Deveis procurar o vosso inimigo, deveis fazer a vossa guerra e fazê-la
pelos vossos pensamentos! E, se o vosso pensamento for vencido, que a vossa
retidão lance, ainda assim, um grito de vitória!
(Nietzsche)
Introdução
No início de julho, os jornais de
papel noticiam como um fato normal da política brasileira que Lula e o PT
começaram um movimento no Estado (governo e Congresso) para a derrubada do
Ministro da Justiça petista José Eduardo Cardoso. Este agir resultaria na troca
da direção da Polícia Federal e em uma mudança profunda na ação investigativa
desta em relação à corrupção envolvendo o PT e o governo. A sociologia política
paulista e a ciência política ortodoxa carioca sempre atrasadas em relação aos
fatos não conseguem elaborar (nem simbolizar) a lógica do sentido factual (ou
artefatual) deste agir lulo-petista. A explicação mais óbvia é o colapso destas
ciências como produtoras de estruturas de pensamento. O resultado é a aplicação
frouxa, que prima por ser inconsistente, de suas teorias às formas e
instituições políticas factualmente existentes. A propósito, as ideias da
política vêm de fora da política em si. Elas vêm da cultura política em junção
com a cultura intelectual que fornece para a política as estruturas de
pensamento que organizam e orientam a ação política.
A física da história trabalha com
a realidade política fática e artefática. Lenin aprimorou a técnica dialética
materialista de Marx na leitura da realidade com o pensamento concreto de
situações concretas: contraconceito de conjuntura. Assim começamos
estabelecendo o sentido da atual conjuntura. Trata-se de uma situação concreta
na qual a lógica dos fatos (e dos artefatos) da realidade brasileira se
configura como crise da democracia pombalina? Ou a crise brasileira já também
se constitui em crise do Estado pombalino liberal? Estou escrevendo sobre a
lógica fática/artefática das formas e instituições políticas realmente
existentes. Um problema extremamente sério a ser tratado é como esta lógica
fática/artefática da crise brasileira é a traduzida pela lógica artefática
(fato midiático eletrônico) da cultura política eletrônica na medida em que
esta funciona como um buraco negro antissimbólico (homólogo à antibiótico) eletrônico
que destrói os significados políticos estabelecidos pelas outras culturas
políticas seculares; como se os significados fossem microrganismos causadores
de doenças infecciosas. A cultura eletrônica jamais se refere à liberdade
(significante central da cultura política liberal) ou à autoridade:
significante-mestre da cultura política conservadora. Há um pequeno grupo de
jornalistas que faz um jornalismo que procura traduzir para a cultura
eletrônica (e de papel) a lógica do sentido da realidade. Trata-se de um contrafluxo
jornalístico que se choca cotidianamente com o fluxo do noticiário determinado
pela estrutura técnica da linguagem jornalística. Eles inscrevem o jornalismo
como mito na cultura eletrônica, como o mito de Sísifo.
A conjuntura pombalina em crise.
Uma prática política espontânea
se estabeleceu em 2015. Ela é constituída pelo agir do Juiz Sérgio Moro com a
Polícia Federal, o Ministério Público Federal e uma parcela do jornalismo de
papel e eletrônico. Tal prática instituiu a lógica do desmoronamento do poder
político petista com o provável enquadramento legal de Lula como réu da operação
“Lava Jato”. Tal prática - conduzida pela burocracia pombalina liberal e pelo
jornalismo ilustrado - também parece querer capturar o governador petista de
Minas Gerias Fernando Pimentel (operação Acrônimo) candidato provável à
presidência da República em 2018 no caso do impedimento de Lula. Para o mundo
da cultura intelectual e da cultura jornalística, o movimento lulo-petista para
frear tal prática é um direito natural inscrito na lógica fáctica da política.
O PT diz que a ação burocrática pombalina liberal (secundada pelo jornalismo
ilustrado) é a instauração de um estado de exceção, ou mais propriamente, algo similar
a um golpe de Estado. O movimento lulo-petista seria um contragolpe de Estado.
