domingo, 10 de agosto de 2025

3 romances do PODER D'ARS

 José Paulo


Três romances do século XIX [“Minas de prata”, José de Alencar], do século XX [“A serviço del’rei”, Autran Dourado], do século XXI [“Pesadelo tropical”, Marcos Vinicius Almeida].  Três romances políticos sobre modos de ser psíquico da prática política tela da mente estética brasileira: passado estético colonial, monarquia e república. “Pesadelo tropical põe e repõe a imagem visual do assassino político e/ou social como personagens determinantes da história do Brasil. A propósito, os três romances fazem pendant com uma hipótese de Lacan:

“ao sublinhar que a verdade [...] em essência, a verdade, digamos, por si só, tem uma estrutura de ficção”. (Lacan. S. 16: 186). 

Como ficção estética, a verdade do Brasil existe a partir das lutas d’ars entre os artistas que remexem o passado, o presente e o futuro.

Narrador Pesadelo tropical (PT):

“Para os nativos destas terras, a Colônia não é o Novo Mundo: é um amanhecer depois do Apocalipse. Quando desembarquei deste lado do oceano pela primeira vez, foi essa a impressão. Não encontrei aqui um mundo novo, mas as ruínas de um mundo arcaico, mais antigo e ancestral, um mundo tão antigo e ancestral quanto as árvores e as pedras. Esses nativos esquecidos da própria língua, meio vestidos e meio nus, são sobreviventes daquele mundo antigo, um mundo que acabou”. 

Falar do ponto de vista do mundo arcaico em um contraponto ao mundo novo de europeus nas Américas, isso evoca a estrutura de dominação ideológica do Estado territorial e a gramática do capital na invasão do mundo antigo pré-colombiano:

“Tampouco há qualquer projeção do Paraíso Terrestre nos olhos um tanto insensibilizados, um tanto órfãos, das legiões de negros descendo dos barcos. Um cheiro de sal, de musgo, de peste. E quando um dos homens, o mais castigado, vai ao chão, recebe como brinde açoites e pancadas. o sangue que sai dos corpos dos negros tem o mesmo sangue vermelho do dos brancos, mas esse detalhe ínfimo, ao que parece, escapa à compreensão dos carrascos. E pouco interfere na cotação do ouro. O problema parece espiritual”.

“- Achas que esses pagãos têm alma?, Indagou-me certa vez um jovem sacerdote nas colônias da África”. (Almeida: 11).

A mundialização do Estado europeu e seu capital mercantil faz da  violência perversa do poder estético do capital mercantil do tumbeiro um petáculo de banho de sangue, ossos quebrados, o negro reduzido a um corpo sem alma. O PT evoca o livro ‘Brasil: uma biografia” que parece provar que o Brasil é um efeito político e social da violência do capital e do Estado. O livro “Tumbeiros” descreve em imagens visuais de um realismo fantástico a violência do navio negreiro, do aventureiro dominante escravocrata. Um cirurgião naval inglês deixou uma descrição da violência contra o negro que viaja no tumbeiro:

“A montoados no convés, e obstruindo as passagens em ambos os lados, agachados, ou melhor, curvados, trezentos e sessenta e dois negros, com doença, deficiência e miséria estampadas com intensidade de tal forma dolorosa que excedia qualquer poder de descrição. A um canto … um grupo de miseráveis estirados, muitos nos últimos estágios da exaustão e todos cobertos com as pústulas da varíola. Observei que muitos deles tinham rastejando até o lugar em que a água havia sido servida, na esperança de conseguir um gole do líquido precioso; mas incapazes de retornarem a seus lugares, jaziam prostrados ao redor da tina. Aqui e ali, em meio ao aglomerado, havia casos isolados da mesma doença repugnante em sua forma confluente ou pior, e casos de extrema emaciação e exaustão, alguns em estado de completo estupor, outros olhando penosamente em redor, apontando com os dedos para suas bocas crestadas… Em todos os lados, rostos esquálidos e encovados tornados ainda mais hediondos pelas pálpebras intumescidas e pela ejeção puriforme de uma violenta oftalmia, da qual parecia sofrer a maioria; além disso havia figuras reduzidas a pele e osso, curvadas numa postura que originalmente foram forçados a adotar pela falta de espaço, e que a debilidade e rigidez das juntas forçaram-nos a manter”. (Conrad: 56).    

O realismo grotesco (Kayser; 1986) da cena escravista ressalta a tela da mente estética na qual dominante e dominado, branco europeu e negro africano se encontram em uma relação de perversão d’ars de uma língua fenilato (Bandeira da Silveira; março/2025) atlântica.  

                                                              2

A interrogação mais óbvia sobre o título “A serviço del’Rei” é quem está a serviço do rei? João e Quintiliano estão a serviço do rei. Este personagens são a condensação e deslocamento no tempo e no espaço, no virtual e no territorial da gramática do general intellect gramatical (Bandeira da Silveira:05/2022) de uma civilização freudiana. a angústia é o fenilomenico [fenômeno da língua fenilato] universal:

“João se mandou para a casa de Quintiliano. Foi uma cena que jamais esqueceria. O poeta caiu em pranto a seus pés. O coração tiquetaqueando miúdo no peito, João fez de tudo o que seu mestre mandou. conheceu a angústia, o desespero, a alma pequena: o lado negro da natureza humana, o lado tenebroso do poder, o abismo no coração”. (Dourado: 73).

A angustia ou ansiedade é um fenômeno que fez fortuna no campo freudiano com Freud e Lacan:

“Não podemos achar que a ansiedade tenha qualquer outra fun~]ao, afora a de ser um sinal para a evitação de uma situação de perigo”. (Freud. v. XX: 162); Lacan. v. 10: 64). 

O general intellect gramatical é o hegemonikón d’ars de uma tela da mente estética como sede da angústia:

“Essa nova visão das coisas exige o exame de outra asserção minha - a saber, que o ego [eu] é a sede da ansiedade”. (Freud. v. XX: 164).

Para o intelectual del ‘rei, a angústia é o temor da perda de um objeto não fungível, do qual emerge o perigo para a subjetividade freudiana? 

Freud:

Tudo que precisamos fazer é proceder a uma ligeira modificação em nossa descrição do seu determinante da ansiedade, no sentido de que não se trata mais de sentir a necessidade do próprio objeto ou de perdê-lo, mas de perder o amor do objeto. Visto não haver dúvida de que a histeria tem forte afinidade com a feminilidade, da mesma forma que a neurose obsessiva com a masculinidade, afigura-se provável que, como um determinante da ansiedade, a perda do amor desempenha o mesmíssimo papel na histeria que a ameça de castração nas fobias e o medo do superego na neurose obsessiva”. (Freud. v. 20): 167). 

Como <massa analítica>, o general intellect gramatical (GIG) se põe em perigo ao perder o amor de qual objeto, de seu objeto? O objeto é o poder governamental ou outra espécie de poder? poder d’ars do realismo? Trataremos disso mais adiante:

“O verdadeiro perigo é um perigo que é conhecido, sendo a angústia realística a ansiedade por um perigo conhecido dessa espécie. A ansiedade neurótica é a ansiedade por um perigo desconhecido. O perigo neurótico é assim um perigo que ainda de ser descoberto. A análise tem revelado que se trata de um perigo pulsional. Levando esse perigo que não é conhecido do eu até a consciência, o analista faz com que a ansiedade neurótica não seja diferente da angústia realística, de modo que com ela se pode lidar da mesma maneira”. (Freud. v. 20: 190). 

Duas práticas políticas na tela da mente estética: a da perda do amor de um perigo da realidade do poder d’ars e o perigo da perda neurótica.       

                                                    3

Do real da vida americana estadunidense emergiu um poder d’ars governamental do realismo fantástico. Donald Trump é o seu artista angustiado. Antes de fazer a passagem de Freud para Laca, faço um parada na tela da mente estética Lima Barreto. Lima fez a gramática do louco como poder d’ars do realismo fantástico:

“Há os que deliram; há os que se concentram num mutismo absoluto. Há também os que a moléstia mental faz perder a fala ou quase isso. Quando menino, muito vi loucos e, quando estudante, muito conversei com os outros que essas cousas de sandice estudavam sobre eles, mas, pela observação direta e pelo que li e ouvi dos entendidos, percebi bem a perplexidade deles em face de tão angustioso problema da nossa natureza”. (Lima Barreto. 1956: 53).

O bovarismo da auri sacra fame e da gloria de pertencer ao general intellect gramatical são duas fontes quimilato da gramática do louco. Lima escreve sobre um interno de uma  colônia de loucos:

“Há, em muita cousa, um fundo de verdade, mas a exaltação da sua personalidade, a grande conta em que ele tem dos seus talentos, ora de médico, ora de dentista, ora de engenheiro, o seu delírio de grandeza monetária. soa, na verdade que se sente em algumas de suas palavras, como uma nota falsa. A mãe é rica, acaba de receber dois mil contos, os irmãos, cada um tem dois mil contos, etc, etc. Ele mesmo tem tido muito dinheiro e tem dado. Promete-me mundos e fundos. Pijamas de seda, passeios a Petrópolis, dinheiro, - a gruta do Ali-Babá. É exigente de roupas, que as tem possuído de primeira qualidade - tudo bom e fino, vindo do estrangeri para ele. Tem uma demanda com a administração, por causa de uns suspensórios que lhe custaram dezoito mil-réis. Em toda a sua narração de passeios etc., não se esquece nunca de dizer o preço do custo das cousas. Apesar de sua prosápia sabichona, é de uma ignorância crassa. Erra na ortografia como uma criança de colégio e a sintaxe é um Deus nos acuda. Obriga-me a rever os seus escritos. Fala com ênfase, entre os dentes, sibila e tem risada do João Barreto [um poeta amigo de Lima]. Não sabe onde fica Blumenau e quis me convencer que os ladrilhos do vestíbulo do hospício eram de mármore que vinha antigamente da Itália, e me explicou uma cousa fantástica de fornos, em que o mármore era transformado em ladrilhos. A sua pretensão intelectual é uma cousa comum à gente de Sergipe e o enlouqueceu, ao que parece”. (Lima. Idem: 60-61).

O realismo fantástico é algo como uma concepção política de mundo muito próximo de Lima como tela da mente estética de nós:

Eu sou dado ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensível; nunca, por mais que quisesse, pude ter uma concepção mecânica, rígida do Universo e de nós mesmos . No último, no fim do homem e do mundo, há o mistério e eu creio nele. Todas as prosápias sabichonas, todas as sentenças formais dos materialistas, e mesmo dos que não são, sobre as certezas da ciência, me fazem sorrir e, creio que este meu sorriso não é falso, nem precipitado, ele me vem de longas meditações e de alanceantes dúvidas”. (Lima. Idem: 50-51).

