quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

Políbios, Dalton Trevisan

 

José Paulo 

 

Há a relação entre discurso e perversão:

“O sofrimento tem sua linguagem, e é realmente uma pena que qualquer um posso dizê-lo sem saber o que diz. Mas, enfim, esse é precisamente o inconsciente de todo discurso”. (Lacan. S. 16: 68).

Rousseau põe e repõe a criança e o <bom selvagem> fora da perversão, fora do inconsciente de todo discurso. (Sloterdijk: 92-93). Dalton Trevisan põe e repõe a criança no inconsciente do discurso do perverso.

Dalton faz a gramática literária da dor do homem, mulher, criança:

“Umas cuidam bem de suas protegidas, assim a galinha com o pintinho. Ah, criatura mais perversa não existe que a criança doente de solidão: essa judia da amiguinha, castiga-a, devora a milagrosa – embora azeda – laranja que, saiba você como, surgiu entre os dedinhos rapinantes, sem dar um gomo à companheira, que engole em seco. E não bastasse, espreme a casca no seu olhinho guloso. Se a menos faz xixi na cama, denunciada à vigilante, que a exibe no meio do pátio – o lençol na cabeça até secar”. (Trevisan: 35).

O brutalismo do capital com a criança tem na imagem do dedo decepado pela máquina de fiar o significante da relação da dor que o capital produz na criança agenciando o inconsciente perverso desse inconsciente de discurso capital/criança. (Bandeira da Silveira. 2021).

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A prática política da história tem dois aspectos: tikhé e ação dos homens. A tikhé é <sorte> ou acaso. Mas como ela se traduz para a ação do homem:

“É-se tentado então, em casos desse gênero, a falar num delírio de origem divina e dizer que todos os macedônios foram atingidos coletivamente pela cólera dos deuses, como se verá claramente em seguida...”. (Políbios: 542).

O delírio da multidão de uma prática política é tikhé; é um fenômeno que está fora do cálculo do agente perverso da história quanto à sua gramática da dor do acontecimento:

“1. Embora a Hélade em conjunto e as suas diversas regiões separadamente hajam sofrido reveses frequentes, a nenhuma de suas derrotas anteriores pode-se aplicar com mais prioridade o nome de desastre em toda a extensão da palavra do que aos eventos da minha própria época. De fato, devemos sentir comiseração pelos helenos diante dos seus sofrimentos, mas também não podemos dexar de pensar que as suas próprias iniciativas lhes foram ainda mais ruinosas que a ação do inimigo quando conhecemos detalhadamente a verdade. [...] Mais ainda; os cartagineses, tendo sido completamente exterminados pela calamidade que os atingiu, não puderam sentir os seus sofrimentos mais tarde, enquanto os helenos, continuando a presenciar s suas desgraças, passaram de pai para filho a memória de seus infortúnios. Sendo assim, se considerarmos que os sobreviventes, sujeitos à castigos, merecem mais comiseração que os combatentes mortos na própria batalha, devemos julgar as calamidades sofridas pelos helenos mais lamentáveis que o destino de Cartago, salvo se, manifestando-nos sobre o assunto, ignoramos toas as noçõs de nobreza e decoro e fixarmos os nossos olhos somente na vantagem material”. (Políbios: 543).

Um povo como modo de ser psíquico perverso é a metonímia da linguagem do sofrimento do inconsciente do discurso político.  

A gramática da dor do povo helênico (da revolução barroca da antiguidade) é análoga a gramática da dor da criança barroca de Dalton Trevisan:   

“2. Supõe-se que  o maior pavor causado pela Sorte aos helenos tenha sido a invasão da Europa por Xerxes. Com efeito, naquela ocasião todos eles estiveram em perigo, mas bem poucos foram realmente atingidos. Os mais sacrificados foram o atenienses; estes, porém, prevendo sabiamente o que viria a acontecer, abandonaram a sua cidade, levando consigo as suas mulheres e crianças. Sem dúvida eles sofreram grandes males na época, pois os bárbaros, tornando-se senhores de Atenas, destruíram impiedosamente a cidade, mas os atenienses não incorreram em qualquer em qualquer censura ou vergonha; ao contrário, a sua conduta foi considerada por todos a mais gloriosa pelo fato de, relegando a segundo plano qualquer consideração a respeito do que lhes poderia ocorrer, terem decidido compartilhar a sorte dos outros helenos. Consequentemente, graças à sua escolha corajosa eles não somente recuperaram sem demora a pátria e a sua terra, mas dentro de pouco tempo estavam disputando com os lacedemônios a hegemonia da Hélade”. (Políbios: 544). 

Atenienses vivem e se comportam – na prática política - como homem barroco da antiguidade, não como ratazana perversa sublime como Alexandre, o Grande:

“Algum tempo depois os tebanos assistiram á destruição total da sua cidade quando Alexandre o Grande, pretendendo marchar contra a Ásia, pensou que castigando os tebanos atemorizaria as outras cidades, levando-as a ficar-lhe submissas enquanto ele se dedicava à execução dos seus próprios planos. Mas nesse caso todos se apiedaram dos tebanos pelo tratamento cruel e injusto de que foram vítimas, e ninguém tentou justificar a conduta de Alexandre”. (Políbios: 544).      

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Dalton Trevisan faz do conto “Morte na praça” o palco da ratazana perversa da vida privada. Jonas é um assassino e Anita a esposa que trai Jonas, gerando uma situação de vingança irrevogável:

“Os perversos insistiam:

-Tão pálida, tão magra.

Manhã seguinte Jonas estava morto. Se Anita o envenenou ou se comeu, enganado, o prato com arsênico que a ela destinava...Anita chorou no enterro, o vestido de cetim preto e, sob o véu, a boquinha pintada. De noite a casa, escura seis meses, iluminou o canto da praça, atraindo os grandes besouros que, ao cair, batiam a negra carapuça na pedra e, de costas, agitavam as patinhas no ar. Escândalo da cidade, a luz do corredor apagava e acendia. Não soubera Anita da fuga do escrivão”. (Trevisan: 84).

A ratazana animal é um ser que vive na cidade sem ser perturbada pelos homens, mulheres e crianças:

“As pancadas do martelo faziam parar, curiosa e rabinho satisfeito, a velha ratazana que rebolava no pó amarelo”. (Trevisan: 85).

Anita faz companhia para a ratazana animal:

“Outro dia ela abriu a farmácia, você não tinha coragem de escolher chupeta ou escova de dentes. Sentada atrás do balcão, olho dourado na penumbra. Por vezes, andava até a porta: uma ratazana pardacenta e gorda cruzava a rua, da igreja para o hospital. Apenas um caboclo pediu um copo de água”. (Trevisan: 84).

O povo da cidade não se mete com a ratazana perversa ou a ratazana bicho. A cidade não tem Estado territorial, tem igreja e hospital. Há uma analogia virtual com a ratazana perversa de Políbios? 

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A imagem da ratazana perversa grotesca se contrapõe a imagem do santo:

“Com a revelação jurou que, antes de voltar para a Tutuca, daria um tiro no ouvido. Insistiam os amigos que dona Maria era santa, ele rato piolhento de esgoto. Santa podia ser, mas imprestável na cama. (Trevisan: 152).

Um povo pode ser uma ratazana perversa grotesca que se define pela insensatez; ele não possui gramática de sentido da prática política? Ele está fadado ao desastre:

Políbios:

“De um modo geral tratava-se no passado de reveses isoladas ou de grupos de cidades, umas aspirando á hegemonia ou querendo impor as sus pretensões, e outras opondo-se a ataques traiçoeiros de tiranos e de reis. Sendo assim, raramente s vítimas de infortúnio incorriam em censura, ou era possível usar com propriedade em relação a elas a expressão <desastre>, pois deve-se considerar que todos os povos ou indivíduos vítimas de calamidades extraordinárias são infortunados, mas somente se pode falar em desastre no caso dos que se cobrem de opróbio em consequência de sua própria insensatez. (Políbios: 545).