O PT substitui a lógica do sentido da realidade política pela irrealidade (que
não é da ordem do imaginário brasileiro) da “ordem da mais-referência, da
mais-verdade, da mais-exatidão – consiste em tudo fazer passar para a evidência
absoluta do real” (Baudrillard: 37-38)? Trata-se do pathos petista em um
contraponto ao ethos liberal pombalino de Moro?
Este conflito tem que ser observado
como um problema do Estado inscrito na cultura política brasileira. O Estado
brasileiro tem uma estrutura federativa cuja lógica define a autonomia relativa
dos aparelhos repressivos. Não existe um ARE (aparelho repressivo de Estado),
mas uma multiplicidade de aparelhos repressivos que em uma situação normal
detém o monopólio da violência física (Poulantzas: 297) cuja unidade é
construída pela direção política da luta de classe da classe dirigente que
detém o poder de Estado, isto é, pelo exercício do poder de Estado nos
aparelhos de Estado (Althusser: 88). A unidade é constituída também pela
ideologia dominante (Idem: 89) que cai da cultura política dominante em uma
conjuntura histórica. A nossa atual conjuntura histórica tem como dominus a
cultura política pombalina metabolizada por uma ideologia pombalina. Os ARE
condensam as múltiplas “relações sociais” concretas e abstratas, naturais e
artificiais (são a condensação da realidade brasileira) inscritas na repetição
da cultura política conservadora colonial e da cultura política liberal
pombalina. Marquês de Pombal foi o criador do liberalismo político brasileiro.
Trata-se de um liberalismo amalgamado com absolutismo que teceu a primeira
Constituição do Brasil: a Constituição de Pedro I em 1824. Tal “pensamento
político concreto” luso-brasileiro articulou inclusive a Constituição de 1988.
Trata-se de uma tradição luso-brasileira. Pedro I é o Príncipe que lia Benjamin
Constant. Mas é o Príncipe que liga Constant à cultura liberal pombalina. Ele é
o arquétipo do Príncipe pombalino liberal entre nós: “esse liberal sincero não
dominava um fundo de irredutível autoritarismo (absolutismo). Todas ou
quase todas as crises do Primeiro Reinado estariam vinculadas àquela
contradição” (Souza: 81). Qual a diferença entre o Príncipe pombalino e o
Príncipe liberal em si (Montesquieu). Este define o seu poder como legítimo por
ser limitado, ou pela lei legítima (o avesso da lei tirânica ou despótica) ou
por outros poderes (princípio da autonomia entre os poderes estatais). O Príncipe
democrático (Rousseau) tem a garantia da legitimidade de seu poder na maneira
como ele é instituído. Só a república é legitima, pois nela o povo soberano
decide da lei sob a qual ele viverá. O poder é a expressão da vontade do povo,
o bom regime político é democrático. Constant pensou o Príncipe liberal
democrático. Sua filosofia política se condensa neste Príncipe eclético.
Trata-se de um pensamento político eclético “moderado” e bem temperado: um
equilíbrio de antagonismos. Um poder limitado pela autonomia dos poderes e da
liberdade individual garantida pela autonomia do indivíduo no mundo-da-vida
privada; e como expressão da soberania popular. Em relação ao poder como
expressão da soberania popular, ele acha razoável ir além de Montesquieu e
limitar tal poder também com a autonomia do indivíduo no mundo-da-vida privada
(Todorov: 43, 44). A liberdade do indivíduo frente ao Príncipe como dominus
legitimado pela vontade geral é o limite que garante que este poder seja uma
realidade do real legítima. Este Príncipe constantiano é o significante de uma
cultura política moderna que ex-istiu na Europa e nos USA. Pedaços dela
continuam existindo hoje nestes continentes geoistóricos. Trata-se atualmente
de um Príncipe que é um corpo político despedaçado. O ecletismo de Constant não
é uma conciliação de distintas lógicas políticas. Mas uma articulação sem
ambiguidade ou contradições de distintos axiomas de culturas políticas modernas
complementares antagônicas (Idem: 65).