O delírio do interno é uma narrativa que, hoje, se aproxima da prática política do poder d’ars do realismo fantástico dos bolsonaristas, especialmente de Eduardo Bolsonaro que arrebata o Youtube:

“Para ele, ele é objeto de uma perseguição de poderosos [...]”

“Todos o têm como homem temível, e por isso procuram inutilizá-lo. Nada sei sobre os seus antecedentes. Só posso ter como certas cousas que ele repete da mesma forma; entretanto, não garanto, pois esse homem, no seu delírio, omite alguma cousa, para confessar mais tarde, e confessa outras, para negar logo depois. Disse-me que não esteve no xadrez dos locos uma hora; outra, diz que esteve. Diz que não esteve no Pinel, outra hora diz que esteve. Disse-me que era o seu advogado quem se interessava por ele; outra hora, diz que é um pronto e não tem informação”. (Lima. idem: 61-62).

A gramática do louco vai do realismo falso ao realismo fantástico:

“É um louco clássico, com delírio de perseguição e grandeza. É um homem inteligente, mas com cultura elementar, e o seu delírio, desde que não se o interrogue pela base, parece à primeira vista a mais pura verdade. No começo, ele me enganou; e julguei certo tudo o que dizia, mas, por fim, ele me revelou toda a sua psicose. Por me parecer interessante, eu vou reproduzir as histórias que ele me contou, procurando não quebrar a lógica mórbida com a qual as articulavas. Ele é de Sergipe e chama-se V. de O.”. (Lima. Idem: 56-57). 

Lima faz uma imagem estética do realismo fantástico do homem gramatical quimilato psicótico?          

                                                         4

A angustia realista aparece na relação de uma imagem de um objeto externo com um olhar na tela da mente de nós estética;  contudo, ela é o próprio poder d’ars gongórico realista fantástico da prática política verdadeiramente perversa do hegemonikón:

“Compareçam à primeira exposição que aparecer, por exemplo, a que está anualmente aberta ao público No Museu De Artes Decorativas, e lá vocês verão dois Zurbarán, um de Montpellier, outro de nantes, que lhes apresentam, este, Luzia, aquele, Agata, uma com seus olhos num prato, outro tendo neste seu par de seios, ambos mártires, o que significa testemunhas.”

“Mas as pessoas encantadoras que Zurbarán introduz, a nos exporem esses objetos num prato, não apresentam nada além do que, ocasionalmente, pode constituir - e não nos privamos disso - o objeto de nosso desejo. Essas imagens de modo algum nos introduzem, quanto ao que há de comum entre nós, na ordem da angústia”.

“Para que isso se produzisse, conviria que o sujeito estivesse mais pessoalmente implicado, que fosse sádico ou masoquista, por exemplo. Não me refiro a alguém que possa ter fantasias que rotulamos de sádicas ou masoquistas, mas a um verdadeiro masoquista, a um verdadeiro sádico, de quem possamos recoonhecer, coordenar, construir a condição essencial, a situação fundamental, por eliminação sucessivas, pela necessidade de levar mais longe o plano de sua posição que o do que nos é dado por outros como <Erlebnis> - termo mais homogêneo ao neurótico -, mas que é apenas a imagem de algo mais além, que constitui a especificidade da posição perversa, na qual o neurótico busca referência e apoio para fins sobre os quais voltaremos a falar. Assim, tentemos dizer o que as imagens de Luzia e Ágata podem realmente concernir, a chave disso é a angústia. Mas é preciso proculara”. (Lacan; S. 10: 180-181). 

Lacan fala da angústia como poder d’ars na tela da mente de nós perversos verdadeiros da prática política com um hegemonikón verdadeiramente perverso como potência e ato em fenilato capaz de criar o mundo. Esse hegemonikón cria e recria o mundo como teatro, ele é um artista do bronze que criou o Urstaat, por exemplo, ou um artista realista fantástico barroco que cria e desintegra as formas de governo:

“Ora, a dimensão da cena, tem sua separação do local, mundano ou não, cósmico ou não - em que está o espectador, está aí para ilustrar a nossos olhos a distinção radical entre o mundo e esse lugar onde as coisas, mesmo que sejam as coisas do mundo, vêm a se dizer. Todas as coisas do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis do significante, leis que de modo algum podemos tomar de imediato como homogênea às do mundo”.

“Portanto, primeiro tempo, o mundo. Segundo tempo, o palco em que fazemos a montagem do mundo. O palco é a dimensão da história”.

“A partir daí, pode-se levantar a questão de saber o que o mundo, o que chamamos de mundo no começo, com toda inocência, deve ao que lhe é devolvido por esse palco. Tudo o que temos chamado de mundo ao longo da história deixa resíduos superpostos, que se acumulam sem se preocupar minimamente coma as contradições. O que a cultura nos veicula como sendo o mundo é um empilhamento, um depósito de destroços de mundos que se sucederam e que, apesar de serem incompatíveis, não deixam de se entender muito bem no interior de todos nós”, (Lacan. S. 10: 42-43). 

A relação entre significante ou discurso ou gramática de um poder d’ars barroco e o mundo textual das coisas como palco da história é clara e distinta em Lacan:

“Troca de discurso - isso mexe, isso os, isso nos, isso se atravessa, ninguém marca a batida. Canso de dizer que essa noção de discurso deve ser tomada como liame social, fundado sobre a linguagem , e parece então não deixar de ter relação com o que na linguística se especifica como gramática, nada parecendo modificar-se com isto”. (Lacan. S. 20: 21). 

                                                             5

O “Minas de Prata”, volume 2, começa com o hegemonikón do poder d’ars dos jogos de significantes do sujeito barroco em carne e osso:

“Le quatrième terme est donné par le sujet dans sa réalité, comme telle forclose dans le système et n’entrent que sous le mode du mort dans le jeu des signifiants, mais devenant le sujet véritable à mesure que ce jeu des signifiants va le faire signifier”. (Lacan. 1966: 551).

O jogo de significantes que fazem o sujeito significar uma época d’ars da monarquia espanhola proprietária  do reino luso:

 “O imortal autor do D. Quixote, em que já ele trabalhava nessa época , tomou-se de simpatia por Vilarzito. O pequeno caricaturista a carvão também de sua parte começou a admirar o grande caricaturista a pena, que ia dar ao mundo a sua sátira-epopéia. O fel de ironia que vazava desse grande espírito, embebeu-se n’alma infantil e foi a pouco e pouco corroendo as suas doces ilusões. O menino descreu das glórias que sonhara; e acabou por imaginar que não havia maior do que alui-las a todas pelo sarcasmo e escárnio”. (Alencar. Minas de Prata. v. 2: 26-27).

A infância aparece como bovarismo do qumilitato glória como efeito do passado estético feudal, objeto de amor de D. Quixote:

“Lá num certo dia, acordou com esta ideia:

  • Vou-me a Salamanca!...Serei poeta satírico!

E de fato partiu-se e foi ter a Salamanca. cursou as aulas de humanidades, como jogara espada e manejara os pincéis: com ardor febril, vontade firme, e superior engenho. Fez versos; encheu as paredes de sonetos e glosas escritas a carvão, com as caricaturas de Sevilha. Seria poeta sem dúvida, poeta como Lope de Vega, Cervantes, Quevedo, se por infelicidade não sobreviesse novo acidente para dar outro curso aos ímpetos das impaciente ambição”. (Alencar. idem: 27).

O Príncipe barroco é um tema das elites monárquicas brasileiras da monarquia. Ele surge no romance político como uma blague alegre:

“Como as princesas encantadas das Mil e Uma Noites, dulcita esperava o seu príncipe andante. Ele veio a propósito, disfarçado em moço de almocreve. O incógnito por certo pudera ser mais gentil”. (Alencar. Idem: 9).

O Príncipe aparece como um herói épico, como encarnação da violência em armas  do significante morto contra o inimigo do povo espanhol:

“- Ah! você é castelhano?

  • Da velha castilha. Sou de Burgos, a valente, sim, senhora! Sou da pátria de <Cid, o Campeador>. 

‘Que cingiu a velha espada

De Madurra, o castelhano,

E foi-se a vingar a afronta

Do infame Lozano !

 O rapazito se tinha erguido, cantarolando a antiga trova popular de castilha, alçava o talhe esbelto e meneava a cabeça com tão nobre galhardia, que a menina pôs-se ingenuamente a admirá-lo.

Talvez murmurasse ela em sua alma, como Dona Chimena, aquela doce palavra do romance, <mio Cid!”. (Alencar. Idem: 14).

O Príncipe alencariano evita o tirano do poder d’ars do realismo fantástico da violência da língua quimilato do condottiero do século XIV? 

Burckhardt:

“Em Giangaleazzo mostra-se com toda a força o gosto dos tiranos pelo colossal. Despendeu 300.000 florisn de ouro para fazer construir diques gigantescos que lhe teriam permitido desviar de Míncio, de Mântua e a Brenta, de Pádua e privar estas cidades de todo meio de defesa; é mesmo possível que tenha pensado em secar os canais de Veneza. Fundou <o mais maravilhoso de todos os conventos>, o convento de cartuxos de Pavia, e a catedral de Milão ,que ultrapassa em grandeza e magnificência todas as igrejas da cristandade>. O palácio de Pavia, que seu pai Galeazzo começara e ele terminou, talvez fosse de longe a mais esplêndida residência principesca da Europa e de então. Foi para lá que transportou a sua biblioteca e a grande coleção de relíquias que reunira e pelas quais tinha uma veneração muito especial”. (Burckhardt:17).

Bem, o poder d’ars barroco como banho de sangue retira o essencial do Príncipe da pátria do barroco:

“Cá se crie aussi la patrie, après que les légistes de l‘âge baroque, nationalisant la doctrine sacrée d’une Loi céleste, ont pronostique la politique dans la gravitation autour d’une centre, occupé par cet <Un-seul> insensé. Sur cette théorie d’un point-capital, relisez Condorcet, fameux Newton de la scolastique, Réitérant le pouvoir éternel, les Lumières nous aveuglent: on n’y comprend plus rien”. (Legendre:9).

O Príncipe barroco é uma obra-de-arte distinta do Príncipe do Renascimento. O Principe barroco é do texto do palco do mundo do maravilhoso. (Benjamin. 1985 :127).

Lacan:

“O barroco é a regulação da alma pela escopia corporal”. (Lacan. S. 20:105).