A ratazana perversa grotesca surge em períodos de calamidade política; com a multidão vivendo o delírio de que aquela é a expressão subjetiva das condições objetivas. 

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No conto “Os velhinhos”, a crítica da gramática do perverso se desenvolve com o velho; antes a criança aprecia como campo da criação de perverso verdadeiros; o velho se acrescenta à criança. A criança com seu teatro do mundo lúdico e o velho com seu teatro da dor como a priori, com seu infortúnio. Qual a relação com os povos gregos? A perversão dos povos da antiguidade é a da ratazana perversa que exclui criança e velho, e mulheres:

“15. Com a morte de Critôlaos, comandante dos aqueus, em face da lei segundo a qual se acontecesse algo ao comandante em exercício este seria substituído pelo seu antecessor até a realização da próxima assembleia ordinária dos aqueus, voltou a Diaios a direção dos assuntos da Confederação. Consequentemente, após mandar uma mensagem a Mégara ele se dirigiu a Argos, de onde expediu uma carta a todas as cidades da Confederação com instruções para libertarem doze mil escravos na flor da idade nascidos e criados nas mesmas e mandá-los a Corinto depois                                                                    de armá-los. Díaios, todavia, fixou o número de escravos a serem mandados por cada cidade ao acaso e iniquamente, como sempre fazia em relação à escravos outros assuntos. Se as cidades não dispusessem do número suficiente de escravos criados nas mesmas, teriam que libertar outros para suprir a deficiência.  Vendo, por outro lado, que os recursos em dinheiro disponíveis pelas cidades estavam muito reduzidos por causa da guerra contra os lacedemônios, Diaios compeliu-as a fazerem arrecadações especiais com o  objetivo de obter contribuições dos habitantes mais ricos, não somente dos homens mas também das mulheres, ordenando simultaneamente a todos os cidadãos em idade militar que se apresentassem armados em Corinto. Em decorrência dessas medidas havia em todas as cidades apenas confusão, distúrbios e consternação. Os habitantes invejavam os homens mortos em combate e lamentavam a sorte dos que estavam em marcha, e além disso todos choravam incessantemente, como se previssem o futuro”> Políbios:549-550).

O comando das cidades nas mãos de uma ratazana perversa grotesca equivale a forma de governo tirânica transportada para a guerra:

“Os cidadãos sofriam muito com a imprudência e a insolência dos escravos, alguns dos quais acabavam de ser postos em liberdade, enquanto os demais mostravam-se excitados com a esperança de se verem livres. Ao mesmo tempo os homens eram obrigados a contribuir indiscriminadamente, sem qualquer consideração quanto as suas posses e sem que tivessem aprovado essas medidas, enquanto as mulheres deviam despojar-se das suas joias e dos objetos preciosos de seus filhos, como se tivessem decidido contribuir para a sua própria destruição”. (Políbios: 550).

A enorme dor infligida aos povos é um elemento da crítica da gramática do poder da ratazana perversa que aparece em Dalton Trevisan, ao considerar o povo de velhinhos. 

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A crítica da gramática do perverso tem na crueldade uma afecção natural do modo de ser psíquico do significante homem velhinho:

“Lavam na pia o lenço, a meia, a cueca, estendidos para secar no barbante sobre a cama. Louco de solidão, Candinho introduziu escondido um gato. Queria segurá-lo o tempo inteiro no colo, debatia-se, arranhava, miando pelos cantos. Os outros se queixavam de invejosos. Um deles empurrou o animal no poço do elevador, o bichinho uivava desesperado. Ninguém queria descer para resgatá-lo. Ficou dias lá no fosso. O dono aflito atirava migalhas de pão e retalho de carne crua. Na ponta do cordel baixou uma latinha com água. E armou um laço para o bicho, que subiu meio estrangulado. Baboso descrevia-lhe o programa de televisão

- Olhe aí, meu filho, o outro gatinho!

Dia seguinte morto diante da porta, o pires de leite envenenado. (Trevisan: 156). 

Ódio ao outro e viverem sob a desconfiança da mulher fazem parte da vida da ratazana perversa:

“Odeiam a morte, a criança barulhenta e o pagador de aposentadoria mais do que tudo no mundo – por causa dos descontos da pensão. Perseguem no corredor a nova arrumadeira – bando de moscas brancas em volta do torrão de açúcar preto. Um deles atraiu para o quarto um cachorrinho felpudo: a gritaria da dona, que o acusou servir-se do bichinho como instrumento de prazer”. (Trevisan: 157).

O quinismo torna-se uma afecção do velhinho perverso:

“Na sala de televisão, monstros de gentileza, oferecem o lugar para a nova hóspede. Sempre que tem mulher, um deles d braguilha aberta,; senta-se, pigarreia, cruza a perna, até que a dona olha escandalizada”. (Trevisan: 159).

O fetiche sexual é o princípio de mais-gozar na relação do perverso com o mundo feminino:

“Toda noite que a arrumadeira não recolhe a roupa, um deles surrupia do varal uma calcinha ou sutiã. Cada um leva no bolso a sua calcinha preferida. Os mais viciosos chegam a vesti-la debaixo da capa”. (Trevisan: 160).

O povo dos velhinhos é um campo heteróclito da vida perversa. O modo de ser psíquico do perverso a propriedade da fêmea através do fetiche, propriedade da mãe pela criança. A dor como a priori  o ódio como afecção são a fonte da vida perversa na superfície do teatro mundo, seja trágico, seja cômico.

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A gramática da realidade é a junção da história com a perversão nos povos da civilização; a barbárie não tem história, é só perversão; civilização e barbárie se transferem para o Estado como democracia e ditadura, hegemonia e dominação, respectivamente. Aí já entramos no mundo pós-antiguidade:  

“16. Todos esses fatos estavam acontecendo ao mesmo tempo, e por isso o desalento criado pelos eventos isolados de cada dia  tornava o povo incapaz daquela reflexão global e cuidadosa que levaria os cidadãos a preverem que todos eles com suas mulheres e filhos seguiam claramente o caminho da própria destruição. Assim, como se fossem levadas irresistivelmente pela força de uma corrente impetuosa, eles se resignavam a continuar avançando pela via onde os arrastavam a insensatez e o delírio de seu comandante”. (Polibios: 550).

O comandante é uma ratazana perversa grotesca sem gramática de sentido no comando do povo, ela é idolatra do delírio do desastre:

“Os patreus e os habitantes das cidades pertencentes à mesma circunscrição financeira haviam sofrido um desastre pouco antes na Facis, e a sua situação era muito mais lastimável que a dos seus aliados no Peloponeso; com efeito, alguns deles deram fim à vida num momento de desvario, e outros fugiram das cidades e andavam errantes através dos campos, sem saber por onde iam mas terrificados como o que estava acontecendo nas cidades. Alguns detinham outros para entregá-los ao inimigo como se fossem culpados de oposição aos romanos, e outros denunciavam e acusavam os seus vizinhos, embora ninguém esperasse deles esse serviço no momento. Outros apresentavam-se finalmente como suplicantes, confessando traição e perguntando qual seria a punição, embora ninguém pedisse qualquer explicação sobre a sua conduta. A Hélade inteira estava sofrendo de um distúrbio mental sem precedentes, com as pessoas lançando-se a poços e precipícios, de tal maneira que, como diz o provérbio, a calamidade da Hélade provocaria a piedade até de um inimigo, se este a presenciasse. No passado os helenos haviam realmente sofrido reveses ou catástrofes completas, às vezes por causa de divergência políticas e às vezes traídos por tiranos, mas na época à qual me refiro eles foram atingidos pelo que todos reconhecem ter sido uma verdadeira calamidade, em decorrência da irreflexão dos seus chefes e da sua própria insensatez. Os tebanos chegaram ao extremo de abandonar em massa a sua cidade, deixando-a inteiramente deserta (entre eles estava Piteas, que fugiu com a mulher e os filhos para o Peloponeso, onde passou a levar vida errante). (Políbios: 550-551).