Se Pedro I leu o livro Principes de Politique (Souza. 1988a:
130), ele estudou bem o Livre 4 sobre os golpes de Estado. Lá diz que se os
supostos chefes do golpe de Estado não são condenados pelo povo, a disposição
desse povo é tal que a punição desses conspiradores (Constant: 98) é
inutilmente desprovida de legitimidade, pois vai contra a vontade da opinião
pública. A Constituição de 1823 foi elaborada em ruptura com a cultura liberal
pombalina. Vianna se refere a ela como uma Constituição idealista, abstrata,
fora do mundo concreto dos homens que é a realidade da cultura política
concreta. Mas uma revolução liberal em si pode começar pelo significante do
liberalismo político como estrutura constitucional, como um esboço de cultura
política abstrata. Pedro I desfechou o primeiro golpe de Estado no Brasil
independente, o golpe de Estado contra o primeiro parlamento eleito pelo povo,
mesmo que esse povo fosse apenas um simulacro de simulação do povo-nação: povo
pombalino! A revolução liberal precisa ser pensada como uma linha reta ligando
a Europa do liberalismo político à América Latina?
“Anunciando-se a chegada de um
oficial, que vinha da parte do imperador, o secretário Galvão foi à porta da sala
e trouxe um decreto, que lhe fora entregue com à recomendação de ser lido e
devolvido. Era a dissolução. A Constituinte era dispensada porque ‘perjurara ao
seu solene juramento de salvar o Brasil’. Afrontando os deputados com essa
terrível acusação, D. Pedro I ainda quis ser irônico, mandando dizer que a
tropa que cercava o edifício viera para defender a Assembléia de qualquer
insulto” (Souza. 1988b: 80). Tal sarcasmo é apenas uma faceta do espírito
despótico (tirânico) conhecido e reconhecido até pelas Côrtes de Portugal (Lima:
80).
José Honório Rodrigues viu no
golpe de Estado de 1823 um significante que seria integrado à cultura política brasileira
– pela física da história - como golpe pombalino. Pedro I é o tirano que desfaz
a revolução liberal brasileira espontânea pelo golpe de Estado que transforma o
absolutismo no aspecto principal da cultura política pombalina. Esta é uma
unidade dialética cuja materialidade política possuía dois aspectos
contraditórios: absolutismo e liberalismo. Com o golpe, a Assembleia
Constituinte “ foi dissolvida pela tropa, dominada no momento pela facção
portuguesa. A ordem partiu de D. Pedro I, que dava, assim, o primeiro golpe de
Estado no Brasil, retornando ao absolutismo” (Rodrigues: 30). Depois ao
outorgar a Constituição feita com a ajuda de um conselho de Estado a cultura
política pombalina articula a forma seminal do sujeito político esquizo (Gilberto
Freyre: 7, 53) do Brasil independente. Ao invés de um dos aspectos dominar o
outro, ele aparece como um equilíbrio de antagonismo. Mas Rodrigues assinala
que o golpe de Estado é a lógica do desmoronamento normal da realidade política
como um pathos da política brasileira: “A dissolução é, assim, a marca inicial
de todo um processo secular, embora no Império a dissolução se tenha tornado um
processo nômalo e legal, e as anomalias se tenham revelado em formas
diferentes” (Rodrigues: 198). Esta
lógica significa o bloqueio permanente das condições de possibilidade políticas
da revolução tragada pelo buraco negro epistêmico do pombalismo que faz da
política um simulacro de simulação. A cultura política do pombalismo articula-se
como buraco negro arcaico paradigmático para as culturas políticas, inclusive
para a cultura política eletrônica. O
leitor vai encontrar, desde o século XIX, nos livros de história o uso do termo
revolução como um significante natural, quando, de fato, trata-se de revoluções
pombalinas, isto é, a revolução como simulacro de simulação. Os golpes de
Estado pombalinos recebem o nome de revolução. Dois exemplos no século XX são
suficientes como prova desse uso ideológico (distorção que oculta a realidade)
da linguagem política: Revolução de 1930 e Revolução Redentora de 1964.
