte. É
que tal homem usurpava o direito de soberania” (Idem: 132) das massas sujeito zero ditatorial.
Há uma distinção entre formas de
governo definitiva: “ Para que o governo monárquico ou despótico se mantenha ou
se sustente não é necessário muito de probidade. A força da lei em um, o braço
do príncipe sempre erguido no outro, ajusta ou contém tudo. Mas, em um Estado
popular, se faz necessário uma força excedente, que é a virtude” (Idem: 144). O
muito de probidade não necessária significa o quase grau zero trans-subjetivo
na monarquia e na forma de governo despótico. É preciso não confundir a forma
política objetiva despotismo com o campo de poder fático ditatorial. Neste há
efetivamente processo de trans-subjetivação ditatorial das massas sujeito zero
democrático.
O Estado popular é o Estado
ligado diretamente ao processo trans-subjetivo das massas. Como
trans-subjetividade ethos da polis, a virtude das massas é aquilo que separa a
democracia da ditadura das massas. Hoje, há esta repetição incessante de um discurso
político que domina, afirmando que vivemos em uma democracia que só ex-siste
pelo nome Democracia na Constituição e em tal discurso político. O nome na
cultura política pode ser uma simples semblância inautêntica. Não se trata das
ilusões naturais e inevitáveis do nosso aparelho sensorial iludido naturalmente
com o movimento do Sol levantando-se pela manhã e pondo-se ao entardecer”
(Arendt: 31).
A leitura do funcionamento do
significante na filosofia política eclética é de difícil compreensão para a
filosofia moderna ou pós-modernista. A razão é que, sobretudo, o significante é
um trans-significante pelo seu deslizamento do campo da filosofia para a
superfície da cultura política intelectual. Tal deslizamento estava esperando
alguém que fosse capaz de demonstrar tal fenômeno. Trata-se de alguém no platô
da física geopolítica lacaniana.
O uso da tradução portuguesa não
impede que a leitura seja realizada. Nos remetemos para o texto de Cícero que é
um diálogo e um confronto com o livro A
República de Platão: “ – Luta sem descanso para consegui-la – respondeu-me
– e fica sabendo que não és mortal, mas teu corpo, porque não és o que pareces
por sua forma. O homem está na sua alma, e não naquela figura que com o dedo se
pode mostrar. Fica, pois, sabendo que é Deus, se Deus é quem pensa, quem sente,
quem recorda, quem provê, quem rege, modera e move o corpo, de que é dono como
Deus do mundo, quem, como eterno Deus soberano, move o universo e seu corpo
mortal com as energias de seu espírito” (Cícero: 188). Como transformar esta
ideia sublime e intrigante para o cérebro do nosso pobre intelectual do século
XXI em um problema de cultura política? Deus é a trans-subjetividade como RSI
(Real/Simbólico/Imaginário).
O que é a alma associada a Deus
como significante da cultura política. O Deus é o Deus de Platão? Deus é o
trans-significante RSI (Real/Simbólico/Imaginário) que pensa, sente (campo dos
afetos), que guarda a memória cultural política, que provê a riqueza, que rege
a política, modera o corpo político e o move em direções que só o trabalho do
significante pode realizar. Porém o RSI não é o trabalho sobre a interseção do Real
com o SI na articulação da realidade do real (dos fatos) como lógica de sentido
semântico, e sim como lógica de sentido gramatical: tela gramatical. Mostrarei
isso em um outro texto!
A cultura política é a articulação
da lógica de sentido trans-subjetiva das massas sujeito zero semântico. Deus
move a política com a energia espiritual narcísica gramatical. A política é
articulada trans-subjetivamente por um processo regulado pelo princípio do
narcisismo gramatical fazendo pendant com o princípio da realidade freudiano e
o princípio do prazer utilitarista (Bentham: 9-11).
A alma é a própria
trans-subjetividade em ação, ou melhor, trans-subjetivação:
“ Uma vez afirmada e demonstrada
a eternidade do ser que se move por si mesmo, quem pode negar que a
imortalidade é um atributo da alma humana? Tudo o que recebe impulso externo é
inanimado, todo ser animado deve ter, ao contrário, um movimento interior e
próprio; esta é, pois, a natureza e a força da alma. Com efeito, se somente
ela, em todo o Universo, se move por si só, é certo que não teve nascimento e
que é eterna. Exercita-a, pois nas coisas melhores, e fica sabendo que nada há
de melhor do que o que tende a assegurar o bem-estar da pátria; agitado e
excitado o espírito nessas coisas, voará veloz para este santuário, que deve
ser e foi sua residência, e ainda virá mais depressa se, em sublimes
meditações, contemplando o bom e o belo, romper a prisão material que o prende.