A alma como parte da língua quimilato escópica. Esse não é o lhar do Príncipe Renascentista da fortuna e da virtú:

“Aqueles que somente pela fortuna se tornam príncipes pouco trabalho têm para isso, é claro, mas se mantém muito penosamente. Não têm nenhuma dificuldade em alcançar o posto, porque para aí voam; surge, porém, toda sorte de dificuldades depois da chegada. É o que acontece quando o Estado foi concedido ao príncipe, ou por dinheiro, ou por graça de quem o concede. Assim foi na Grécia, nas cidades da Insônia e do Helesponto, onde houve príncipes feitos Dario para manterem sua glória e segurança. É ainda como se faziam aqueles imperadores que, de simples cidadãos, subiam ao trono pela corrupção dos soldados. Tais príncipes estão na dependência exclusiva da vontade e boa fortuna de quem lhes concede o Estado, isto é, de duas coisas extremamente volúveis e instáveis. E não sabem ou não podem manter o principado: não sabem porque, se não são homens de grande engenho e virtude, não é razoável que, tendo vivido sempre em condições diferentes, saibam comandar; não podem porque não contam com forças que lhes sejam amigas e fiéis. Além disso, os Estados que surgem de súbito, como todas as outras coisas da natureza que se desenvolvem muito depressa, não podem ter raízes ou membros proporcionados,e, ao primeiro golpe da adversidade, aniquilam-se; a não ser que aqueles príncipes, como já se disse, saibam preparar-se para conservar aquilo que a sorte lhes pôs no regaço, e estabeleçam solidamente as bases fundadas anteriormente por outros. Destes dois meios de se tornar príncipe - pelo valor ou pela fortuna [...]”. (Maquiavel. 1973: 33).

A prática política tem no Príncipe seu artista, seu hegemonikon do poder d’ars para tomar, governar e conservar o Estado, por seu valor político ou pela fortuna na tela da mente estética das nações e povos. Hoje, há forças históricas que aproximam a democracia constitucional  do principado maquiavélico, que não depende de eleição na escolha do Príncipe. as escolhas tem como proprietário o poder d’ars realista fantástico como no caso de Donald Trump 2025, de Milei ou de Jair Bolsonaro. Lima Barreto diz que o poder d’ars do realismo fantástico é o governo dos doidos por um príncipe de baixa extração social de um hospício romanceado.        

                                                    6

O discurso do universitário é o discurso do senhor moderno, tirania moderna do saber burocrático de Estado: <tudo-saber>. (Lacan. S. 17: 33-35). O “Pesadelo tropical” é uma tese de mestrado como romanciamento do discurso universitário. Assim, ele pode fazer um jogo estético com o antítese encantamento/desencantamento do Texto em geral. Do desencantamento do Estado moderno. (Colliot-Thélène: 1992). Um discurso universitário que aparece como crítica do romance “Grande Sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Ele fala que a plebe roseana é uma plebe encantada virtualmente. de fato, ela desencantada é plebe barroca à avessas como pura violência. A plebe roseana ou <catrumanos>:

“são a plebe do sertão rosiano do assujeitamento universal do fundo do Brasil reprofundo, Brasil profundo profundo”.

“A imagem textual do fundo do sertão me leva a crer que a ciência política gótica rosiana fala do campo político/estético com três regiões: superfície profunda, superfície reprofunda e fundo do sertão, território dos catrumanos.”

“A imagem textual da plebe rosiana é belíssima e soturna”. (Bandeira da Silveira. 07/2024: 39). 

A plebe rosiana é um poder d’ars do realismo barroco fantástico. No discurso universitário romanceado, ela é objeto de jogos estéticos de desencantamento; ela se torna um plebe de um realismo grotesco, uma situação de delírio para o discurso realista do burocrata moderno weberiano 

“Havia algo de delirante naquilo tudo. Minha intuição se confirmou quando duas léguas depois ouvi o trote de cavalos no nosso encalço. E eram mesmos os homens de Saul e o próprio Saul, encolerizado, recém-desperto dos feitiços e ardis tramados pelas doces palavras do cigano”.

“Primeiro vieram as flechas, zumbindo rente ao ouvido. Depois o estalo seco dos bacamartes e garruchas. Mair e Moisés atiraram para trás, a esmo, esporaram os cavalos e desapareceram à frente, procurando guarida no cerrado. Era o sensato, o que qualquer homem faria num caso desses. E foi também o que eu fiz. Mas o cigano não é qualquer homem”.(Almeida:38).

A imagem textual da plebe do ‘Pesadelo tropical’ é o realismo grotesco dos catrumanos, o desencantamento da plebe de Rosa, que deixa de ser o fenilomenico da prática política do Brasil reprofundo:

“Os mercenários de Saul logo nos avistaram e empunharam suas armas e formaram fileiras dos dois lados da estrada. Velhas armas cobertas de óleo e poeira e espadas enferrujadas e lanças esculpidas em lasca de pedra e cobre. Suas roupas eram menos que trapos e misturavam trajes nobres e couro de animais e guardavam em seus olhos aquele arregalo que apenas os homens dos confins da terra ainda portavam. Um bando de náufragos do século passado, desterrados e famintos, perdidos dos hábitos da terra natal, mas também um tanto inaptos à vida selvagem. Um dos homens correu em direção à mata e voltou acompanhado de um velho de um braço só. Esse velho de um braço só era o próprio Saul. O aleijado. ele parou no meio da estrada e ergueu o braço solitário”.

“A estrada está fechada, disse”. (Almeida: 36).     

                                              7

Não sei se a escravidão é uma estrutura estética ausente (Eco;1971) na obra-de-arte de Machado de Assis. Um poder d’ars foracluido na prática política do  mundo machadiano como tela da mente estética. Ora. No “As Minas de prata”, o poder d’ars escravocrata aparece em imagens estéticas que não são perversas:

“A tempo que isso se passava em Roma, no mesmo dia e hora, a centenas de léguas, em outra capital europeia, na cidade de Amsterdam, mestre Brás batia a porta da casa onde habitava o cidadão Ussenlinch, e entregava uma carta coletiva de que era portador, dirigida pelos judeus da cidade do Salvador ao ilustre chefe do partido da guerra e um dos fundadores da <Companhia das índias Ocidentais>.”

“A missiva hebraica foi o fomento da famosa guerra que durou vinte e tantos anos. Os judeus ameaçados pelo Santo Ofício, chamavam os holandeses, como outrora seus antepassados em Babilônia haviam chamado em suas preces Ciro, o conquistador, para libertá-los da escravidão. Os holandeses vieram, como o herói de meda, não suscitados por Deus, mas açulados pela cobiça, poucos anos depois, em 1621”. (Alencar. Minas de Pratas. v. 2: 69).

A escravidão judaica do Santo Ofício precida de um Príncipe holandes para libertá-los no Brasil. E a escravidão negra é uma estrutura ausente nessa obra-de-arte? 

“Na casa de jantar esava àquela hora D. Ismênia de Aguilar, mãe de Inesita, cercada de muitas escravas, que bordavam e faziam rendas e costuras sobre um estrado aberto de rás [...]”. (Alencar. Idem: 98).

A convivência pacifica da senhora com as escravas tira a tenção de que as negras eram trabalhadoras domésticas qualificadas. Não há imagem de violência perversa entre a senhora e as escravas. Quando essa imagem perversa se tornou um fenilomenico do poder d’ars escravocrata? 

A relação da mulata livre com as escravas é ersatz de relação senhorial:

“Aqui Joaninha interrompeu-se de repente, e voltando-se para as escravas que segredava, fez o gesto de silêncio:

  • <Cio!...> Assim falando não se pode contar.

  • Calem-se daí! disse D. Ismênia muito interessada na história”. (Alencar. Idem: 103).

      A revolução da prática política literária como poder d’ars de       produção de imagens estéticas perversas senhoriais aparece mais realisticamente em Lima Barreto e depois, em Gilberto Freyre. 

                                                        8

NO "DIÁRIO ÍNTIMO", em 1905, Lima Barreto descreve a vida em uma casa de família da pequena burguesia carioca. Ele tinha interesse em romancear o serviço doméstico como relação social. Mas ele vai além. a doméstica vem do interior ou sertão. recebe surras diárias em três anos de martírio. Os patrões surram ela com açoite toda manhã. Ela é impedida de sair à rua. A vizinhança sabe de tudo, e nada faz: "E essa infeliz não grita: lamentos abafados, de dor, essa macabra confusão com a voz do algoz, enchem de pavor a vizinhança". (Lima Barreto. Diário Ìntimo: 75).  

O estado de quimilato da família e da vizinhança como medo, pavor, evoca o Brasil escravista, a situação da jovem negra. Bem! Já a mulata parece ser objeto de desejo perverso dos homens brancos e mulatos libertinos. Elas servem para namorar, para fazer sexo: "Minha irmã, esquecida que, como mulata que se quer salvar, deve ter um certo recato, uma certa timidez, se atira ou se quer atirar a toda espécie de namoros, mais ou menos mal intecionados, que lhe aparecem". A família  de Lima possuia um pai psicótico, que não aparece como a gramática da lei da civilização freudiana do homem para os filhos e agregados. Assim, o sádico da pequena burguesia branca aparece lado a lado com o pai psicótico da família mulata, mestiça. Esse Brasil não é o avesso do Brasil do século XVII romanceado por José de Alencar? Não é o avesso, pois o romance de Lima tem como objeto a sociedade de classes sociais de uma época burguesa. 

Lima:

"Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária,artística, por assim dizer em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que, se reconhecessem a minha superioridade, absolutamente não têm por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizessem obedecer cegamente". (Lima. Idem: 76). 

Lima se vê como poder d'ars que não obtem o amor do próximo negro ou mulato, identificação estética, do meio social e racial no qual ele vivia. Assim, tratava-se de se salvar desse meio social ele e a jovem criado dos patrões perversos:

"- Eu , entretanto, penso me ter salvo".

Sobra a jovem criada do sertão: "É chegado o momento da redenção que terá lugar com a intervenção da polícia da 15° Circunscrição".

O precário aparelho de Estado moderno aparece como salvação da mulher das classes mais baixas da sociedade carioca. Um aparelho de Estado fálico.

                                                          8

Lima Barreto e José de Alencar aparecem como sujeitos americanos. Eles são sujeitos como efeito de um discurso/gramática (Lacan) ou sujeitos produzidos por um poder (Foucault)? A época atual é aquela ainda do sujeito. (Bandeira da Silveira; 02/2024). 

Foucault:

“Dans le contexte e cette réflexion, il s’agit de voir que ces techniques se répartissent en quatre grands groupes, dont chacun représente une matrice de la raison pratique: 1) les techniques de production grâce auxquelles nous pouvons produire, transformer et manipuler des objets; 2) les techniques de systèmes de signes, qui permettent l’utilisation des signes, de symboles ou de la signification; 3) les techniques de pouvoir, qui déterminent la conduit des individus, les soumettent á certaines fins ou à la domination, objectivent le sujet; 4) les techniques de soi, qui permettent aux individus d’effectuer, seuls ou avec l’aide d’autres, un certain nombre d’opérations sur leur corps et leur âme, leurs pensées, leurs conduites, leur mode d’être; e de se transformer afin d’atteindre un certain état de bonheur, de pureté, de sagesse, de perfection ou d’immortalité”. (Foucault. 1994: 785).