Rodrigues estende tal lógica para toda a América Latina: “A américa Latina não
conheceu nenhuma revolução, apenas motins, rebeldias civis e militares. Somente
a contra-revolução foi vitoriosa, e as tentativas de revolução foram esmagadas
no sangue, ou derrotadas pelo terror” (Idem: 199).
A ordem liberal pombalina é a
estrutura que contém os axiomas e princípios que articulam o federalismo
brasileiro e a prática política oriundas do Congresso, do Judiciário e do
Governo no espaço nacional e estadual. Um axioma dela é a autonomia entre os
aparelhos do ARE. Assim, a lógica de independência do Ministério da Justiça em
relação ao governo está baseada em um direito natural gerado a partir do
pensamento político concreto que é um pensamento sempre articulado a uma prática.
Portanto, a prática de Sérgio Moro é uma prática normal da ordem pombalina liberal
que só é questionável enquanto prática pombalina pela lógica do idealismo liberal
de nossa elite: “Entre nós, com effeito, não é no “povo”, na sua estructura, na
sua physiologia, na sua economia intima e nas condições particulares da sua
psyché, que os organisadores brasileiros, os elaboradores dos nossos códigos
politicos vão buscar os materiais para as suas formosas e soberbas
construcções: é fora de nós, é nos modelos estranhos, é nos exemplos estranhos,
é nas jurisprudências estranhas, em estranhos princípios, em estranhos systemas
que eles se abeberam e inspiram – e parece que é sobre estes paradigmas forasteiros que a sua
intelligencia sabe trabalhar com perfeição”. (Vianna: 8). Primeiro estudioso
das culturas políticas brasileiras, Oliveira Vianna não chegou a investigar
seja a cultura política colonial conservadora, seja a cultura liberal
pombalina. Estas são a realidade concreta e abstrata da tradicional política
brasileira colonial que articularam o Brasil colonial, monárquico e republicano
até os dias atuais. Oliveira Vianna tem um ponto fraco na investigação das
culturas políticas entre nós. Trata-se de um estudo da cultura política in abstrato!
Mas o golpe de Estado lulo-petista busca legitimidade na técnica política
“viannista”: “idealismo de nossa elite”.
O conflito ente o lulo-petismo e
Sérgio Moro é um sintoma da crise brasileira? Neste caso, estamos diante da
crise do modelo político pombalino liberal? Recorro a história comparada para
iluminar tal questão concreta. Poulantzas estabeleceu o conceito de estatismo
autoritário como a nova forma “democrática” da república burguesa na conjuntura
que começa na década de 1970. Não se trata de um Estado totalitário, isto é, a
forma de um Estado de exceção: “O totalitarismo, quer se trate do fascismo, da
ditadura militar ou do bonapartismo, toma nas sociedades que nos importam aqui
(os países dominantes no Ocidente) uma forma específica, constitui um fenômeno
político próprio que já apontei, explicando as razões como forma de Estado de
exceção” (Poulantzas: 240). Apesar do equívoco comum de conceber a ideia de
Estado totalitário (pois não existe Estado totalitário), ele deixa a trilha
para se pensar as formas de Estado articuladas pela cultura política
totalitária. A ditadura militar brasileira estaria entre elas. Para o que
importa neste texto, o estatismo autoritário remete para a crise política e à
crise do Estado na Europa e nos USA no período assinalado (Poulantzas: 235).
Esta estrutura autoritária não deve ser identificada nem com o fascismo, nem
com um processo de fascistização, nem com uma forma transitória para um Estado
totalitário que povoou como fantasma ideológico a cultura intelectual europeia
e dos USA. Ela não é a forma de um verdadeiro Estado de exceção articulado pela
cultura totalitária fascista. No entanto, tal forma democrática capitalista
contem tendências totalitárias (Idem: 241) na medida em que o Urstaat dorme no interior do Estado
moderno. Isso significa apenas que o Urstaat está associado desde o início ao
discurso do mestre que articula a cultura política totalitária. Desejo frisar
que “ o estatismo autoritário não é uma simples resposta do Estado a uma crise
que ele se encarrega de enfrentar, mas uma resposta a uma crise que ele
contribuiu para produzir” (Idem: 245). Então, há uma homologia entre o
autoritarismo democrático e o Estado pombalino de 1988, pois este teve um papel
determinante na produção da crise brasileira atual desde o governo Collor.