O delírio no lugar da gramática de sentido aparece como o modo de ser psíquico dos povos que já não são mais povos com história, e sim povos da barbárie na própria civilização da antiguidade.

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Crítica da gramática do capital. EUA: amazon, 2021

LACAN, Jacques. O Seminário. De um Outro ao outro. livro 16. RJ: Zahar, 2008

POLÍBIOS. História. Brasília: UNB, 1985

SLOTERDIJK, Peter. Crítica da razón cínica. V. 1. Madrid: Taurus, 1989

TREVISAN, Dalton. Antologia pessoal. RJ: Record, 2023    

   

       

 

 

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

história, retórica, filosofia

 

José Paulo

O PRIMEIRO conhecimento científico que obtive sobre o Estado foi com Engels:

“Em nenhuma parte melhor do que na antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu, ao menos na primeira fase de sua evolução, com a transformação e substituição parciais dos órgãos de constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completamente instauradas autoridades com poderes realmente governamentais – quando uma <força pública> armada a serviço dessas autoridades (e que, por conseguinte, podia ser dirigida contra o povo), usurpou o lugar do verdadeiro <povo em armas>, que havia organizado sua autodefesa nas gens, nas fratrias e nas tribos”. (Engels. 1974: 120).

Heródoto faz a primeira prosa historiográfica de uma época na qual os povos viviam uma vida na barbárie perversa:

‘Assim quando Croisos recebeu a soberania deixada por seu pai mandou matar o homem que havia conspirado contra ele, pondo-o entre os dentes de uma máquina de cardar, depois de confiscar os seus bens e consagrá-los aos deuses da maneira e nos templos mencionados por mim. Isso é tudo que direi a respeito das oferendas de Croisos”. (Heródoto: 50).

Heródoto fala da criação de um aparelho de Estado entre os medos; deixa a narrativa dele introduzir o leitor no problema:

“Depois de quinhentos e vinte anos de dominação na Ásia, os medos foram os primeiros a rebelar-se contra eles; sua luta contra ao assírios pela liberdade parece tê-los transformados num povo corajoso que, desvencilhando-se do jugo, conquistou a liberdade. Depois disso os outros povos subjugados também fizeram o mesmo que os medos”;

“Todos os povos do continente se viram livres, mas foram novamente submetidos à tirania da maneira seguinte: havia entre os medos um homem muito inteligente chamado Deioces filho de Fraortes. Deioces aspirava ardentemente à tirania e fez o seguinte para alcança-la: os medos moravam em povoados esparsos; Deioces, que já era um homem notável em seu povoado, resolveu dedicar-se com empenho ainda maior à prát5ica da justiça; ele fez isso numa época em que a injustiça preponderava em toda a Média, cônscio de que a injustiça é inimiga da justiça. Então os medos do mesmo povoado, observando seu modo de agir, escolheram-no para seu juiz, e ele, com o pensamento no poder, foi correto e justo. Agindo assim ele obteve não poucos louvores de seus concidadãos, e se propagou pelos povoados vizinhos a fama de que Deioces era o único homem a julgar retamente; os habitantes dos outros povoados, vítimas até então de sentenças injustas, ouvindo isso passaram com satisfação a submeter-se ao seu julgamento, e, finalmente não aceitavam qualquer outro juiz. (Heródoto: 51).

Um ersatz de aparelho de Estado emerge no campo subpolítico da barbárie:

“98. Eles propuseram imediatamente que se escolhesse um rei,; todos os homens sugeriram o nome de Deioces, tecendo-lhe elogios, e então concordaram que ele seria o rei. Deioces lhes deu ordens para construírem uma casa digna de sua condição de rei e para lhe darem uma guarda pessoal com o objetivo de firmar sua autoridade. Os medos agiram de acordo com  seu pedido, construíram uma casa grande e fortificada, no local por ele determinado,  escolheram entre todos os medos os guardas para o rei. Senhor do poder, ele compeliu os medos a construir uma cidade única e a abandonar todas os povoados. Os medos lhe obedeceram também nisso, e construíram a cidade chamada atualmente Agbátana, cujas fortificações são de grandes dimensões e sólidas e são constituídas de muralhas em círculos concêntricos. Elas foram planejadas de tal maneira que cada círculo de muralhas excede o precedente por uma altura equivalente à de suas ameias; o local escolhido – uma colina isolada – certamente favorece essa disposição, mas ela deve mais ainda aos desígnios dos construtores. Há sete círculos ao todo; dentro do último círculo interno ficam o palácio e o rei e seus tesouros, e a muralha tem aproximadamente a mesma extensão da muralha que circunda a cidade de Atenas. As ameias do primeiro círculo são brancas, as do segundo são negras, as do terceiro são de cor púrpura, o quarto é azul e o quinto ´alaranjado; então as  ameias de cinco círculos são pintadas em cores diferentes; quanto às ameias dos dois últimos círculos, as de um deles são prateadas e as do outro são de douradas. (Heródoto: 52).

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Heródoto quer fazer um conhecimento que não seja do domínio da retórica. O ersatz de monarquia dos medas não se diferencia da forma de governo tirânico. Para um contraste com a monarquia romana como fenômeno retórico, o livro “Da monarquia, vida nova”, de Dante Alighieri é o melhor modelo político:

“Todo aquele que tem em mira o bem da República busca o direito. Essa proposição prova-se deste modo: o direito é uma proporção real e pessoal de homem a homem; desde que essa medida e essa proporção sejam respeitadas, a sociedade está sã e salva. Se forem violadas, a sociedade se decompõe. A descrição que faz o Digesto não diz o que é o direito, mas o descreve segundo seu gênero de utilidade. Se nossa definição precedente dá exatamente a essência e o fim do direito; se, além disso, o fim de toda sociedade é o bem comum; o bem comum é, por conseguinte, o fim do direito, e é impossível existir um direito que não porfie pelo bem comum. por isso, Túlio escreve, com razão, no seu primeiro livro da Retórica, ‘a utilidade da República explica sempre as leis. Se as leis não tiverem em vista a utilidade dos cidadãos, não são leis justas; não são leis senão de nome; de fato e realmente, porém, não são leis’. As leis, na verdade, têm por meta unir os homens entre si visando ao bem gral. Daí a palavra de Sêneca, no livro das Quatro Virtudes: ‘ A lei é o bem da sociedade humana’. Assim pois, todo aquele que tiver por escopo o bem da República tem por escopo o direito. Se os romanos visaram o bem da República, pode-se dizer que o se alvo foi o direito”.

“Que o povo romano tenha visado o bem comum, quando conquistou o Universo, é o que suas ações o proclamam. Despojado inteiramente dessa cobiça que é inimiga do bem comum, impelido pelo único amor a paz e da liberdade, esse povo santo, piedoso e glorioso parece ter negligenciado seus próprios interesses, a fim de procurar tão-somente o bem do gênero humano”. (Dante: 40-41).

Dante fala do cesarismo como civilização sem barbárie. E, no “Antônio e Cleópatra” , Shakespeare faz uma ciência política materialista do cesarismo como um fenômeno dialético, isto é,  como barbárie e civilização, definindo qualquer campo político por esses dois aspectos contraditórios: ditadura e democracia, dominação e hegemonia, barbárie e civilização.

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A gramática da retórica é literatura e pode ter significantes da realidade como a ratazana perversa grotesca;

“Acha-se muito longe do interesse humano aquele que, mestre nas doutrinas políticas, não cuida de conferir à República nenhum dos frutos que colheu. Esse homem não é como ‘a árvore que plantada junto à água corrente, no tempo devido produz frutos’, mas antes uma cloaca pestilenta, que tudo draga e devora, sem nada restituir”. (Dante: 13).

A ratazana grotesca é um ponto fora da curva do gênero humano como general intellect da prática política da espécie humana, ela já é o domínio do heteróclito, do monstruoso:

“Já insistimos bastante sobre este ponto: a tarefa própria do genro humano, tomado na sua totalidade, é a de atuar continuamente a plenitude do poder do intelecto possível, em primeiro lugar em vista da especulação e, depois, por sequência lógica, para a prática”. (Dante: 17).