O pós-modernismo de Buadrillard aposentou esses poderes foucaultianos:

“A partir disso só se pode conceber uma nova peripécia, catastrófica, do poder, onde ele não consegue mais produzir o real, se produzir como real, abrir novos espaços ao princípio de realidade, e onde ele cai no hiper-real e se volatiliza - <[e o fim do poder>, o fim da estratégia do real. (Baudrillard. 1984: 50-51).

Foucault falou de um outro poder não desintegrado por Baudrillard:

“Je pense au contraire que le sujet se constitue à travers des pratiques d’assujettissement,ou, d’façons plus autonome, à travers des pratiques de libération, de liberté, comme, dans l’antiquité, à partir, bien entendu, d’un certain nombre de règles, styles, conventions, qu’on retrouve dans le milieu culturale”. (Foucault. Idem: 733). 

Os gregos teriam descoberto e inventado o poder d’ars como Estado lacaniano. (Bandeira da Silveira; agosto/2022). O poder d’ars produz os sujeitos Lima Barreto e José de Alencar na prática política literária da tela da mente estética mundial.    

                                                9

A CASA é o tempo/espaço de surgimento do sujeito como modo de ser psíquico produzido pelo poder d’ars em suas relações com a língua quimilato: da raça, do tribalismo (Maffesoli; 1997), da classe social, da luta de classe, da stásis e pólemos, de Eros e tanatos, do bem e do Mal, dos aparelhos de Estado, concepção política de mundo, a subjetividade(Cascardi; 1995), a prática política, amor e ódio, covardia e coragem…

Lima:

“Se essas notas forem algum dia lidas, o que eu não espero, há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa, do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançoso a razão de ser disso, que para bem ser compreendido exigiria uma autobiografia, que nunca farei. Há cousas que, sentidas em nós, não podemos dizer. A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o cepticismo que me corrói - cepticismo que, atingindo as cousas e pessoas estranhas a mim, alcançam também a minha própria entidade -, nasceu da minha adolescência feita nesse sentimento de minha vergonha doméstica, que também deu nascimento a minha única grande falta”. (Lima Barreto. Diário íntimo. v. 14: 77).

José de Alencar fala da casa do modo de ser psíquico aristocrático do poder d’ars barroco, do Estado barroco (Faoro: 1, 1975:73, 75) monárquico colonial:

“Esse caminho ia dar ao largo de São Gonçalo a cerca de légua e meia da cidade. Era um antigo engenho, agora desmontado, e servindo unicamente de recreio e morada ao dono e seus acostados ou serviçais. A casa de purgar, a tinham transformado em pocilga de cães, e era habitada pela grande matilha de caça; o resto da fábrica foi pequeno para estrebaria e não cabiam todos os cavalos de sela, sem contar os de tráfego”.

“O edifício principal destinado à habitação do dono dava mostras de grandes posses, pelo ataviado, espaçoso e bem acabado dele. Ao lado como duas asas, corriam os comuns, ordenados com m uita vista e asseio; nos da direita tinham acomodado a cozinha e ucharia; nos da esquerda os cubículos dos pajens e serviçais, a casa de banhos e outros necessários”. (Alencar. Minas de Prata. v. 2: 123).

A imagem visual da casa colonial é o paraíso perdido barroco (D’Ors: 31):

“- A princípio não digo que não, mas ao cabo de um ano, estava de todo acostumado; e já agora, acreditai que se de Portugal me mandassem dizer que podia tornar, duvido que me aproveitasse do favor.

  • Tanto vos agrada a terra”

  • Vê, Vossa Paternidade, aquele serrote coberto de mato? Pois só ali tenho eu montaria, em abundância tal, qual a não têm as coitadas todas de Portugal. E que montaria? Antas, caititus, capivaras, pacas, e tal qualidade de alimária de menos vulto, que é de perder-lhe a conta.

  • Assim está o senhor comendador em seu paraíso terrestre? disse o P. Molina com um sorriso.

  • Bem acertado nome, não vos parece? respondeu também rindo o comendador”. (Alencar. Minas de prata. v. 2: 126). 

                                                     10

Gilberto Freyre fabricou imagens visuais de um poder d’ars realista modernista cru da dialética casa/rua:

“ os sobrados, para as ruas sujas, ladeiras imundas, por onde quase  só passavam a pé negros de ganho, muleques a empinarem seus papagaios, mulheres públicas. Menino de sobrado que brincasse na rua corria o risco de degradar-se em moleque; iaiá que saísse sozinha de casa, rua afora, ficava suspeita de mulher pública. O lugar do menino brincar era o sítio ou o quintal; a rua, do moleque. O lugar da iaiá, a camarinha, quando muito a janela, a varanda, o palanque”. (Freyre. 1985. v. 1. 152). 

A estrutura de dominação estética casa/rua é uma cena existencial opressiva e fóbica, ao mesmo tempo:

“ A casa-grande no Brasil pode-se dizer que se tornou um tipo de construção doméstica especializado neste sentido quase freudiano: guardar mulheres e guardar valores> As mulheres dentro de grades, por trás de urupemas, de ralos, de postigos; quando muito no pátio ou na área ou no jardim, definhando entre as sempre-vivas e os jasmins; as joias e moedas, debaixo do chão ou dentro das paredes grossas”. (Freyre. Idem: 154). 

Qual o sujeito da casa-grande como modo de ser psíquico na tela da mente estética colonial? 

Freyre:

“Ao moleque companheiro de brinquedo do menino branco e seu leva-pancadas, já nos referimos em capítulo anterior. Suas funções foram as de prestadio mané-gostoso, manejado à vontade por nhonhô; apertado, maltratado e judiado como se fosse todo de pó de serra por dentro; de pó de serra e de pano como os judas de sábado de aleluia, e não de carne como os meninos brancos”. (Freyre. 1975:336).

O modo de ser psíquico freudiano perverso senhorial branco surge na relação cas-grande e senzala:

“É de supor a repercussão psíquica sobre os adultos de semelhantes tipo de relações infantis - favorável ao desenvolvimento de tendências sadistas e masoquistas. Sobre a criança do sexo feminino, principalmente, se aguçava o sadismo, pela maior fixidez e monotonia nas relações da senhora com a escrava, sendo de admirar, escrevia o mesmo Koster em princípios do século XIX, ‘encontrarem-se tantas senhoras excelentes, quando tão pouco seria de surpreender que o caráter de muitas se ressentisse de desgraçada direção que lhes dão na infância’. Sem contatos com o mundo que modificasse nelas, como nos rapazes, o senso pervertido de relações humanas; sem outra perspectiva que a da senzala vista da varanda da casa-grande, conservavam muitas vezes as senhoras o mesmo domínio malvado sobre as mucamas que na infância sobre as novinhas suas companheiras de brinquedo”. (Freyre. Idem: 337).

Uma concepção política de mundo perversa do dominante permanece estruturando as relações estéticas do dominante com o dominado hoje?

Gilberto: 

“Transformava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários - tanta vezes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no filho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de aminstração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado e casa-grande de engenho. Gosto que tanto se encontra, refinado num senso grave de autoridade e de dever, num Dom Vital, como abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto”. (Freyre. 1975: 51).

Concepção política de mundo de um modo de ser psíquico produzido por um poder d’ars barroco colonialista-brutalista (Souriau: 281) que emerge do real da prática política presidencialista republicana com um Floriano Peixoto. 

                                                  11

O Floriano Peixoto de Gilberto Freyre é o Príncipe verde-oliva de Lima Barreto. Policarpo Quaresma faz a descrição dele como um pastiche de poder d’ars republicano-cesarista:

“O seu entusiasmo por aquele ídolo era forte, sincero e desinteressado. Tinha-o na conta de enérgico, de fino e supervidente, tenaz e conhecedor das necessidades do país, manhoso talvez um pouco, uma espécie de Luís XI forrado de Bismarck. Entretanto, não era assim. Com uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça comum, essa preguiça de nós todos; era uma preguiça mórbida, como que uma pobreza de irrigação nervosa, provinha de uma insuficiente quantidade de fluido no seu organismo. Pelos lugares que passou, tornou-se notável pela indolência e desamor às obrigações dos seus cargos”.

“Quando diretor do arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para assinar o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi ministro da Guerra, passava meses e meses sem lá ir, deixando tudo por assinar, pelo que ‘legou’ ao seu substituto um trabalho avultadíssimo”. (Lima. Policarpo Quaresma. v.2: 209).

O poder d’ars cesarista brasileiro tem uma fala governamental:

“Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus misteriosos monossílabos, levados à altura de ditos sibilinos, as famosas ‘encruzilhadas dos talvezes’ que tanto reagiram sobre a inteligência e imaginação nacionais, mendigas de heróis e grandes homens”. 

“Essa doentia preguiça, fazia-o andar de chilenos e deu-lhe aquele aspecto de calma superior, calma de grande homem de Estado ou de guerreiro extraordinário”.

[...]

“Demais, ninguém pode admitir um homem forte, um César, um Napoleão, que permita aos subalternos aquelas intimidades deprimentes e tenha com eles as condescendências que ele tinha, consentindo que o seu nome servisse de lábaro para uma vasta série de crimes de toda espécie”. (Lima. Idem: 210).

O pode d’ars de Floriano fabricou uma ditadura de direita republicana-cesarista na tela da mente estética americana:

“Lima cria nesse romance uma galeria de tipos impagáveis. De um lado há o Policarpo, ‘um visionário’ e defensor das ‘coisas do Brasil’. De outro, Floriano com seu ‘bigode caído, ‘traços flácidos e grosseiros’, olhar mestiço, redondo, pobre de expressões”. (Schwarcz. 2017: 305). 

A ideologia política nacionalista republicana aparece como uma paródia do nacionalismo revolucionário europeu. (Hobsbawm; 1990). O Esta-nação territorial republicano é apenas uma cópia ruim do Estado nacional europeu ou dos EUA. Hoje, há a emergência do real da prática política mundial de um nacionalismo de uma língua quimilato. O Brasil ressente-se de não ter um passado nacionalista verdadeiro na sua história republicana como foi o passado estético nacionalista da monarquia da Princesa Isabel e do rei D. Pedro II. A história republicana caracteriza-se pela perda desse objeto de amor dos povos modernos - que é o campo das ideologias quimilatos nacionalista ocidental.     

                                                        12

A ditadura de Floriano não é a fabricação de um aparelho de Estado nacional territorial constitucional. Ela é a fabricação de um aparelho de Estado como direito natural do mais forte:

Eis o motivo pelo qual Platão se opõe aos sofistas: sua convicção de que o ponto de vista destes abala o fundamento de toda obediência ao direito, atentando contra a raiz mais profunda da eficácia das leis estatais. É esse defeito da doutrina sofística, contra a qual ele adverte: ‘Tudo isso, caros amigos, é o que dizem, aos jovens, homens altamente sábios, escritores dotados de maior ou menor habilidade que declaram ser o justo aquilo que é imposto pela força’. É a doutrina do direito do mais forte, que Platão rejeita decididamente na <República>”. (Kelsen. 1995: 514). O aparelho de Estado do direito do mais forte é um Estado perverso, que tende a transformar a população em uma subjetividade  masoquista. Esse Estado sádico destruiu os sertanejos de Canudos e os camponeses do Contestado. Então, a reflexão sobre ele se faz necessária na medida em que há um aparelho de Estado sádico agindo contra a população marginal em vários estados do país. 