Há vários caminhos na evolução da
crise brasileira do século XXI. As contradições do bloco-no- poder (unidade
política das classes e frações dominantes entre si e com a classe dirigente) parece
não ditar a lógica da crise do Estado brasileiro atual. Com efeito é a própria
crise do contrasignificante bloco-no-poder que articula a crise do Estado. Tal
crise é aquela da impotência hegemônica. Isto é, da incapacidade estrutural de
uma classe ou fração – através da classe dirigente – constituir a unidade
política de tal bloco em torno de um projeto de desenvolvimento capitalista que
leve o Brasil para o clube dos países hegemônicos na política mundial. Isso só
seria possível se a elite encontrasse um caminho para romper com o capitalismo
de engenho e a episteme do Engenho que articula - como cultura política
pombalina – a economia, a política e a cultura, em geral. Isso é a essência da
crise brasileira em tela.
Na conjuntura de 1990, Fernando
Collor sinalizou intempestivamente para uma ruptura com o capitalismo de
Engenho dentro da ordem epistêmica do Engenho. Tal choque com o capitalismo do
Engenho explica, parcialmente, a queda mediante um impeachment do primeiro
presidente eleito na República Democrática de 1988. Collor não podia saber na
época que tal república democrática era uma República pombalina do Engenho. [A
elite pombalina usou o movimento de massas “Fora Collor” para soterrar a
utópica ideia collorida de integrar o pais às redes produtivas do capitalismo
corporativo mundial]. Trata-se de uma forma política que contém em si o golpe
de Estado como técnica para resolver crises políticas quando necessário. O
impeachment de Collor foi claramente um golpe de Estado pombalino. Isso explica
porque Itamar Franco e FHC transformaram o “capitalismo dependente e associado”
do Engenho em um capitalismo neoliberal do Engenho. Ao fazer isso, a classe
dirigente do Estado pombalino criou os fundamentos da crise brasileira do
século XXI, pois todo sistema industrial do Engenho está fadado a se desintegrar
quando submetido à lógica do capitalismo corporativo mundial. Collor foi
destronado por usar o dinheiro das sobras de campanha ilegalmente. O único fato
jurídico material foi um recibo em seu nome comprovando a compra de um Fiat Uno
com tal dinheiro. Por isso, o STF o inocentou da acusação de corrupção. A
política de Dilma implodiu o projeto Petrobrás lulo-petista para pôr o Brasil
entre as nações desenvolvidas. E mesmo assim a classe dirigente pombalina alega
que não existem provas para comprovar a corrupção do governo Dilma Rousseff. Dilma
é a primeira mulher a governar o Brasil como um epifenômeno da ordem pombalina
capitalista do Engenho. Talvez isso explique porque ela não é capturada pelo
impeachment. O PT não transformou a esquerda brasileira em um artefato política
da ordem pombalina capitalista do Engenho? Saudades do PCB?
O funcionamento do Estado
pombalino pela lógica do simulacro de simulação liberal foi neutralizado pela
crise do bloco-no-poder que inscreveu no aparelho de Estado a possibilidade da
autonomia relativa efetiva (como efeito da organização liberal do Estado) do
Ministério da Justiça em relação ao governo e ao PT como partido dominante
pombalino do Estado. O PT orienta o governo no sentido do golpe de Estado
através do fim da autonomia relativa do Ministério da Justiça. Talvez isso só
seja possível através de uma reforma ministerial. Com o comando de Sérgio Moro,
a fração liberal pombalina antipetista adquiriu legitimidade moral e política
para definir uma solução para a crise política dentro dos limites da ordem
pombalina liberal. Tal praxis (unidade de significante e sujeito na prática
política) capaz de reestruturar o poder político por dentro da ordem pombalina
liberal não é uma revolução política e também não é um golpe de Estado, isto,
é, uma contrarrevolução. É o caminho do meio entre a revolução política liberal
em si e a contrarrevolução brasileira.