O <poder do intelecto> é um efeito da especulação e da prática, da retórica e da história. Ele é o poder do intelecto retórico no campo da prática política da história. Marx fala em general intellect:

“Nos estudos preliminares à ‘Crítica da economia política’ encontra-se uma versão, segundo a qual a história da espécie humana está comprometida com uma conversão automática de ciência natural e tecnologia em uma autoconsciência do sujeito social (general intellect) que controla o processo da vida material”. (Habermas. 1982: 64).  

O general intelecto se desenvolve além da ciência natural no campo político humano como retórica e técnica. A prática política é retórica e relações técnicas de produção. A gramática da retórica se define por fazer da prática política o bem da soberania do Um - como forma de governo:

“Tudo quanto é bom, é bom justamente pelo que o torna um. Ora, a concórdia como tal é um certo bem; é, pois, evidente que ela deve ter sua raiz e sua fonte no um. Saberemos qual é essa raiz, se a natureza ou a razão da concórdia forem examinadas. A concórdia é um movimento uniforme de muitas vontades; essa definição mostra claramente que a unidade das vontades, designada pelas palavras ‘movimento uniforme’, é a raiz da concórdia; mas ainda é a própria concórdia”. (Dante: 31).

Para existir, a prática política tem que obter consensos. A retórica do sofista criava o consenso na politeia. Portanto, o um pode ser constituído como forma de governo democrático. Há-um na multidão da prática política democrática.  É um UM que se constitui na prática viva e não na estrutura da forma de governo como a monarquia retórica de Dante.      

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A gramática da retórica é capaz de ver o significante funcionando na história. Porém, o discurso político retórico não cria significante. Este emerge do real da história como narrativa, como no caso do significante TRANSFUGA:

“30. Dessa cidade se navega por uma distância igual àquela que separa Elefantina da capital dos etíopes e se chega á terra dos Trânsfugas. Esses Trânsfugas são também chamados de Asmach, que na língua dos helenos quer dizer ‘aqueles que ficam à mão esquerda do rei. Constituindo um grupo de duzentos e quarenta mil egípcios em idade militar, em certa ocasi~]ao eles se voltaram e se juntaram aos etíopes. Suas razões foram as se3guintes: no reinado de Psaméticos havia guarnições sediadas em Elefantina defronte dos etíopes, em Dafne de Pelúsion defronte dos árabes a assírios, e em Mares defronte dos líbios (ainda em minha época distribuem suas guarnições de maneira idêntica a essa adotada  no tempo de Psaméticos; há guarnições persas em Elefantina e em Dafne). Esses egípcios ficaram de guarda durante três anos e ninguém veio substituí-los; então eles se reuniram para deliberar e de comum acordo desertaram do serviço de Psaméticos e foram para a etiópia; Psamétcos, advertido daqueles acontecimentos, veio em sua perseguição, e quando os alcançou exortou-os com muitas palavras a não abandonarem os deuses de seus antepassados e suas crianças e mulheres. Nessa ocasião um deles, apontando para os seus órgãos sexuais, disse que onde esses estivessem teriam de estar suas mulheres e crianças. Assim eles foram para a Etiópia e se entregaram ao rei dos etíopes; esse rei, para oferecer-lhes um presente com os quais estava em retribuição, mando-os expulsar de suas terras certos etíopes com os quais estava em litígio e ocupá-las. Esses soldados, estabelecendo-se na Etiópia, contribuíram para civilizar os etíopes, ensinando-lhes os costumes egípcios”. (Heródoto: 97-98).                              

A Etiópia e o Egípcio podem representar duas regiões do campo político da atualidade; uma, respectivamente, bárbara e a outra civilizada.   O trânsfuga se desloca de uma região para outra; e leva consigo a civilização para a região bárbara do campo político humano.    

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Heródoto fala de civilização e barbárie como fato histórico; ele define a Hélade como civilização e o Egito como barbárie:

“50. De fato, a Hélade recebeu do Egito quase todos os nomes de deuses. Estou convencido de haver descoberto que eles vieram dos bárbaros – sobretudo do Egito, penso eu”. (Heródoto: 105).

Nietzsche fez de fatos fenômenos filosóficos. Ele parte do culto de Dionísio como fenômeno da barbárie, como Heródoto:

“49. A propósito disso, em minha opinião Melâmpus filho de Amitêon não ignorava esse ritual , e até estava perfeitamente ciente dele; com efeito, Melâmpus foi o introdutor do nome de Diônisos na Hélade, bem como dos sacrifícios a esse deus e da procissão com o falo; não vou dizer que ele compreendeu exatamente todo o assunto a ponto de poder explica-lo, mas vários sábios o explicaram melhor posteriormente; de qualquer modo, porém, foi ele o introdutor da procissão com o falo entre os helenos, e estes aprenderam como ele a fazer o que fazem quanto a isso. Em minha opinião, portanto, Melâmpus demonstrou ser um homem inteligente ao instituir a arte profética, e ao ensinar aos helenos, entre outros conhecimentos adquiridos no Egito, o culto de Diônisos, modificando-o ligeiramente. Jamais eu atribuiria um caráter fortuito à semelhança entre o culto egípcio e o culto helênico ao deus, pois se assim fosse esse culto estaria em consequência com os costumes dos helenos e não teria aparecido tardiamente na Hélade. Eu não diria tampouco que os egípcios teriam copiado esses ritos ou quaisquer costumes dos helenos. Creio, porém, que Melâmpus tomou conhecimento do culto de Dionisio principalmente através de Cadmos, o tirio, e dos fenícios que vieram instalar-se com ele na região atualmente chamada Boiotia”. (Heródoto: 105).

Nietzsche fez de Dionisio um fato da filosofia:

“Ou haverá um pessimismo da força? Uma predileção intelectual pela aspereza, pelo horror, pela crueldade, pela incerteza da existência, predileção devida à saúde excedente, ao excesso de força vital, à excedência da vida? Tão excessiva plenitude não trará consigo um certo sofrimento? (Nietzsche. 1982: 180).

Nietzsche associa o <mais-gozar> à comunidade psíquica de significante do perverso?  O excedente do princípio de desejo ergue uma concepção política de mundo do perverso:

“A visão mais penetrante não será por isso mesmo dotada de uma temeridade irresistível, que busca o terrível como quem busca o inimigo, que procura um adversário digno contra o qual posso experimentar a sua força? Não pretenderá ela saber o que é o ^<pavor>? Que significa o mito <trágico>, precisamente entre os gregos da época mais alta, mais forte, mais valorosa? E esse fenômeno prodigioso do espírito dionisíaco? Que significa a tragédia, filha dele? – Em compensação, aquilo que causou a morte da tragédia, o <socratismo> da moral, da dialética, da ponderação e da serenidade do homem, - sim, o socratismo – não poderá ser tomado justamente por um signo de decadência, de lassidão, de esgotamento, de anarquismo dissolvente dos instintos? A <serenidade helênica> dos últimos gregos, não teria sido um crepúsculo? O esforço epicurista contra o pessimismo, não seria apenas uma preocupação do doente? A própria ciência, sim, a nossa ciência, encarada como sintoma da vida, que significa ela, afinal? Para quê, ou antes, de que nos vem toda a ciência? Pois quê? O espírito científico será mais do que receio e distração em frente do pessimismo? mais do que um expediente engenhoso contra – a <verdade>? Ou, para falar moralmente, um análogo do medo e da hipocrisia? ou, para falar imoralmente, da astúcia? Ai, Sócrates, Sócrates: era então esse o teu segredo? Ô misterioso ironista: era essa talvez a tua ironia?” (Nietzsche. 1982: 18-19).   