O que é um Estado sádico? Um pode d’ars sádico que cria e recria esse aparelho de Estado existe no EUA de Trump. O aparelho de Estado americano era sádico com as classes negras pobres. Com o Trump 2025, há um Estado sádico que tem como objeto de ódio toda a população, trabalhadores, consumidores, empresas multinacionais americanas. O poder d’ars do Estado sádico encontra-se em o romance “O Idiota”:

“O assasinato por sentença judicial é incomensuravelmente pior do que o o assassinato cometido por bandidos. Quem quer que seja assassinado por bandidos, e, cuja garganta tenha sido cortada, em um bosque, à noite, ou qualquer coisa assim, naturalmente que espera escapar, até o último momento. Tem havido casos de uma pessoa ainda esperar escapar, correndo, ou suplicando misericórdia, e já depois da garganta ter sido cortada! Mas no outro caso, a que nos estamos referindo, toda esta última esperança, que faz morrer dez vezes, como é fácil compreender, está suprimida, pois se sabe que é irrevogável. Há uma sentença;e toda a medonha tortura jaz no fato de que não há, certamente, meios de escapar” (Dostoiévski: 33). 

O aparelho de Estado sádico é o poder d’ars brutalista para a sociedade. A sociedade não sonha mesmo quando a vida do Príncipe é sonho barroco. (Calderón; 2011):

“Em outros termos: Sade tem necessidade de acreditar que não sonha, mesmo quando está sonhando. O que caracteriza o uso sádico do fantasma é uma força violenta de projeção, de tipo paranóico, pela qual o fantasma se torna instrumento de uma mudança essencial e súbita introduzida no mundo objetivo. [...] O fantasma adquire então um poder máximo de agressão de intervenção e de sistematização no real: a ideia é projetada com uma rara violência”. (Deleuze. 1983:80). 

O fantasma é o pode d’ars paranoico de um Donald Trump, que se diz perseguido por força de dentro do país e pela nações em geral:

“igualmente que a relação do sádico com o fetinhe é uma relação de destruição que deve ser interpretada pela forma de projeção nesse uso. Não se dirá que a destruição do fetiche implica numa crença ela própria fetichista (como quando se pretende que a profanação implica numa crença no sagrado): são generalidades ocas. A destruição do fetiche mede a velocidade de projeção, a maneira pela qual o sonho se suprime com sonho, e pela qual a Ideia irrompe no jundo real desperto. A constituição do fetiche no masoquismo, ao contrário, mede a força interior do fantasma, sua lentidão de espera, sua força de suspensão ou de fixação, e a maneira pela qual o ideal e o real juntos são absorvidos por ele”. (Deleuze. idem: 80-81).     

A relação do poder dars brutalista-cínico fantasmático com a soberania popular é uma insurreição contra a ideia de pacto político Estado democrático constitucional e massas masoquistas:

“Existe em Sade um profundo pensamento político, o da instituição revolucionária e republicana, na sua dupla oposição à lei e ao contrato. Mas esse pensamento da instituição, de cabo a rabo, é irônico, porque sexual e sexualizado, montado como provocação contra qualquer tentativa contratual e legalista de pensar a política”. (Deleuze. idem: 87-88). 

Ora as massas masoquistas do poder d’ars da soberania popular:

“Mesmo que a frieza masoquista seja de uma outra espécie, nela reencontramos o processo de dessexualização como condição para uma ressexualização <uin loco>, pela qual todas as paixões do homem, as que concernem o dinheiro, a propriedade, o Estado, poderão se voltar em benefício do masoquista. E é aí que está o essencial: que a ressexualização se faça <in loco>, numa espécie  de salto”> (Deleuze. idem: 127).

O poder d’ars sádico/masoquista é uma produção de massas segundo a língua quimilato de afecções como dinheiro, propriedade e aparelho de Estado.  

                                                         13

Quando adolescentes na Espanha, Vilarzito casou om Dulcita e sem consumar o casamento sumiu no mundo em aventuras. Dulcita permaneceu virgem. Vilarzito passou por uma revolução da subjetividade e acabou como o padre jesuíta Gusmão Molina. Este padre é o Príncipe negro alencariano. O Príncipe negro se vestia com sua <batina negra> que aparece como o fetiche da ciências das telas absoluto de Dulce:. Ela ama e odeia, ao mesmo tempo, a Companhia de Jesus; ela quer de volta seu amor legitimamente consagrado pela Igreja. Já na  Bahía, pois Dulce viera atrás de Molina, [por ser seu objeto de amor é eterno, não ser fungível, como nos dias de hoje, lacanianos], Dulce:

“Outras vezes porém Dulce sentia passar em si uma coisa estranha, revulsão terrível de seu ser. O coração como que inchava, inchava a ponto de estalar; o amor que espadanar de todos os porosa enchia por tal forma que a raptava a si mesma e à sua razão. Ela via diante de si um vulto humano, trajando hábito negro, e precipitava-se para ele; o enlaçava em seus braços; esmagava-o de beijos e o afogava de delícias. Nesses momentos, como que um mar imenso de amor a inundava, tal era a potência com que sua alma se esparzia. Tudo que lembrava a ùltima aparição do esposo, a igreja da ordem a que ele pertencia, a roupeta que trajava, o nome que trazia, tudo exercia sobre ela uma atração irresistível; a tudo ela amava”. (Alencar. Minas de prata. v. 2: 154). 

O fetiche paraconsistente (Newton da Costa; 2008) é o Príncipe negro, que ela quer e não quer destruir. Bem! O Príncipe negro é o maître da intriga política que põe medo no Príncipe luso colonial da Bahía:

“O padre Gusmão de Molina aprovou a ideia e foi em comissão com o provincial e o reitor pedir a D. diogo de Menezes a honra de sua presença; admirou-se o governador do estranho proceder, que denotava mudança de tática do adversário; e suspeitou que o motivo oculto desse passo era apresentá-lo aos olhos de El-rei como intolerante, caso não comparecesse ele conforme decerto esperavam. O que porém resolveu D. Diogo a ir foi o lembrar-se da ausência do provincial na Sé em dia de ano bom; tinha por indigno do seu caráter, como de seu cargo, mostrar que o ofendera semelhante ato, e retorquir por igual modo”. (Alencar: idem; 152).

A prática política monárquica exise em uma tela da mente sacra do Estado integral - como aparelho de Estado secular e aparelho de hegemonia sacro:

“O púlpito era naquela época a única tribuna do povo; e o sermão tinha no lábio de um orador eminente grande importância política: era a voz do povo fundindo-se na voz de Deus”. (Alencar. Idem: 163).

O Príncipe negro foi o hegeminokón estoico (Elorduy: 26) da revolução barroca tupi-guarani dos Sete povos das missões. (Lugon: 1968). Como se sabe, no século XVIII, os jesuítas foram expulsos das Américas luso e espanhola. A contradição solar entre a monarquia europeia e a Companhia de Jesus era o antagonismo entre o Príncipe absolutista secular e a concepção política de mundo da liberdade negra luminosa jesuítica:

“A liberdade não perece nunca, porque a liberdade é a essência da alma imortal; a todo o tempo e em qualquer região,, oprima embora o despotismo a gri humana, depravando a criatura racional e clausurado as nobres aspirações da inteligência; procurai a liberdade nessa treva espessa, que a chareis em alguma parte; se não fôr na superfície da terra, será foragida nas catacumbas de Roma, ou voando ao céu, ao abrigar-se na eternidade, como o espírito dos primeiros cristãos atirados barbaramente em pastos às feras. e a alma dos mártires de 1817 imolados aos últimos paroxismos do despotismo português. (Alencar. Minas de prata. v. 2: 163). 

O pai de José de Alencar foi um dos revolucionários iluminista-barroco da revolução pernambucana de 1817. A analogia do confronto entre o pai/Molina negro retórico barroco de 1817 e o príncipe despótico luso-bahiano é irrepreensível:

“O P. Molina, conformando sua prédica com o assunto do dia, tomara um tema vasto, sobre o qual a sua inteligência ousada e brilante podia discorrer livremente. Foi com uma entonação lenta e grave, que de seus lábios caíram a uma e uma, sobre a multidão submissa, as palavras bíblicas, acompanhadas de um olhar tão estático e fixo no sólio do governador, como se estivessem ali encarnadas na pessoa de D. Diogo todas as realezas do mundo:

  • <Audi ergo, reges, et intelligite, discite, judices finium terrae. Ouvide pois, reis, e compreendereis; apreender, juízes dos confins da terra!, É o livro da sabedoria, cap. 6°, v. 2°”. (Alencar. idem: 164).     

                                                        15

Escrevi sobre o Deus da língua-fenilato do Ocidente judaico-cristão do texto “O apocalipse segundo São João”. Há a língua-fenilato do Padre Molina do Deus barroco do Ocidente judaico-cristão, Deus da retórica celestial da cólera, da ira, da vingança, do extermínio, da justiça celestial no auditório universal sacro de elite católico, no sermão, enfim, de P. Molina:

“O Senhor vos discrimina; seu olhar vos conta as cabeças erguidas, e sua ira terrível, concitada pela justiça, não tarda vibrar o raio tremendo que há de fulminar-vos em vossa soberba!...Curvai essa fronte ímpia, que desafia a cólera celeste”. (Alencar. Minas de prata. v. 2: 165).

“Graça para ela, mas punição para os que persistem na culpa, punição tremenda. Assim como esta, caiam fulminados pelo raio todos os réprobos! A sua hora está marcada; eu daqui asvejo, essas cabeças onde o anjo vingador, já selou em caracteres invisíveis a sentença do extermínio [...]”. (Alencar. Idem: 166). 

“Muitas vezes, porém, o auditório de elite é considerado o modelo ao qual devem amoldar-se os homens para serem dignos desse nome: o auditório de elite cria, então, a norma para o mundo> Nesse caso, a elite é a vanguarda que todos seguirão e à qual se amoldar. Apenas a sua opinião importa, por ser, afinal de contas, a que será determinante”. (Perelman: 44). 