O golpe pombalino petista aponta
para um outro caminho. Trata-se do golpe pombalino totalitário homólogo ao
golpe absolutista de Pedro I cum grano
salis stalinista. Como o golpe pombalino faz parte da lógica institucional
factual, o jornalismo eletrônico tem que transformá-lo em um fato midiático
normal: engolir mais uma vez esse sapo barbudo! Interessante como a lógica midiática da
destruição dos significados políticos se transforma em lógica da conservação
dos significados pombalinos. Marx não abordaria isso como o funcionamento
normal da ideologia dominante? No Ocidente, ocorre a destruição sistemática do
significado político (Arendt: 138) dos significantes liberdade e autoridade
pela oscilação da opinião pública ora para o liberalismo, ora para o
conservadorismo. Arendt escreve sobre o liberalismo tendo como axial a
liberdade e o conservadorismo tendo como eixo o significante autoridade.
A autoridade não se confunde com
o uso do monopólio da violência física sem limite ou com a persuasão que opera
mediante um processo de argumentação que pressupõe um espaço público
procedimental. A autoridade política parece preferir a ação estratégica como
recurso de sua normalização? Na cultura política conservadora moderna, a
autoridade implica um uso da violência legítima (limitada pelo direito moderno)
e de violência simbólica sem limite da ideia-força, a ideia que é “hegemônica”
com a ajuda do poder político e/ou do poder simbólico da cultura jornalística
de papel ou eletrônica. Segundo Platão, política pode ser concebida como
paradigma da autoridade concreta para tratar dos assuntos públicos da polis.
Ele buscou uma alternativa para a maneira usual e manejar assuntos domésticos,
que era a persuasão (péithein), assim
como para a prática comum de tratar com a política externa, isto é, pela força
e a violência sem limite (bía).
No Brasil colonial, a cultura política
conservadora (que tem como eixo o significante autoridade) tem uma natureza
bifurcada. Ela se constitui como cultura política articulada a partir do Estado
português colonial e da sociedade oligárquica. Esta dimensão da vida brasileira
sustenta materialmente o poder político como realidade conservadora brasileira:
patrimonialismo luso-brasileiro e privatismo oligárquico genuinamente
brasileiro. Na superestrutura política ergue-se o edifício da cultura liberal
pombalina. A cultura política brasileira é a junção de conservadorismo (amalgama
da junção do Estado colonial com a sociedade oligárquica) com liberalismo
pombalino. Ela emerge na atualidade totalitária como resultado final desse
processo que vai transformar o golpe de Estado, de novo, como técnica para
solucionar a crise brasileira do século XXI. Isso tudo está de acordo com a
lógica factual das formas e instituições
da república pombalina. O destino de tal crise é a destruição do
significado do significante liberdade pombalina que aparece cada vez como um
insignificante para a população brasileira. Por outro lado, nota-se um esforço
considerável do poder político associado ao poder simbólico para conservar o
significante autoridade (mantendo-o inclusive fora de um debate na esfera
pública procedimental). Isso só é possível porque o poder simbólico existe em
função de um bloco ideológico epistêmico do Engenho que engloba a cultura em si
(estamento artístico), a cultura intelectual (principalmente a universitária) e
a cultura jornalística, em geral. O funcionamento anárquico da web impede que
ela seja capturada, manietada/manipulada por tal bloco ideológico. Gramsci tem
razão quanta o poder simbólico se constituir na defesa mais consistente e
poderosa da ordem capitalista. Isso se aplica também ao Brasil e à América Latina
que possuem uma ordem capitalista específica. O poder simbólico da cultura
eletrônica é um hiperpoder: um poder mais poderoso que o próprio poder
político.