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A ironia da história europeia consiste em Sócrates ter criado a civilização helênica. Ele um modo de ser psíquico da comunidade psíquica de significante do perverso. A civilização surge das mãos desse perverso verdadeiro que cria o mundo como teatro de comédia do discurso do filósofo:

“Um problema fundamental será o de medir a subjetividade do Grego perante o sofrimento, o seu grau de sensibilidade. Teria sido invariável este grau? Teria variado de extremo a extremo? Pergunta fundamental é a de saber se o seu desejo de <beleza>, sempre crescente, o seu desejo de festas, atos de regozijo, novos cultos não era resultante da miséria, melancolia, dor? Supondo que fosse verdade, - e Péricles (ou Tucídides) assim o dá a entender na grande oração fúnebre, - : donde viria então a tendencia contrária e cronologicamente anterior, o <desejo do horrível>, a sincera e acre inclinação dos primeiros helenos para o pessimismo, o mito trágico, a representação de tudo que há de terrível, de cruento, de misterioso, de aniquilante, de fatal no fundo de tudo quanto é vivo, - donde viria então a tragédia?”. (Nietzsche. 1982: 22; 1977: 14).

A tragédia é um modo de ser psíquico do perverso?

Nietzsche:

Talvez  mesmo da alegria, da força, da saúde exuberante, do excesso de virilidade. Que significação adquire nesse caso, em linguagem fisiológica, esse delírio particular, que foi a nascente tanto da arte grega como da arte cômica, o delírio dionisíaco? Pois quê? O delírio não seria necessariamente um sintoma de degenerescência, de decadência, de civilização esgotada? Haverá por acaso, pergunta que deixo aos médicos alienistas, - uma nevrose da saúde, da infância e da adolescência dos povos? Que significará, para nós, esta síntese de um deus e um bode na figura do sátiro? Que experiencia, que impulso irresistível levaram a representar num sátiro o sonhador dionisíaco, o homem primitivo? E no que diz respeito à origem do coro, naqueles séculos em que florescia a força física do grego, em que a alma grega transbordava de vida, pergunto: haveria talvez entusiasmos endêmicos? Haveria visões e alucinações que se manifestavam a cidades inteiras, a multidões inteiras que se reuniam nos templos? O quê? Quem sabe se os gregos, quando estavam exatamente no esplendor primeiro da sua juventude, sentiam a necessidade do trágico e eram pessimistas? Quem sabe se, usando agora uma palavra de Platão, o delírio foi justamente, para a Hélada, o maior dos benefícios? Quem sabe se, por outro lado e pela razão contrária, os gregos, na própria época da sua dissolução e de seu declínio, se tornaram cada vez mais otimistas, mais superficiais, mais cabotinos, e, por isso, cada vez mais apaixonados pela lógica, mais interessados em conceber a vida logicamente, quer dizer, tanto mais <serenos> quanto <científicos>?

O homem lógico seria o homem normal como criação do mundo como teatro de comédia do modo de ser psíquico do lógico:

‘Como assim? Ao arrepio de todas as <ideias modernas> e dos preconceitos do gosto democrático, não poderemos dizer que a vitória do otimismo, o predomínio da <razão>, a teoria e a prática do <utilitarismo>, assim como a própria democracia, contemporânea de tudo isto, - sejam talvez em conjunto o sintoma do declínio da força, da aproximação da velhice, da lassidão fisiológica? Sejam eles, e não o pessimismo? Não foi Epicuro precisamente um <doente>? – Como logo se vê, este livro está bem carregado com um verdadeiro fardo de problemas graves, - mas apresentemos agora o mais grave de todos! Que significa, do ponto de vista da vida, a moral?...(Nietzsche. 1982:23).

Nietzsche inclui o Estado e a arte como fenômenos da civilização? ;

“Efetivamente, não me parecem explicáveis o Estado dórico e a arte dórica senão como resistência e reação do espírito apolíneo: foi somente à custa de uma luta incessante contra a natureza titânica e bárbara do espírito dionisíaco que pôde existir e viver uma arte de tanta dureza e de tanta altivez, uma fortificação tão maciça, uma educação tão guerreira, um princípio governativo tão cruel e tão brutalista”. (Nietzsche. 1982: 52).

A gramática da tragédia ática é o modelo de todo campo político das civilizações, o campo político trágico é, ao mesmo tempo, bárbaro e civilizado; ele se contrapõe ao campo político do mundo como teatro de comédia:

“devido a um milagre metafísico da <vontade> helênica, os dois instintos se encontrem e se abracem para, num complexo, gerarem a obra superior que será ao mesmo tempo apolínea e dionisíaca, - a tragédia ática”. (Nietzsche. 1982: 35).                 

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Marx não trabalha com a história como civilização e barbárie? Ele não vê a história como teatro do mundo de comédia? Para ele, o modo de ser psíquico não é um fenômeno da história?   A dialética da essência perversa do homem não existe?

No “O 18 do Brumário de Luís Bonaparte”, a história europeia é a experiência ou da tragédia ou da comédia, seguindo Hegel:

“Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta – os Brutos, os Graco, os Publícola, os tribunos, os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Say, Cousin, Royer-Collard, Benjamin Constant e Guizot; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. (Marx. 1974: 336).

Marx faz o conceito formal da gramática de sentido da história:

“De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua ´própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela”. (Idem: 335).

Produzir livremente na gramática da época da sociedade moderna burguesa requer esquecer sua história da dimensão do trágico, do modo de ser psíquico do perverso?

Segue Marx:

‘Mas por menos heroica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente  austeras da República romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seus entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica”. (Marx. 1974: 336).

Bem! o cesarismo de Napoleão III é a comédia histórica:

“Só depois de eliminar seu solene adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel de imperial, e sob a máscara napoleônica imagina ser o verdadeiro Napoleão, só aí ele se torna vítima de sua própria concepção do mundo, o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia e sim a a sua própria comédia pela história universal”. (Marx. 1974: 372-373).

Com o mundo político como teatro de comédia cesarista,  a História moderna se exauri?   

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A revolução moderna evoca em seu socorro a gramática do perverso do passado. Tal fato é história e não retórica determinado, em última instância, pelas relações técnicas de produção. Não se pode falar dos povos como se eles fossem sempre povos com história. Dou como exemplo, a experiência do Brasil. A história não se reduz à história como fato e artefato. No século XIX, a “história” brasileira obedece a lógica do simulacro da retórica como ideologia dominante, como viu Joaquim Nabuco:

“Que era todo trabalho que eles faziam nas câmaras, na imprensa, no governo, senão o revolvimento surdo e interior do solo, necessário para a germinação da planta? Eles, políticos, eram os vermes do chão; a especulação, a planta vivaz e florescente que brotava dos seus trabalhos contínuos e aparentemente estéreis; eles desanimavam, ela enriquecia. O próprio Imperador, o que fazia senão trabalhar sem descanso e sem interrupção em proveito dela, que se confundia com o progresso material, intelectual e moral do país? Só ela medrava, invadia, e dominava tudo, em torno dele; reduzia a política, o parlamento, o governo, a um simulacro, ignorante da sua verdadeira função; utilizava todo o aparelho político para fabricar a sua riqueza nômade e fortuita, que às vezes durava tanto quanto uma legislatura e logo decaía, senão do seu fausto, pelo menos do seu porte e altivez “. (Nabuco: 988).

A “história” do Brasil não corresponde aos conceitos de história de Heródoto, Nietzsche ou da ciência política materialista. As Constituições a partir de 1824 foram meras cópias literárias da Europa e EUA, meros efeitos de retórica em um povo sem história. Um povo retórico aparece depois da Constituição de 1988, que é retórica, mas é também história. O período dos governos do PT são uma etapa da vida política pela lógica retórica do simulacro de simulação. (Baudrillard. 1981: 177). A estrutura de dominação retórica-1988 acolheu o fascismo em versão tupiniquim. Como a cultura de massa é retórica, o jornalismo normaliza o fascismo. Tal fenômeno cabe em uma frase: 47% da população diz na soberania popular: “Se há governo, sou contra”.