O sermão do P. Molina é o poder d’ars de uma aparelho de hegemonia de um Estado integral barroco vivo em um auditório universal de uma classe dirigente:

“O frade, que recebeu esta apóstrofe à queima roupa, calou-se; e o pregador continuou o estorvo. Do assunto religioso passou por uma transição hábil para o assunto político; lembrou que esses reis da terra em adoração ao rei do céu, significavam quanto o trono dependia do altar, e recordavam os deveres sagrados que o Senhor havia posto aos seus ungidos. Discorrendo então sobre a missão da realeza na terra, passou a tratar especialmente das coisas do Brasil e sua governança> Censurou o menosprezo em que estava a religião nessas partes por culpa dos que dirigiam o povo; aludiu com elogio ao governador atual, D. Diogo de Menezes, a quem louvou a nobreza de caráter, o seu saber e prudência de homem de guerra e de estado, lamentando apenas que tão ilustre capitão arrefecesse no zelo do espiritual. Rematou a oração batendo rijo nos senhores de engenho, vampiros que sugaram o melhor do sangue de tão grande reino, e viviam chafurdados no ouro com grande escândalo da religião, roubando ao grêmio da igreja um povo para o cativar”. (Alencar. Idem: 168-169).

o Auditório de elite universal pode ser um prisma da tela da mente estética da consciência nacional da língua fenilato barroca do Estado integral:

“é facil imaginar como a consciência provavelmente abriu caminho na evolução humana, para um novo gênero de criações, impossível sem ela: consciência moral, religião, organização social e política, arte, ciências e tecnologia. De um modo ainda mais imperioso, talvez, a consciência seja uma função biológica crítica que nos permite saber que estamos sentindo tristeza ou alegria, sofrimento ou prazer, vergonha ou orgulho, pesar por um amor que se foi ou por uma vida que se perdeu [...]”. (Damásio: 18-19).

A consciência é um fenilomenico da tela da mente estética:

“Falando de um modo mais direto, esse primeiro problema da consciência é o problema de como obtemos um ‘filme no cérebro’, devendo-se entender, nessa metáfora tosca, que o filme tem tantas trilhas sensoriais quantos são s portais sensoriais de nosso sistema nervoso - visão, audição, paladar, olfato, tato, sensações viscerais etc [...]”. (Damásio: 25).

A consciência d’ars é um fenilomenico da gramática da língua-quimilato de um povo:

“A questão evoluiu. Saba-se o que é a sensação e, por conseguinte, não se ignora o que são os dados da vista, do ouvido, e sabe-se distinguir-se o som e o sentido; o exemplo alegado, que prova a possibilidade de isolar a sensação, é <a língua dos bárbaros> (163B). Porém, talvez por associação de ideias, se o raciocínio se inveter, se distinguirmos a língua e a sensação, a gramática levar-nos-á ao sentido sem ensinar o que é a sensação”> )Philonenko. 1997: 150).

A consciência d’ars existe na lógica gramatical, retórica, ideológica dos fenilomenicos em uma tela da mente estética: do ethos e do pathos, do azer o bem e/ou mal. do Eros e tanatos, da stasis e pólemos, dos estados de neurose, psicose e perversão…       

                                                              16

A consciência gramatical das ciências das telas tem na cidade do Rio a clara visão da junção da pólemos e stásis na superfície da prática política de uma tela da mente urbana heteróclita. A lógica do valor de troca da economia política urbana continua funcionando com seu realismo causal:

“Aristote formalise des considérations, des arguments, qui ne heurtent pas le sens ordinaire que nous avons de la causalité; et pour métaphysique qu’elle soit, sa description est bien celle de l’expérience commune que nous avons du monde”. (\Malherbe:14). 

A experiência vivida no Rio põe o sujeito em confronto com realidades urbanas para além da causalidade lógica aristotélica. Uma parte da população já vai se evadindo da cidade. O realismo carioca é aquele que de uma vivencia no heteróclito, onde o bem e o mal, o Eros e o tanatos, o ethos e o pathos deixam de ser apenas parte de um discurso retórico. Tal experiência não nos envia para o realismo do barroco do século XVII do romance “Minas de prata”. 

Orozco:

“Con este fondo de especial sentido de la naturaleza y de lo humano comprenderemos también mejor esas deformaciones monstruosas de la poesía satírico-burlesca de la época y de figuras de la picaresca, de ese realismo con acierto llamado descendente, que extrema sus rasgos en Quevedo””. (Orozco: 44). 

O monstruoso, a prática política monstruosa é o fenilomenico do realismo barroco heteróclito:

“El Barroco pierde la confianza en lo natural incluso en la experiencia de los sentidos. Recordemos una vez más la expresión, tan bien repetida más de una vez en nuestro Barroco, de que ese cielo azul que todos vemos <ni es cielo ni es azul>. Pero es que además en Espãna, aun en el Renacimiento, el momento de exaltación de lo natural - según señaló Vossler - <tibiamente o nada se confió en la naturaleza. De ella, al español, como dice él mismo en otra parte, <lo que más lo interesa es lo maravilloso que hay en el hombre menos lo que hay en él de lo natural y humano que el elemento específico, tal como lo aventureiro, lo excepcional o sorprendente, lo anormal, lo supra e infrahumano…de este humanismo español - concluía -, que consideraba al hombre como un prodigio incomprensible, y lo admiraba y reverenciaba como tal, salió la gran poesía y el gran arte dekl Barroco”. (Orozco: 45). 

       

O poder d’ars barroco se apossou da vida do Rio e transformou o aparelho de Estado urbano em um poder retórico de um texto teatral da segurança da polis. a população do Rio vive como os aventureiros brancos europeus do século XVII alencariano. A teologia da aventura é sua fenilideologia que lhes fornece o oxigênio diário:

“Essas teologias são as teologias ‘da providência’ e da ‘aventura’. Ambas consistem justamente em que a ‘técnica’ (planificação, produção e incerteza no interior do calculável) perfaz a verdade do ente e assim caracteriza a metafísica em seu fim.”

“A teologia torna-se <diabologia> que não se restringe certamente ao inofensivo ‘diabo’ enquanto um anjo decaído, mas introduz e solta pela primeira vez a inessência incondicionada de Deus na verdade do ente. O desdobramento expresso das diabologias é ainda iminente”. (Nietzsche. 2000: 159-160). 

A consciência gramatical do poder d’ars da diabologia heideggeriana é da ordem da superfície da prática política de uma tela da mente estética urbana da restauração do realismo barroco, parcialmente:

“Alors que l’intelligence décompose le sens, le mythe le compose. C’est pourquoi il ne saurait être compris d’après une supposée valeur explicative; le mythe n’est pas une science des primitifs mais un moyen de compréhension immédiate du réel. l’opposé du sym-bolique, c’est, proprement, le dia-bolique”. (Godin: 732). 

O Rio existe como uma cidade do poder d’ars do diabólico heideggeriano da teologia da aventura - e não como um campo da prática política do simbólico, como realismo da causalidade da vida em comum da lógica do valor de troca.  

                                                           17

Uma comparação verossímil entre o Brasil do século XVII alencariano e o Brasil de 2025 nos levaria até onde? 

O Estado do século XVII alencariano realista-barroco-romântico não é diferente em essência do Estado de hoje:

“No entanto, para se entender como as palavras são ditas e como o dito é pensado, isso somente pode tornar-se claro e rigoroso se soubermos o que é pensado e o que necessita vir à fala”. (Heidegger. 2008: 15).

O Estado alencariano é o da língua-fenilato, ele é um fenilomenico da língua quimilato brasileira romântica. Ele não escapa a deerminação das afecções quimilatas:

“Os sucessos que tiveram lugar junto à ermida de Nossa Senhora da Graça carecem de explicação”.

“Os matreiros do Fr. Carlos da luz saindo no dia de Reis da casa de D. Francisco de Aguilar com o cartel de desafio anônimo, fôra direito a palacio e solicitara do governador uma audiência para depois da festa, pois tinha a comunicar objeto de importância para o Estado”.

“D. Diogo de Meneses o recebeu ao sair da igreja. Fr. Carlos apresentou-lhe o cartel de desfio, e abundou depois em largas considerações para demonstrar a inconveniência e perigo que em deixar-se à merce de qualquer espadachim a reputação, sossego e felicidade de uma família principal. Acrescentou que dali podia originar-se um conflito funesto para o Estado, porque os ódios uma vez excitados não teriam mais paradeiros, e a vingança dos parentes roubaria à pátria muitos filhos prestimosos”. (Alencar. Minas de prata. v. 2: 202).  

A propósito, Com Donald Trump 2025, A América não vê emergir um Estado romântico do realismo fantastico mercantilista no lugar do Estado realista capitalista modernista? Leitor de Alencar, Sérgio Buarque de Holanda crítica o Estado romântico:

“O Estado não é UMA ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de cerrtos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século décimo nono”. (Holanda. 1988: 101).

Alencar não diz que o Estado realista romântico monárquico-colonial é um prolongamento da família aristocrática. A autonomia relativa do Estado em relação à classe dirigente é irrevogável. A classe dirigente [secular, jesuítica] não é a proprietária do Estado. Quem ou o que é proprietário do Estado? A gramática do poder d’ars é o proprietário legítimo do Estado. O Estado realista romântico barroco tem como proprietário uma plurivocidade de poder d’ars do Brasil colonial e do Brasil monárquico. O poder d’ars é o poder estético como força de direito nas relações do modo de produção escravista. Ele determina a experiência vivida dos sujeitos e subjetividade determinados pelo modo de produção escravista colonial que atravessa a monarquia. O passado estético realista barroco faz pendant como o realismo barroco romântico do século monárquico.     

                                                            18

No século XVII, o bloco intelectual/político  era constituído dos jesuítas e pessoal da burocracia governamental. Em 1964, surge no Brasil um bloco intelectual liberal que organiza a desintegração da democracia-1946:

“Os intelectuais se desenvolvem lentamente, muito mais lentamente do que qualquer outro grupo social, por sua natureza e função histórica. Eles representam toda a tradição cultural de um povo cuja história inteira desejam resumir e sintetizar: e isto deve ser dito especialmente do velho tipo de intelectual, do intelectual nascido no terreno camponês. Considerar como possível que ele possa, como massa, romper com todo o passado para colocar-se completamente no terreno de uma nova ideologia é absurdo. É absurdo para os intelectais como massa, e talvez absurdo também com relação a muitíssimos intelectuais tomados individualmente, não obstante todos os honestos esforços que façam e desejam fazer”. (Gramsci. 1977: 44).

no século XIX, José de Alencar aparece como o intelectual ligado a massa analítica do bloco estético-político romântico. ele é o intelectual orgânico da classe aristocrática dirigente secular em conflito com o blco intelectual da igreja católica:

“Os assim chamados neo-prostetante ou calvinistas não têm compreendido que, na Itália,, como não pode existir uma Reforma religiosa de massa, em virtude das condições modernas da civilização, a única Reforma possível verificou-se com a filosofia de Benedetto Croce: foram alterados a orientação e o método de pensamento, foi construida uma nova concepção do mundo que superou o catolicismo e qualquer outra religião. Neste  sentido, Benedetto Croce cumpriu uma elevadíssima função <nacional>: separou os intelectuais radicais do <Mezzogiorno> das massas camponesas, permitindo-lhes participar da cultura nacional e européia, e através desta cultura fez com que fossem absorvidos pela burguesia nacional e, em consequência, pelo bloco agrário”. (Gramsci. 1977: 42).