A lógica artefática da
cultura eletrônica – onde ocorre a
tradução da fatualidade espontânea da política em si e da política do
mundo-da-vida em artefato midiático – está subsumida, entre nós, a lógica da
ordem pombalina liberal na atualidade. O golpe de Estado petista (onde não
existe distância entre palavra e gesto, entre palavra e coisa) pode produzir
uma inflexão na lógica factual da realidade do real (realidade conservadora)? A
realidade pombalina ex-iste como lógica artefatual, ou seja, como realidade em
si. O golpe de Estado altera o espaço político como superposição suplementar de
uma em relação à outra. Tal disjunção está em conceituação na produção pela subsunção do pombalismo liberal
à cultura conservadora colonial reeditada. A repetição histórica do
significante autoridade colonial está inscrita como demanda na população por
mais segurança como a solução para o desenvolvimento da guerra molecular
permanente nos grandes centros urbanos. Tal evolução não pode acabar na
construção do Urstaat pombalino!
A tirania militar não cabe na
definição de tirania de Hannah Arendt? “ O tirano é o governante que governa
como um contra todos, e os “todos” que ele oprime são iguais, igualmente
desprovidos de poder” (Arendt: 136). O que significa desprovido de poder e
concentração do poder político no UM? A tirania significa a total eliminação da
espontaneidade (Idem: 133) política -
exclusão na política da realidade do real, da lógica fáctica. Isso absorve toda
a energia mítica do inconsciente político (instinto de morte e narcisismo) que
se desloca para o Príncipe fascista. O totalitarismo alemão é tirânico na
medida em que ele se construiu pela absorção da energia na figura do Hitler e
também estabelecendo a realidade em si como defesa em relação à realidade do
real: “A estrutura de cebola torna o sistema organizacionalmente à prova do
choque contra a fatualidade do mundo real” (Idem: 137). Hitler condensa o poder
fascista em última instância e governa arbitrariamente, baseado em seus
interesses e de acordo com as fantasias políticas oriundas do inconsciente
político ariano alemão. Mas Platão definiu o tirano como a coisa que não
pertence ao gênero humano, chamando-o de “lobo em forma humana”. Hitler não
cabe exatamente em tal axioma platônico? Na física da história, o lobo tirânico
é o animal despótico freudiano. Este é a primeira máquina de guerra freudiana
mitológica da história da espécie humana. Ela se define pelo uso da violência
física sem limite de acordo com o instinto de morte freudiano e pelo mais-gozar
extraído da horda primitiva. Há uma máquina de guerra freudiana na ditadura
militar e os presidentes militares eram “lobo em forma humana”, mesmo João Figueiredo
e Castelo Branco. A tirania totalitária pode usar a lei no exercício do poder:
lei despótica, lei tirânica. Isso o aproxima do conceito de autoridade da
cultura política conservadora que usa o direito como limite para o exercício do
poder político? (Arendt: 134). A diferença consiste em que a autoridade
conservadora é limitada pelo direito e a lei despótica (direito despótico)
existe como um modo de potência do poder tirânico. Trata-se de um hiperpoder
político que é mais violento que a própria violência. Isso é uma faceta
sedutora do poder fascista que elimina a lógica do sentido do poder político,
do poder como realidade política em si. De fato, tal pode substitui o reinado
da lei pelo reinado da regra, do pacto político. O tirano condensa o poder na
medida que esse poder estabelece no lugar da luta de classes e das contradições
de classe as disputas entre famílias oligárquicas, clãs, facções e feudos que
se superpõe ao bloco-no-poder e subsume as divisões políticas. Assim o
estatismo autoritário se aproxima da tirania (Poulantzas: 285).