A alma dos que, abandonados aos prazeres voluptuosos e corporais, foram, na
vida, servos de suas paixões e, obedientes ao impulso se sua voluptuosidade
libidinosa, violaram as leis divinas e humanas, vagam errantes, uma vez
quebrada a prisão dos corpos, ao redor da Terra, e, só depois da agitação de
muitos séculos, tornam a entrar nestes lugares” (Cícero: 188). A
trans-subjetividade da cultura política romana pode se tornar de um modo
diferente e lúdico uma parcela da trans-subjetividade da cultura política do
século XXI? Talvez, se a soberania do mundo-da-vida privado sobre a política deixar de ser o centro da cultura política intelectual mundial.
Há uma transdialética
materialista entre a trans-subjetividade e o corpo como reino dos desejos? A
ética do desejo lacaniana é a ética do corpo em um contraponto à
trans-subjetividade da alma? A ética material do desejo em Cícero (que faz o
homem escravo de suas paixões) põe o corpo em uma antinomia com a alma no significante
trans-subjetividade? A trans-subjetividade não é a alma sem corpo político desejante
definido como pathos. Rios de sangue correram na batalha pelo significante
trans-subjetividade na história universal. A cultura política cristã realizou
banhos de sangue das massas sujeito zero cristã para assegurar a separação
entre corpo e alma.
A ética do desejo lacaniana é a
formulação de um trans-subjetiviação olhada de um platô do mundo-da-vida
separada da do mundo-da-vida político? Lacan
definiu a ética como um problema de cultura política sem o dizer com todas as
letras: “ Em torno desse suporte, falei-lhes do serviço dos bens que é a
posição da ética tradicional. Depreciação do desejo, modéstia, temperança –
essa via mediana que vemos tão notável em Aristóteles, trata-se de saber do que
ela toma a medida, e se a medida pode ser fundamentada”. (Lacan, S. 7: 377).
A ética só pode ser fundamentada
como um problema cultural político na física lacaniana da política: “A moral de
Aristóteles – vejam de perto, vale a pena – se funda inteiramente numa ordem
certamente arrumada, ideal, mas que responde, contudo à política de seu tempo,
à estrutura da Cidade. Sua moral é uma moral do mestre, feita de virtudes do
mestre, vinculada a uma ordem de poderes. A ordem de poderes não deve ser
absolutamente ser desprezada - não se trata aqui, de modo algum, de afirmações
anarquistas -, é preciso simplesmente conhecer o limite disso no que se refere
ao campo aberto à nossa investigação” (Idem; 377). Em ação o discurso do
mestre do Seminário 17.
Tal campo é aquele da física lacaniana da política, não? A moral do campo de poder da distribuição da riqueza em relação aos desejos foi modificada pelo discurso do analista? A moral do poder é aquela de uma superfície ditatorial em relação aos desejos: “ A moral do poder, do serviço dos bens é – Quanto aos desejos, vocês podem ficar esperando sentados” (Idem: 378). Na década de 1980, Lacan metabolizou a derrota da hegemonia do discurso do analista na cultura política intelectual mundial!
Tal campo é aquele da física lacaniana da política, não? A moral do campo de poder da distribuição da riqueza em relação aos desejos foi modificada pelo discurso do analista? A moral do poder é aquela de uma superfície ditatorial em relação aos desejos: “ A moral do poder, do serviço dos bens é – Quanto aos desejos, vocês podem ficar esperando sentados” (Idem: 378). Na década de 1980, Lacan metabolizou a derrota da hegemonia do discurso do analista na cultura política intelectual mundial!
O problema da semblância no
trans-subjetivo em Cícero exige um texto específico. No entanto, em Platão não
há semblância em Deus (Platon: 933-935). Deus não é idêntico ao
trans-subjetivo. Logo, se não há o mundo da aparência no RSI, Deus não é o RSI,
é apenas o simbólico. Separação entre Deus e alma.
Com efeito, o imaginário
lacaniano é um conceito incompleto quanto ao mundo das aparências e da
semblância. Lacan retomou este problema como cultural político no Seminário 18,
pensando no discurso que não fosse semblante: o discurso do analista. O mundo
das aparências (e da semblância) é o mundo fenomênico impresso como imagem na
trans-subjetividade como coisas da tela perceptiva sensorial, como esclarece
Austin:
“ A doutrina geral, enunciada na
sua generalidade, apresenta-se assim: nós nunca vemos, ou, de outro modo, percebemos
(ou ‘sentimos’), ou, de qualquer maneira, nunca percebemos ou sentimos diretamente objetos materiais (ou coisas
materiais), mas somente dados dos sentidos (ou nossas próprias ideias,
impressões, sensa, percepções
sensíveis, perceptos, etc.) " (Austin: 9). Tal doutrina tem por pressuposto que
os fatos não são verificáveis (Idem: 156). Trata-se de fatos em geral. Mas os
fatos precisam de substantivos.