José de Alencar foi o nosso Benedetto Croce de um bloco  estético/político que organizou a pólemos contra o separatismo das oligarquias liberais revolucionarias. Esse bloco estético romântico barroco foi o responsavel pala unidade gramatical e cultural-territorial do Brasil-nação. 

O bloco político-intelectual liberal da década de 1960 desintegrou a democracia populista, mas não foi o bloco que restaurou a tela da mente estética no Estado liberal-militar de 1964. Um bloco estético dirigido por Luís Vianna e José Sarney e outros de escol formou o grupo intelectual como modo de ser psíquico realista barroco modernista do Estado-1964. Talvez, esse bloco estético tenha sido desintegrado, conjunturalmente, com o golpe puramente militar de 1968/1969. Este golpe fabricou o Estado fascista/integralista da alta cúpula das Forças Armadas.      

   

O bloco estético do Estado-1964 voltaria a ser proprietário da realidade política com José Sarney na presidencia da república no pós-ditadura militar. 

                                                 19

Machado de Assis viu a obra de José de Alencar como um poder d’ars do Estado nacional-territorial? 

Sodré:

“”’Quão melhor alumiado não andou Alencar escolhendo os seus sem preferências de regiões, para compor segundo o belíssimo dizer de Machado de Assis, ‘com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional de sua obra’. Discutida, analisada, negada no todo ou em parte, a obra de José de Alencar não só está incorporada ao patrimînio nacional brasileiro, com um lugar de indiscutível destaque, mas persiste na curiosidade popular, onde encontra ressonância, o que não deixa de ser um expressivo traço de sua força”. (Sodré. 1969: 282).

A obra de Alencar parece ter caído no esquecimento heideggeriano a partir da globalização liberal americana com sua fúria em desmontar o Estado nacional territorial e a cultura política nacional. Claro, que o multiculturalismo literário progrediu com como efeito do pós-modernismo da globalização liberal. O pós-modernismo desintegrou o valor estético como fenilomenico [fenômeno com força de direito estético] e promoveu a estetização generalizada como fim do poder d’ars em geral. (Jameson; 1996). Com a passagem da globalização à mundialização do mercantilismo capitalista, o Estado nacional territorial e sua cultura política nacional retornam à cena da tela da mente estética mundial. Porém, o esquecimento tem sua própria gramática que determina a existência ou não do poder d’ars como proprietário da pratica política estética, e/ou literária:

“Por isso, poderia também ser que a nuvem invisível do esquecimento, o esquecimento do ser, envolva toda a esfera da terra e sua humanidade, uma nuvem na qual não é esquecido este ou aquele ente, mas o próprio ser, uma nuvem que nenhum avião poderia atravessar, mesmo se fosse capaz e formidável altitude. Por isso, também poderia ser que, num tempo apropriado, uma experiência pudesse irromper precisamente deste esquecimento do ser, pudesse irromper como uma necessidade a assim se tornar necessária. Poderia ser que, com essa visão do esquecimento do ser, se pudesse despertar uma recordação que pensasse no próprio ser e somente neste, considerando-o ele próprio na sua verdade: a verdade do ser e, não somente, como toda a metafísica, que considera o ente como respeito ao seu ser. Para isso seria necessário, antes de tudo, uma experiência da essência do esquecimento, disso que se esconde na essência da [...].’

“Os gregos experimentaram o esquecimento como um evento que passava pelo encobrimento”. (Heidegger. 2008. 50).

O esquecimento do ser do poder d’ars aconteceu no pós-modernismo da experiência subpolítica como simulacro de simulação. (Baudrillard. 1981: 177). Experiência que fez do quimilto <ambição> pessoal ao governo federal o fim da praxis subpolítica nas Américas de Donald Trump, Joe Biden, Milei, Bolsonaro, Lula. Heidegger fala da “luta” das grmáticas das telas da mente ideológica versus estética, em uma transpor da gramática heideggeriana às ciências da telas: 

“No início só vemos claramente que a essência da verdade como descobrimento é contraposta de algum modo ao encobrimento. O descobrimento está, asim parece, numa <luta> com o encobrimento, e a essência dessa luta permanece em disputa”. (Heidegger. 2008: 33). 

Não se trata do fim da ideologia. Esta permanece em sua luta com o poder d’ars em busca da essência da verdade como descobrimento:

“<Verdade>,  não é jamais, <em si>, apreensível por si, mas necessita ser ganha na luta. O descobrimento é conseguido do encobrimento, em luta com ele. O descobrimento não é conseguido somente, por meio de uma luta, no sentido geral de que entre os homens se busca a verdade e se luta por ela. Antes, o que é buscado e o próprio objeto da luta são, em si, na sua essência, uma luta, independentemente da luta do homem por ela: <descobrimento>. Não é claro quem está lutando e como estes participantes da luta estão lutando. É importante, no entanto, pensar uma vez esta essência conflitante da verdade, uma essência que brilha há 2.500 anos na mais tênue de todas as luzes. Faz-se necessário experimentar, propriamente, a luta que acontece na essência da verdade”. (Heidegger. Idem: 35).       ’ 

                                                           20

Assim como o ódio infantil freudiano ao mundo no adulto, a ambição pessoal eterna ao poder político pode desintegrar a forma de governo democrática. O melhor texto sobre ambição política é de Gramsci. Alencar foi um homem aristocrático com uma imensa ambição pessoal à glória, à eternidade. Coisa própria de uma cultura política das Américas. Porém, há grande ambição e pequena ambição como afecções da língua quimilato da prática política:mundial“.

97. Passado e presente. Grande ambição e pequena ambição. Pode existir política, ou seja, história em ato, sem ambição? <A ambição> assumiu um significado negativo e desprezível por duas razões principais:1) porque se confundiu inteiramente a ambição (grande) com as pequenas ambições; 2) porque a ambição muitíssima vezes conduziu ao oportunismo mais baixo, à traição dos velhos princípios e das velhas formações sociais que haviam dado ao ambicioso as condições para passar a um serviço mais lucrativo e de rendimentos mais imediato. No fundo, também este segundo motivo pode se reduzir ao primeiro: trata-se de pequenas ambições, porque têm pressa e não querem superar dificuldades excessivas ou grandes demais, ou correr muitos perigos”. (Gramsci. 2014: 250).

José de Alencar foi um pequeno ou um grande ambicioso? Parece que ele rompeu com a família real, por D. Pedro II não o ter feito senador, ele, Alencar, que era o Príncipe do realismo romântico barroco da monarquia, ele, Alencar, cujo poder d’ars inventado criou as condições de possibilidade de fabricação do Estado integral monárquico nacional territorial/virtual em meio a pólemos e stasis:

“É próprio do caráter de todo lider ser ambicioso, isto é, aspirar com toda a sua força ao exercício do poder estatal. Um líder não ambicioso não é um líder e é um elemento perigoso para seus seguidores; é um incapaz ou um covarde [...] A grande ambição, além de necessária para a luta, não é nem mesmo desprezível moralmente, de modo algum; tudo consiste em ver se o <ambicioso> se eleva depois de fazer o deserto em torno de si ou se sua ascenção está conscientemente condicionada pela ascensão de todo um estrato social e se o ambicioso vê exatamente sua própria ascensão como elemento da ascensão geral”.

O modo de ser psíquico da grande ambição é um modo intencional de viver sublimatório na civilização ocidental:

“O que se vê habitualmente é a luta das pequenas ambições (do próprio particular) contra a grande ambição (que é inseparável do bem coletivo). (Gramsci. Idem; 250-51). 

A grande ambição é o universal da prática política mundial/nacional. Ela é a fonte de energia afeccional, pulsional, libidinal que alimenta a luta universal da gramática da tela da mente estética contra a luta pelo domínio do mundo da tela da mente ideológica da lógica dos particularismos contingentes. A grande ambição é a luta pela forma de governo da democracia constitucional nas Américas. Alencar rompeu com a família real, as, ao cobtrário, não rompeu com a democracia constitucional monárquica:

“Mas o líder não considera as massas humanas como um instrumento servil, bom para alcançar os próprios objetivos e depois jogar fora, mas aspira a alcançar fins políticos orgânicos cujo necessário protagonista histórico são estas massas, se o líder desenvolve obra ,constituinte> construtiva, então se tem uma ‘demagogia’ superior; as massas não podem deixar de ser ajudadas a se elevar através da elevação de determinados indivíduos e de camadas <culturais> inteiros”. (Gramsci. Idem: 251). 

Nesse trecho se encontra a relação do grande líder com as massas analíticas do general intellect gramatical de hoje.         

                                                        21

Até agora, o poder d’ars tem sido empregado como poder de Estado que se exerce a partir de um aparelho de Estado. (Balibar: 94). O poder d’ars do Estado lacaniano usa a mais valia fiscal para construir a polis obra-de-arte. Sócrates vendia suas esculturas para o Estado grego. Há porém o poder da sociedade grega, poder da polis na filosofia de Hannah Arendt:

“O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, <além da vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu <bios politikos>. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio (<idion>) e o que é comum (<koinon>)>. Não se tratava de mera opinião ou teoria de Aristóteles, mas de simples fato histórico; precedera a fundação da <polis> a destruição de todas as unidades organizadas à base do parentesco, tais como a <phratria> e a <phyle>. De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente duas eram consideradas políticas e constituintes do que Aristóteles chamava de <bios politikos>: a ação (<praxis>) e o discurso (<lexis>, dos quais surge a esfera dos negócios humanos [...], que exclui estritamente tudo o que seja apenas necessário e útil. (Arendt: 33-34). 

Habermas fala de Arendt:

“O que lhe interessa nos movimentos emancipatórios é o poder da convicção comum: a desobediência com relação à instituições que perderam sua força de legitimação; a confrontação do poder, gerado pela livre união dos indivíduos, com os instrumentos coercitivos de um aparelho de Estado violento, mas impotente; o susgimento de uma nova ordem política e a tentativa de estabilizar o novo começo, a situação revolucionária original, e de perpetuar institucionalmente a gestação comunicativa do poder”. (Habermas. 1980: 107).

Em José de Alencar, há um outro poder? O poder d’ars da língua fenilato, isto é, <poder quimilato>:

“‘Este mostrara surpresa encontrando ali um homem e reconhecendo nele o marido que desonrara. Ambos meteram mão a espada a um tempo; do terceiro bote a justiça de Deus punira o amor adúltero; entretanto poucos eram os cavalheiros capazes de resistir ao primeiro ímpeto do <donzel> no combate. Quando o coração desfalece, afrouxa o mais valente punho”.

“‘A dama atirou-se com uma velocidade espantosa sobre o cadáver do amante, e colheu-lhe nos lábios o último suspiro. Depois, com a boca tinta no sangue querido, voltou-se para dizer ao esposo:

  • “‘ Agora a mim!...(Alencar. Minas de prata. v. 2: 244). 