Em 2023, começou o novo governo de Lula em uma conjuntura mundial de revolução barroca dentro da ordem do Estado mercantilista:

Jean Pierre Faye fala da tela gramatical narrativa de Marx: ‘De te fabula narratur! (o relato aqui é sobre ti!’. (Faye: 150). A tela narrativa barroca da atualidade é uma fabricação da China. Mao Zedung teceu a dialética da conciliação barroca de capitalismo e socialismo como mercantilismo do capital asiático continuada por Xi Jinping. Tal capitalismo chinês é o mercantilismo do capital barroco”. (Bandeira da Silveira. 2024ª: cap. 3, parte 3).

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A globalização liberal pós-moderna foi uma espécie de fim da história hegeliano. Com o ocaso dela, a história retoma um curso que agora vai aparecendo com gramática da história. Nessa, a história do Estado-nação mercantilista do século 21 ainda não alcançou a consciência dos povos:

“No mercantilismo capitalista, se desfaz a lógica do fim do Estado e da destruição da classe dirigente. O processo de destruição da gramática social nacional é contido”.

“A China vem servindo como paradigma de uma classe dirigente e de Estado nacional como fenômenos do mercantilismo capitalista. Joe Biden tenta reverter a lógica supracitada do semiocapitalismo de Donald Trump, mas parece fracassar”.

O Brasil é um modelo de país subdesenvolvido com indústria tradicional que se situa na periferia do mercantilismo capitalista. O mercantilismo capitalista das multinacionais da comunicação invade o país e assume uma posição equivalente ao da multinacional pré-semiocapitalismo. Há uma adaptação da multinacional à gramática do subdesenvolvimento que acaba existindo como uma multinacional subdesenvolvida”. (Bandeira da Silveira. 2021: cap. 2).

Elen Musk se aliou ao fascismo brasileira e faz ataques ao STF, a corte suprema brasileira. Musk age como um chefe de um Estado feudal cibernético do dominante americano que trata o poder brasileiro como poder político de uma republiqueta de bananas. O STF reagiu e quer transformar as Big Techs em aparelho ditatorial do perverso no mundo virtual. Assim, o STF que já apareceu (na luta contra o fascismo) como defesa radical da democracia 1988 desliza para o campo da ditadura 1964 do general Golbery do Couto e Silva.

O governo Lula não foi capaz de entrar na história mundial do Estado mercantilista de hoje. Ele é prisioneiro de um campo de ideologias econômicas do século XX como o desenvolvimentismo econômico do professor Belluzo, conselheiro do governo de Lula.

O Congresso se tornou uma partidocracia ditatorial corrupta no uso da mais-valia pública ou fiscal ou dinheiro público. Trata-se de uma situação escandalosa que desintegra de vez a moralidade pública. Ao permanecer em atraso em relação à história do Estado mercantilista mundial, o Brasil se vê diante de uma experiência inédita, pois ao Estado mercantilista/liberal corresponde uma nova gramática de democracia, que inexiste, entre nós:

“O domínio da maioria, característico da democracia, distingue-se de qualquer outro tipo de domínio não só porque, segunda a sua essência mais íntima, pressupõe por definição uma oposição – a minoria – mas também porque reconhece politicamente tal oposição e a protege com os direitos e liberdades fundamentais. (Kelsen: 106)”.

“Na democracia pós-moderna, um partido mafioso da meia-noite da superfície profunda do Ocidente se constitui como vontade política de desintegrar a democracia, se aproveitando do ocaso dessa forma de tela gramatical pós-moderna. A nova moderna democracia se choca com o poder pós-moderno mafioso. Daí surge a crise catastrófica entre pós-modernidade cesarista/tirânica e a nova moderna democracia”. (Bandeira da Silveira. 2024b: 418).

O que o Brasil faz é fabricar um Estado mafioso no lugar do Estado mercantilista/liberal que vai além do mercantilismo capitalista, pois, se apresenta com um Estado mercantilista feudal, seja do dominante (EUA), seja do dominado: China.     

 

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Mundialização do mercantilismo capitalista. EUA: amazon, 2021

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Revolução barroca dentro da ordem. EUA: amazon, 2024a

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Ciência política materialista. EUA: amazon, 2024b

BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981

DANTE ALIGHIERI. Da monarquia. Vida nova. SP: Martin Claret, 2003

ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. RJ: Civilização Brasileira, 1974

HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e interesse. RJ: Zahar, 1982

HERODOTO. História. Brasília: UNB, 1’988

NIETZSCHE. La naissance de la tragédie. Paris: Gallimard, 1977

NIETZSCHE. Origem da tragédia. Lisboa: Guimarães, 1982

MARX. Os pensadores. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974

NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. Volume 2. RJ: Topbooks, 1997

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

"Antônio e Cleópatra" - cesarismo e mundo

 

José Paulo 

O campo político cesarista é associado ao nome de Júlio César. O cesarismo faz assurgir a grande ratazana perversa da história mundial; é um campo hiperbólico de gosto (Bloom: 682), isto é, da estética do discurso político do perverso. Júlio César é um efeito do campo cesarista do perverso hiperbólico?  Júlio é um homem doente, fraco em seu corpo real> isto não quer dizer nada para uma Roma dramática que o toma como um deus cheio de vida, exuberantemente nietzschiano? 

Cássio salva Júlio desmaiado de se afogar no Tibre. E mais ainda:

Cássio. - “e o homem se tornou agora um deus e Cássio não passa de um miserável criatura que deve inclinar-se humildemente, quando César se digna fazer-lhe uma ligeira saudação! Quando esteve na Espanha, teve febres e quando o acesso o acometia, notei como ele tremia. É verdade, esse deus tremia! A cor lhe fugira dos lábios covardes e os mesmos olhos, cujo domínio atemorizava o mundo, tinham perdido o brilho. Eu o ouvi gemer, sim, e essa mesma língua que ordena aos romanos que o observam e escrevam em livros os discursos que pronuncia, ai! Gritava: ‘Daime alguma coisa para beber. Titínio’!’. Do mesmo modo que uma menina doente. Pelos deuses! Não posso compreender como um homem de constituição tão fraca possa ter em suas mãos o frêmito do mundo majestoso e sozinho carregar a palma! (clamores. Fanfarras)”. (Shakespeare. “Júlio...”: 423).

Em qual filosofia encontra a gramática de sentido do mundo cesarista?

Gramsci fala do cesarismo progressivo e regressivo. César e napoleão Bonaparte são progressivo e Bismark e Napoleão III regressivo (Gramsci. V. 3: 1619). O regressivo é o sentido imaginário:

“No cristianismo, nem a moral nem a religião se acham em contato com um ponto sequer da realidade. Só causas imaginárias [<Deus>, <alma> , <eu. <espirito>, <o livre arbítrio> - ou também o <não livre>]; são efeitos imaginários [<pecado> <salvação> , <graça>, < castigo>, <perdão dos pecados>. Uma relação entre seres imaginários [<Deus>, <espíritos>, <almas>; uma ciência natural imaginária [antropocêntrica; uma falta absoluta de conceito das causas naturais]; uma psicologia imaginária [só erros próprios, interpretações de sentimentos agradáveis, por exemplo dos estados do nervus sympathicus com o auxílio da linguagem figurada da idiossincrasia religiosa-moral, - <arrependimento>, <remorso> < tentação do diabo>, <a presença de Deus>; uma teologia imaginária [o reino de Deus>; <o juízo final>, <a vida eterna>]. Este mundo de ficções puras distingue-se, com muita desvantagem para ele, do mundo dos sonhos, em que este reflete a realidade, ao passo que o outro não faz mais do que falseá-la, desprezá-la e negá-la”. (Nietzche. 1974:26).

Não sentido imaginário a percepção do campo cesarista vem do sentido imaginário como progressivo e regressivo. Porém, na gramática de sentido progressivo é homem político e regressivo ratazana perversa.       