Na crise do bloco-no-poder do
capitalismo do Engenho, a burocracia liberal – dirigida por Sérgio Moro – entra
em choque com esta tendência tirânica do sistema político brasileiro? No
essencial do funcionamento da tirania entre nós (articulada pela subsunção do
liberalismo político pombalino à cultura colonial conservadora que é uma forma
não ocidental de conservadorismo) a lei funciona como regra que articula o
aparelho e Estado e a relação dele com a sociedade. O efeito dessa realidade é
que o parlamento deixa de ser o santuário da produção de leis modernas - o
poder legítimo de produção de normas gerais, universais e formais (idem: 251),
característica tática central da lei moderna. Afinal o direito é também um
campo de guerra onde o Estado moderno se define por abolir a guerra na
sociedade usando o monopólio legítimo da violência física e simbólica. O
parlamento passa a ser o espaço de produção de regulamentações particulares
adaptadas à tais ou quais relações de forças entre as facções legislativas que
funcionam como coluna avançada das máquinas de guerra partidária. O presidente
da Câmara Eduardo Cunha (PMDB) é o nosso lobo parlamentar com a face humana do
homem cordial com pitadas de sal evangélico. Ele é um personagem do capítulo
“Homem Cordial” do Raízes do Brasil:
“Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida (civilizada
europeia) do que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social
é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência –
e isso explica pelo fato da atitude polida consistir precisamente em uma
espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no “homem
cordial” (Holanda: 107).
Na tirania pombalina, também desaparece a
fronteira que separa o poder legislativo do poder executivo já que o poder de
normatização e de criação de regras desloca-se para o executivo como unidade de
governo com a administração estatal. Há uma clara distinção (na ordem onde a
regra aparece como ersatz da lei moderna) entre a democracia liberal em si e a
democracia despótica (autoritarismo democrático, democracia pombalina). O
sistema político funciona sem fundamentação na universalidade da norma e na
racionalidade da vontade geral representada por seus editores legítimos – os
partidos políticos que, como definiu a Constituição de 1988, não podem ser
paramilitares, isto é, máquinas de guerra freudianas. Os constituintes só não
podiam saber que o partido não é um partido político - uma instituição privada - (mas uma máquina partidária paramilitar freudiana), se o direito (secundado
pela ética da polis) não põe limites o uso da violência simbólica.
O gesto petista do golpe de
Estado é o caminho para a solução da crise política recorrendo ao velho recurso
da contrarrevolução como um direito político natural do partido máquina de
guerra. O final desse processo erguerá, provavelmente, uma tirania pombalina
que resguardará pedaços do sistema representativo repetindo a “ditadura
militar”. Então, todos os elogios de Lula e de Dilma Rousseff ao tirano general
Geisel vão adquirir um sentido pleno, substantivo. O PT tem se deixado seduzir
por esta lógica da tirania totalitária. Isso é fácil de entender. A cultura
política da sedução opera pelo desafio:
“O que é mais sedutor que o
desafio. Desafio ou sedução, é sempre enlouquecer o outro, mas de uma vertigem
respectiva; loucos pela ausência vertiginosa que os reúne e por uma respectiva
absorção. É essa a inelutabalidade do desafio e o porquê de não se deixar de
respondê-lo: é ele que instaura uma espécie de relação louca, muito diversa da
comunicação e da troca; relação dual que passa por signos sem sentido, porém
ligados por uma regra fundamental e por sua secreta observância. O desafio põe
fim a qualquer contrato, a qualquer troca regulamentada por lei (lei da
natureza ou lei do valor) e o substitui por um pacto altamente convencional,
altamente ritualizado, a obrigação incessante de responder e cobrir lances,
dominada por uma regra do jogo fundamental e escandida segundo um ritmo
próprio. Ao contrário da lei que está inscrita nas tábuas, no coração do céu,
essa regra fundamental nunca precisa ser enunciada, ela nunca deve ser
enunciada. É imediata, imanente, inelutável (a lei é transcendente e
explícita)” [Baudrillard: 93].
A física da história está
revelando, nos dias atuais, o segredo da política brasileira que consiste nessa
regra fundamental: a regra sedutora do golpe de Estado pombalino inaugurada –
como solução técnica para a crise política -
pelo primeiro Imperador do país: Pedro I.
BLIOGRAFIA
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