O esposo fidalgo imagina uma vingança contra sua esposa traidora:

“‘Atirou a um canto o corpo da esposa, e fechando por fora as portas, despediu os lacaios a vários lugares para os afastar durante a noite, proibindo aos criados subir ao sobrado. Feito o que embuçou-se e saiu apressado, caminho da ribeira, chegou às tercenas onde desembarcam os negros das costas da Mina e Guiné; apesar da hora obteve que lhe mercassem um que pagou a peso de ouro. Escolheu o mais boçal; disforme arremedo de gente, comido da lepra e infeccionado da cruel enfermidade do escorbuto, que trazem da África’”. 

O fidalgo leva o monstro até a esposa:

“Chegados à porta da recâmara, o fidalgo empurrou o monstro e fechou a porta. O que se passou dentro daquela recâmara onde jazia a dama inanimada, ninguém o soube; deve de ter sido uma coisa horrível. O marido correra como louco até a porta da rua; e de lá voltara ainda mais rápido e delirante. Quis entrar; caíra-lhe a chave no corredor escuro. Então bateu como um furioso com o crânio e o peito de encontro à porta, até que a despedaçou. A dama estava inanimada sobre o tapete; o cadáver estendido do outro ado; e o negro acocoradoa um canto como um cão de guarda”. 

“A um gesto do fidalgo, ele tomou o despojo do cavalheiro e desceram ambos ao horto. Cavaram toda a noite; a cova recebeu dois cadáveres, o do cavalheiro morto e o do africano vivo. No dia seguinte, da cena lúgubre, que se representara nessa casa, não apareciam vestígios”. (Alencar. Idem: 245). 

O tumbeiro transformava os escravos em monstros? É um fato? Bem, o monstro alencariano é um objeto-imagem visual produzido pelo poder ‘ars quimilato brutalista romântico sádico. Não se trata de uma visão do autor, Pois é a narrativa de Váz Caminha, o advogado,  mas de uma realidade objetiva de transformação de negros escravos em seres da superfície heteróclita da vida colonial.          

                                                         22

Se trata de estabilizar a relação da tela da mente com o poder d’ars, Bourdieu faz uma caminho para isso. Ele faz a sociologia do campo hoje esquecida. O <campo> pode ser restaurado, parcialmente, como plurivocidade de tela da mente (Bourdieu. 1989: 68,69,71. Tela; social (sociedade classes), política (da gramática da prática política). ideológica (das formas de consciência, do capital cultural (Bourdieu. 1994:39). Heidegger é apresentada como um poder d’ars realista, populista, aristocrático-romântico. O romantismo heideggeriano fantástico já não se dirige a uma audiência aristocrática, se dirige à massa estética populista da revolução conservadora alemã:

“Eis o primeiro grande virtuoso do romantismo. O mecenas aristocrático já não existe. Substituiu-o a massa anônima, o público, perante o qual o artista se apresenta como mensageiro de um mundo diferente”. (Carpeaux: 223).  

Bourdieu:

“A dupla rejeição que envolve o populismo aristocrático de Heidegger não está provavelmente relacionada com a representação mais ou menos escandalizada que, como intelectual de primeira geração, pode ter daquilo que lhe parece uma inversão paradoxal, ou seja, as disposições ‘democráticas’. ‘republicanas’, até ‘socialistas’ daqueles que ele percebe como grandes burgueses, e dos quais ele se sente separado pelo que diz respeito a todos em em particular do ponto de vista da ‘autenticidade’ e da sinceridade de suas convicções populistas” o pensamento de Heidegger busca “a simplicidade arcaica, rural, pré-industrial do camponês que é para o operário citadino, arquétipo do <se>, o que o intelectual errante, sem vínculos, nem raízes, sem fé nem lei, é para <o pastor do ser>”. (Bourdieu. 1989: 69). 

Heidegger é o excluído da aristocracia universitária alemã que não pode excluir o aristocratismo. Daí seu aristocratismo realista fantástico que evoca a concepção política de mundo da Floresta Negra. Na época moderna, o realismo fantástico romântico aparece no “Júlio César”:

“CALPÚRNIA. - César, nunca prestei atenção aos presságios, mas agora eles me atemorizam! Há alguém lá dentro que, além das coisas que ouvimos e vimos, conta que os guardas presenciaram prodígios horrendos. Uma leo teve filhos no meio da rua, os túmulos se entreabriram e vomitaram os defuntos que lá dentro estavam! Guerreiros ferozes combatiam encolerizados entre as nuvens, em filas e em esquadrões, em exata formação militar, fazendo chuviscar sangue sobre o Capitólio! O fragor da batalha atroava os ares, cavalos relinchava, agonizantes gemiam, espectros gritavam e soltavam gritos agudos de terror pelas ruas! ó César! Todas essas coisas são espantosas e tenho medo delas”

CÉSAR. - Quem pode evitar o fim que está determinado pelos poderosos deuses? Mesmo assim, César sairá. Estes presságios não só se dirigem ao mundo em geral, como a César.

CALPÚRDIA. - Quando um mendigo morre, ninguém vê cometas, Os céus se inflamam pela morte dos príncipes”. (Shakespeare, Júlio César: 437).  



ALENCAR, José> As minas de prata. v. 2. SP: Instituto de Divulgação Cultural, sem data

ALMEIDA, Marcos Vinicius. Pesadelo tropical. belo Horizonte: Adobe Text, 2023

ARENDT, Hannah. A condição humana. RJ: Forense-Universitária, 1987 

BALIBAR, Étienne. Cinq études du matérialisme historique. Paris: Maspero, 1974 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramática do general intelect. EUA: amazon, 05/2022

BANDEIRA DA SILVEIRA, josé Paulo. Barroco, tela gramatical, ensaios. EUA: amazon, agosto/2022

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Além da época posmoderna. EUA: amazon, 02/2024

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Ciência política materialista. EUA: amazon, Julho/2024

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Língua -Fenilato. EUA: amazon, 2025

BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et Simulation. Paris: Galilée, 1981 

BAUDRILLARD, Jean. Esquecer Foucault. RJ: Rocco, 1984

BENJAMIN, Walter. Origine du drame baroque. Paris: Flammarion, 1974

BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques. Sur la théorie de l’action. Paris: Seuil, 1994 

BOURDIEU, Pierre. A ontologia política de Martin Heidegger, SP: Papirus, 1989

BURCKHARDT. Jacob. A civilização do Renascimento italiano. Lisboa: Presença, 1983

CALDERON DE LA BARCA. a vida é sonho. SP: Hedra, 2009 

CARPEAUX, Otto Maria. O livro de ouro da história da música. RJ: Quorum, 2009

CASCARDI, Anthony. Subjectivité et modernité. Paris: PUF, 1995

COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. Le désenchantement de l”Etat. De Hegel à Max Weber. Paris: Minuit, 1992

CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros. SP: Brasiliense, 1985

DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência. SP: Companhia das Letras, 2000

DELEUZE, Gilles. Masoquismo. apresentação de Sacher-Masoch. RJ: Taurus, 1983

DOSTOIÉVSKI. O Idiota. SP: Martin Claret, 2005

D’ORS, Eugenio.  Du baroque. Paris: Gallimard, 1935

DOURADO, Autran. A servilço del-rei. RJ: Record, 1984

ECO, Umberto. A estrutura ausente. SP: Perspectiva, 1971

ELORDUY, Eleuterio. El Estoicismo. Madrid: Gredos, 1972

FAORO, Raymundo. Os donos do poder. v. 1. SP: USP, 1975

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala. RJ: José Olympio, 1975

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. RJ: Fundação Nacional Pró-Memória, 1985

FREUD, Sigmund. Obras Completas. v. 20. RJ: Imago, 1976

FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. v. 4. Paris: Gallimard, 1994

GODIN, Christian. La totalité. v. 1. Paris> Champ Vallon, 1998

GRACIÁN, Baltasar. A arte da prudência. SP: Martin Claret, 2003

GRAMSCI, António. Revista Temas. “Alguns temas da questão meridional. SP: Grijalbo, 1977 

GRAMSCI, António. Cadernos do Cárcere. v. 3. RJ: Civilização Brasileira, 2014

BARBARA FREITAG (org). Habermas. Sociologia. SP: Ática, 1980 

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Metafísica e niilismo. RJ: Relume Dumará, 2000

HEIDEGGER, Martin. Parmênides. Petrópolis. Vozes, 2008 

HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismos desde 1780. RJ: Paz e Terra, 1990

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. RJ: José Olympio, 1988

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. Lógica cultural do capitalismo tardio. SP: Ática, 1996

KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. SP;Perspectiva, 1986

KELSEN, Hans. A ilusão da justiça. SP: Martins Fontes, 1995

LACAN, Jacques. Écrits. Paris; Seuil, 1966

LACAN, Jacques. Le Séminaire. Livre 20. Encore. Paris: Seuil, 1975

LACAN, Jacques. Le Séminaire. Livre 17. L’envers de la psychanalise. Paris; Seuil, 1991

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 10. A angústia. RJ: Zahar, 2005

LACAN, Jacques. O Seminário. livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008

LEGENDRE, Pierre. Jouir du pouvoir. Traité de la bureaucratie patriote. Paris: Minuit, 1976

LIMA BARRETO. Triste fim de policarpo Quaresma. SP: Brasiliense, 1959

LIMA BARRETO. Diário ìntimo. Memórias. SP: Brasilense, 1956 

LUGON, C. A república comunista cristã dos Guaranis. RJ: Paz e Terra, 1968

MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político. A tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 1997

MALHERBE, Michel. Qu’est que la causalité? Hume e Kant. Paris: J. Vrin, 1994

MAQUIAVEL. O Príncipe. SP: Abril Cultural, 1973 

MARAVAL, José Antonio. La cultura del Barroco. Barcelona: Ariel, 1975

NEWTON DA COSTA. Ensaio sobre os fundamentos da lógica. SP: Hucitec, 2008

OROZCO, Emilio. Manierismo y Barroco. Madrid: catedra, 1988

PERELMAN ET OLBRECHTS-TYTECA, Chaim et Lucie. Traité de l’argumentation. Bruxelles: EUB, 1988

PHILONENKO, Alexis. Lições platónicas. Lisboa: Piaget, 1997 

SCHWARCZ E STARLING, Lilia M. e Heloísa. Brasil: uma biografia. SP: Companhia das Letras, 2015

SCHWARCZ, Lilia M. Lima Barreto. Triste visionário. SP: Companhia das Letras, 2017

SHAKESPEARE, William. Obra Completa. v. 1. Julio César. RJ: Aguilar, 1988 

SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. RJ: Civilização Brasileira, 1969

SOURIAU, Etienne. Vocabulaire d’Esthétique. Paris: PUF, 1990

TAPIÉ, Victor-L. Le Baroque. Paris: PUF, 1981


    


Nenhum comentário:

Postar um comentário