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A suspeita de que o grande homem quer desintegrar a forma de governo republicana e pôr no lugar a ditadura do Um é o sentido imaginário <ovo da serpente>:

“Bruto. – O mesmo pode acontecer com César. Logo, antes que ele assim faça, precisamos agir para que isso não aconteça. E como os motivos de queixa que temos contra ele não oferecem cor plausível, visto de quem se trata, vamos dar-lhe esta forma, dizendo que se for aumentado o que já é, surgirão estas e aquelas tiranias; e assim deve ser considerado como o ovo da serpente que, incubado, poderia tornar-se perigoso, como todos os de sua espécie. Logo, é preciso que o matemos ainda na casca”. (Shakespeare. Júlio...: 431)

Cícero é uma personagem do “Júlio César”. Para ele a ratazana perversa política não existe, portanto, Júlio não é uma ratazana perversa de desintegração da República, pois ele é o maître do sentido imaginário do campo político romano:

“V. Com efeito, não devemos ouvir os subterfúgios que empregam os que pretendem gozar facilmente de uma vida ociosa, embora digam que acarreta miséria e perigo auxiliar a República., rodeada de pessoas incapazes de realizar o bem, com as quais a comparação ´humilhante, em cujo combate há risco, principalmente diante da multidão revoltada, pelo que não é prudente toma as rédeas quando não se podem conter os ímpetos desordenados do populacho, nem é generoso expor-se, na luta com adversários impuros; a injúrias ou ultrajes que a sensatez não tolera: como se os homens de grande virtude, animosos e dotados de espírito vigoroso, pudessem ambicionar o poder com o objetivo mais legítimo que o de sacudir o jugo dos maus, evitando que estes despedacem a República, que um dia os homens honestos poderiam desejar, mas então inutilmente, erguer de suas ruínas”. (Cícero: 148-149).

O sentido imaginário tem na retórica de Cícero um modelo eterno de discurso político que alcança a nossa atualidade como ersatz da imagem do homem político em geral.    

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A gramática de sentido do cesarismo faz um contraponto com a gramática de sentido do cristianismo:

“O que é bom? – tudo quanto aumenta no homem o sentimento de poder, a vontade para o poder, o próprio poder”.

“O que é mau? – Tudo quanto procede da fraqueza”.

O que é felicidade? – O sentimento com que o poder se engrandece, - com que se vence uma resistência. “

‘Não contentamento, senão mais poder,; não paz antes de tudo, senão guerra; não virtude, senão valor, virtude (no estilo do renascimento); virtú, virtude desprovida de impostura”.

“Pereçam os fracos e os fracassados: primeiro princípio do nosso amor ao homem. E até cumpre ajuda-los a desaparecer”.

“O que é mais nocivo do que qualquer vício? A piedade da acção com os fracassados e com os fracos: - o cristianismo”. (Nietzsche. 1916: 14-15).

A ratazana perversa é a política do mais-gozar, mais poder; o homem político é o ersatz do homem cristão:

A filosofia do hiperbólico é a gramática de sentido da ratazana perversa: “Olhemo-nos frente a frente. Somos hiperbóreos, e sabemos muito bem como vivemos separadamente” (Nietzsche. 1916: 13) do homem comum e do homem político dois fenômenos do homem cristão:

“Não se diz < o nada> põe-se em seu lugar <o mais além> ou antes <Deus> ou <a vida verdadeira> ou antes o nirvana, a salvação, a bem aventurança... Esta inocente retórica, originária do reino da idiossincrasia religioso-moral, parecer4á depois muito menos inocente, se se compreender que tendência se embuça neste caso na capa de palavras sublimes; a tendência inimiga da vida. Schopenhauer era inimigo da vida, por isso a piedade converteu-se para ele em uma virtude...Sabe-se que Aristóteles via na piedade um estado enfermiço e perigoso, que se fazia bem em remediar de vez em quando por meio de um purgante, e considerava a tragédia como purga. Para proteger o instinto da vida, seria necessário com efeito procurar um meio de dar um golpe a uma acumulação de piedade como representa o caso Schopenhauer (e desgraçadamente também o de toda a nossa décadence literária e artística, desse S. Petesburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), além de fazer arrebentar ...Nada é tão doente, no meio de nosso modernismo doentio, como a piedade cristã. Sermos médico, sermos implacável neste caso, dirigirmos o escalpelo, isto não cabe, esta é a nossa espécie de amor ao homem, por ela nós somos filósofos, nós os hiperbóreos”. (Nietzsche. 2016: 19).  

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A peça “Antônio e Cleópatra” é sobre o campo político cesarista. As   personagens principais são os significantes universais desse campo. De início, Antônio e Cleópatra são o homem político carismático, a fêmea política carismática; eles habitam a dimensão da mitologia do real?

“Mesmo se a história assim o permitisse, como assimilaríamos a noção de Antônio e Cleópatra como imperador e imperatriz, primeiro do Oriente, mais tarde do ‘mundo’? Se assim fosse, não haveria peça, e Shakespeare exulta com as oportunidades que lhe são oferecidas p0elos protagonistas, titânicos, exuberantes, cheios de vida, indiferentes às consequências d seu glamour”. (Bloom: 684).

Se o casal fosse o significante mestre do campo político cesarista não haveria peça. O significante mestre é Otávio César, a grande besta (Shakespeare. “Antônio...’:  da política romana, isto é, a ratazana perversa sublime/soberana do cesarismo:

‘Cleópatra. – Mas vamos escutá-las, Antônio. Quem sabe se Fúlvia não está irritada? Ou quem sabe se o quase imberbe César não vos envia ordens soberanas: ’Fazei isto ou aquilo; apodera-te desse reino, liberta aquele. Obedece a nossas ordens ou terás de arrepender-te’”. (idem: 796).    

A fêmea política é cínica verdadeira:

Enobarbo.- As demais mulheres saciam os apetites a que dão pasto, ela, porém quanto mais a fome satisfaz, mais a desperta, pois infunde nas mais vis coisas tal atrativo que os santos sacerdotes  a abençoam no momento de suas devassidões”. (idem: 814-815).

Cleópatra não é o amor cortes de Antônio; ela é o fetiche perverso, ela traz Antônio para o campo das paixões do grande homem político perverso; o casal é o significante da comunidade psíquica do significante do perverso Oriente/Ocidente:

“Antônio. – Que se apresente. Preciso partir estes poderosos laços egípcios, para que esta paixão extravagante não me perca”.

[...]

Antônio. – Partindo, ela me fez um bem; esta mão, que a repelia, gostaria de reconquistá-la...É preciso romper com esta rainha fascinadora. Dez mil calamidades, mais do que os males que conheço, estão sendo incubados por minha indolência”. (Idem; 800).    

: Antônio não sente dor física? Ele é um falso perverso? Antônio não chora a morte de sua esposa romana Fúlvia. Verdadeira perversa do teatro mundo, Cleópatra fica perplexa:

Cleópatra. – Oh! falsíssimo amor! Onde estão os vasos sagrados que devíeis encher com as lágrimas da vossa dor? Estou vendo agora, pela morte de Fúlvia, como será recebido a minha”. (Idem: 803).

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A relação entre comunidade psíquica de significante perverso e o mundo cesarista remete para modos de ser psíquicos:

‘Enobarbo. – Elogiarei qualquer homem que me elogia, embora não possa ser negado o que fiz na terra.

Menas. – Nem o que eu fiz no mar.

Enobarbo. – Para vossa própria segurança podeis negar alguma coisa, estou certo. Fostes um grande ladrão no mar.

Menas.- E vós da terra. (Shakespeare. (“Antônio...”: 822).

Enobarbo e Menas são os pequenos homens políticos falsos cínicos, pois, desconsideram máscaras ideológicas na definição do cinismo.

Enobarbo. – Renego semelhante serviço em terr. Apertai minha mão, Menas. Se nossos olhos tivessem autoridade, prenderiam aqui dois ladrões que se abraçam.

Menas. – Os rostos de todos os homens são sinceros, sejam o que forem suas mãos.

Enobarbo. – Porém a mulher bela nunca tem o rosto sincero.