Meus fatos são aqueles da cultura
política. Para verifica-los é preciso uma epistemologia política (“a melhor
posição possível de fazer qualquer afirmação”) que leve ao enunciado: “ Uma vez
abandonada a ideia de que existe um tipo
de frase especial que é incorrigível enquanto
tal, podemos muito bem admitir (o que, de qualquer forma, é obviamente
verdadeiro), que muitos tipos de
frases podem ser utilizados para enunciados afirmativos que são, de fato, incorrigíveis – no sentido em
que, ao serem formulados, as circunstâncias são tais que esses enunciados são
completa, definitivamente e irrevogavelmente verdadeiros” (Idem: 151). A teoria
verdadeira é a ciência do real catastrófico. Esta é a circunstância dos
enunciados irrevogavelmente verdadeiros.
Lacan pensou a semblância em
relação ao herói trágico (Édipo): “Se ele se arranca do mundo pelo ato que
consiste em cegar-se, é que somente aquele que escapa das aparências pode
chegar a verdade. Os antigos sabiam disso – o grande Homero é cego, Tirésias
também. ” (Lacan. S. 7: 371). A verdade é um problema cultural político que
articula ao RSI a estética e o cérebro atormentando pelo pesadelo da tradição? Novo
conceito de história!
II
O princípio do narcisismo é
necessário para a ex-sistência de qualquer classe política. A vaidade é o
significante que Cícero usa para inscrever em sua teoria tal princípio: “
porque as riquezas, o nome ilustre, o poderio, sem a sabedoria que ensina os
homens a governar e dirigir os outros, nada mais são do que uma vergonhosa e
insolente vaidade; não há no mundo espetáculo mais triste que uma sociedade em
que o valor dos homens é medido pelas riquezas que possuem. Ao contrário, que pode
haver de mais belo e preclaro do que a virtude governando a República? “
(Cícero: 157).
O princípio do narcisismo é real,
a virtude é ficcional. O princípio do narcisismo condensado em grande escala no
rei, na aristocracia e nas massas sujeito zero ditatorial pode significar a
passagem para, respectivamente, o tirano, a oligarquia e as massas ditatoriais.
Trata-se da física da economia política da hybris narcísica. A temperança
narcísica define a classe política como aristocracia verdadeira em um contraponto
à aristocracia vulgar. Princípio do funcionamento normal da energia narcísica.
O princípio narcísico ex-siste na
transdialética materialista da cultura política universal que articula forma
política objetiva e trans-subjetividade cultural política. A energia narcísica
mítica estabelece a distinção entre rei e falso rei aristocrata (rei vulgar/tirano),
entre a aristocracia verdadeira e a falsa aristocracia (aristocracia vulgar/oligarquia),
entre a plebe aristocrática (massas democráticas) e a plebe vulgar (massas
ditatoriais). As formas políticas vulgares respectivas são tirania, oligarquia
e ditadura das massas. Nesta, trata-se do funcionamento extraordinário do
princípio narcísico, ou seja, do apogeu permanente do surto narcísico!
A tradição bela da cultura
política romana é a articulação do rei aristocrata, da aristocracia como tal e
das massas aristocráticas. Então, o que é a aristocracia? Por que o
significante vulgar ditadura se forjou em tal cultura política?
Para as massas vulgares, a falsa
aristocracia tem o direito natural ao poder político (governo central).
Trata-se da aristocracia dos homens que são poderosos, os mais ricos, e das
mais antigas famílias oligárquicas. Para Cícero, a verdadeira aristocracia é
aquela na qual os políticos são versados em problemas de cultura política nacional
e mundial. Isto significa o governo dos vivos, dos mortos (fantasma do passado/
e do presente) e dos que ainda vão nascer (fantasma do futuro).
O princípio do narcisismo ex-siste
e funciona pela relação do governante com a tela política gramatical. Tal
relação deve ser aquela da temperança. Na fábula de Narciso, este ao se
apaixonar pelo que está na tela natural (espelho d’água) definha e morre.
Princípio da transformação do rei em tirano, da aristocracia em oligarquia e
das massas democráticas em massas ditatoriais. A energia narcísica mítica
existe na relação da classe política com a tela política gramatical. A morte de
Narciso é a passagem do poético/aristocrático para o prosaico vulgar.
O mito de Narciso é o paradigma de
todos os modelos de tela política gramatical na cultura política intelectual universal.
AUSTIN, j. L.. Sentido e
percepção. SP: Martins Fontes, 1993
BENTHAM, Jeremy. Uma introdução
aos princípios da moral e da legislação. Os Pensadores. SP: Abril Cultural,
1974
ARENDT, Hannah. A vida do espírito.
O pensar, o querer, o julgar. RJ: UFRJ Editora e Relume Dumará, 1992
CÍCERO. Da República. Os
Pensadores. SP: Abril Cultural, 1973
LACAN, Jacques. O Seminário.
Livro 7. A ética da psicanálise. RJ: Jorge Zahar Editor, 1991
MONTESQUIEU. De l’ esprit des
lois. v. 1. Paris: Flammarion, 1979
PALTON. Oeuvres Complètes. v. 1.
Paris: Gallimard, 1950
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