Menas. – Sem querer ser maledicente, elas roubam corações. (idem: 822).

A fêmea bela não é sincera, não deixa transparecer sentidos no rosto. Ela é a verdadeira perversa na qual o rosto é o mundo como teatro de comédia. 

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Marco Antônio, Octávio César e Lépido são os triúnviros proprietários militares do mundo. Lépido é um significante interessante pois ele ´o pequeno grande homem político comum em uma posição de poder soberano:

“Segundo Servidor. – Lépido já está muito vermelho.

Primeiro Servidor. – Fizeram que ele bebesse todos os restos das garrafas.

Segundo Servidor. – Assim que a discussão piora, grita logo: ’Basta!’, Reconcilia-os com suas exortações, enquanto ele se reconcilia com a bebida.  

Primeiro Servidor. -  Mas uma guerra ainda se levanta entre ele e sua prudência.

Segundo Servidor. – Ora, aí está o que é ter o nome metido na sociedade dos grandes homens. Preferiria ter uma vara que me prestasse algum serviço, a uma partazana que não conseguisse levantar.

Primeiro Servidor. – Ser convidado para as altas esferas, e não ser visato nela mover-se, seria o mesmo que ter buracos no lugar onde deveriam estar os olhos, o que é um lamentável desastre para as faces”. (Idem: 823).

O que é Pompeu? Uma máquina de guerra romana? Ele poderia ser uma grande ratazana perversa militar capaz de se tornar o senhor do campo cesarista?  Ele se encontra com os triúnviros:

Menas. – Vou repetir. Quereis ser senhor de todo o universo?   

[...]

Pompeu.- De que maneira?

Menas. – Esses três pilares do mundo, esses competidores, estão em vosso navio. Deixai-me cortar o cabo e, quando estivermos em alto mar, saltemos em cima deles e o mundo vos pertencerá.

Pompeu. – Ah! Devias ter feito isto e não falado. De minha parte, seria uma vilania; da tua, teria sido um bom serviço. Deves saber que não é meu interesse que serve de guia à minha honra, porém a honra serve de guia ao meu interesse. Arrepende-te por haver deixado tua língua atraiçoar-te a intenção. Se essa coisa tivesse sido feita sem que eu soubesse, achá-la-ia bem-feita quando soubesse, porém, agora, devo condená-la. Desiste e vamos beber”. (Shakespeare. ‘Antônio...”: 824-825).   

Pompeu vive sob aparências de semblância Ele é o grande homem político ideológico que vê no cinismo do amigo um instrumento secreto para ele se tornar o senhor do universo, sem que o mundo saiba que ele não é um homem honrado, que ele é um grande patife romano maquiavélico.    

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Amigo de Sexto Pompeu, Menas queria transformar Pompeu na grande ratazana perversa do cesarismo. Pompeu pertenceria a comunidade psíquica do significante ratazana cesarista. O princípio de prazer da festa assinala a diferença entre Pompeu e César:

“Pompeu. - Esta festa ainda não é igual a uma de Alexandria.

Antônio. – Começa a assemelhar-se. Toquemos nossas taças. À saúde de César.

César. – Poderia perfeitamente passar sem ela. É um trabalho monstruoso. Quanto mais lavo meu cérebro, tanto mais ele se turva”. (Idem: 825).

Pompeu seria uma ratazana perversa grotesca do princípio de prazer e César aparece como a ratazana perversa sublime pelo princípio do mais-gozar, do cesarismo, como excedente do Estado, que rege a mais-valia pública, fiscal, do Estado lacaniano romano. (Bandeira da Silveira. 2022: cap. 16). 

César. – Já basta, não é? Boa noite, Pompeu. Permiti que Bom irmão, permiti que vos leve. Esta frivolidade causa vergonha a nossas graves preocupações. Amáveis senhores, separemo-nos. Estais vendo como nossas faces estão incendiadas? O vigoroso Eno barbo é mais fraco do que o vinho e minha própria língua se embaraça naquilo que fala. Esta mascarada selvagem quase transformou todos nós em seres grotescos. Que necessidade temos de mais palavras?”. (Shakespeare; “Antônio...”: 826).    

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O sonho de Cleópatra com Antônio morto abre as comportas da gramática de sentido da comunidade psíquica de significante cesarista sublime Ocidente/Oriente, Roma/Alexandria:

“Cleópatra. – Suas pernas abarcavam o oceano. Seu braço, levantado, servia de cimeira para o mundo. Dirigindo-se aos amigos, sua voz era harmoniosa como a música das esferas, mas quando queria dominar e fazer tremer o globo, era como o estrondo do trovão. Quanto à generosidade, não conhecia o inverno: era um perpétuo outono, sempre mais fértil à medida que era mais colhido. Seus deleites pareciam os do delfim, mostrando o dorso acima do elemento em que vive. Em sua comitiva, iam reis portadores de diademas e de coroas. Reinos e ilhas caíam de seus bolsos como moedas de prata”. (Shakespeare. “Antônio...”: 864).

Com Antônio morto, a peça se desenvolve a partir do agir estratégico (Mccarthy:333) de Cleópatra contra César. Cesar quer fazer a entrada triunfal em Roma com Cleópatra como súdita do império romano Ocidente/Oriente. Cleópatra quer simular, dissimular, mentir, enganar César (Bloom: 694). Cleópatra tem a retórica histriônica, hiperbólica da grande fêmea verdadeiramente perversa em vida. (Bloom: 692,696). Com o suicídio triunfal de Cleópatra o cesarismo deixaria de ser a gramática de sentido do modo de ser psíquico Roma/Alexandria. O Estado lacaniano cesarista deixa de ser a obra de arte que seria com Antônio:

“Cleópatra. – Porém, se existiu ou7 possa ter existido algum dia semelhante pessoa, esse homem está além do que possam imaginar os sonhos. Falta à natureza matéria para competir, em formas estranhas, com a imaginação. Entretanto, imaginar que um Antônio era uma obra-prima em que a natureza superava a imaginação, reduz a nada as criações do pensamento”. (Shakespeare. “Antônio...”: 864).  

A imagem da crueldade de César se estabelece na relação da resistência do mundo ao poder cesarista dele:

“César. – Ficai sabendo, Cleópatra, que estamos muito mais dispostos a desculpar vossas faltas do que as castigá-las. Se vós conformardes com nossas intenções, que são quanto a vós das mais benévolas, encontrareis neste caminho um benefício; porém, se tratais, continuando a conduta de Antônio, de fazer que me acusem de crueldade, vós mesma vos privareis de minha benevolência e estregareis vossos filhos à ruína, de que vós preservarei se vos apoiardes em mim. Despeço-me de vós”. (Shakespeare. “Antônio...”: 865).

A real ratazana perversa é relação social do indivíduo soberano cesarista com o mundo. O cesarismo é o significante mestre que cria e recria a história mundial Oriente e Ocidente.  

 

 

BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Barroco, tela gramatical, ensaios. EUA: amazon, 2022

BLOOM, Harold. Shakespeare. A invenção do humano. RJ: Objetiva, 2001

BOURDIEU, Pierre. Les régles de l’art. Paris: Seuil, 1992

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. SP: Companhia das Letras, 1996

CASSIN, Barbara. Ensaios sofísticos. SP: Siciliano, 1990

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MAcCARTHY, Thomas. La teoría de Jurgen Habermas. Madrid: Tecnos, 1992

NIETZSCHE. O ANTI-CRISTO. Lisboa: Guimarães, 1916

NIETZSCHE. L”Antéchrist. Suive de Ecce Hommo. Paris: Gallimard, 1974

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ROSSET, Clément. A antinatureza. RJ: Espaço e Tempo, 1989

SHAKESPEARE, William. Obra Completa. V. 1. Júlio César e Antônio e Cleópatra. RJ: Nova Aguilar, 1988  

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ZIZEK, Slavoj. Le plus sublime des hysteriques. Hegel passe.  Paris: Point Hors Ligne, 1988