José Paulo
Walter Benjamin fala do narrar como forma de comunicação de
uma arte artesanal desintegrada pela evolução das relações técnicas de produção
no campo político estético, como o saber transmitido de boca a boca, de ouvido
a ouvido de uma experiencia individual ou coletiva (Benjamin: 37, 31, 32
etc.). 0 cronista é o narrador da
história, e ele sobrevive ao diluvio que afogou o narrador no Brasil de um
Nelson Rodrigues barroco/iluminista. Nelson fez do narrar uma gramática de
sentido tátil da vida carioca como vida do homem, como vida da espécie humana
da história das gramáticas de sentido da civilização policiada.
Starobinski estudou o texto de Montaigne como
barroco-renascentista. (Starobinski: 294). Ele diz que este fez pendente com
Shakespeare para criar o conceito ou imagem textual de que o mundo é um teatro
de comédia. Ele diz que a imagem desse conceito já aparece antes de Platão:
“Montaigne, com toques dispersos e acumulados, desenvolve um
velho tema, anterior a Platão, o qual lhe deu a dimensão do mito; explorado
pelos estoicos e pelos céticos; reto0mado por Beócio; amplamente ilustrado na
Idade média, especialmente por João Salisbury; argumento inesgotável dos
moralistas e dos pregadores: o mundo é um teatro, os homens aí sustentam
papéis, declamam e gesticulam como atores – até que a morte os expulse da cena.
Tema utilizado ora para exaltar a onipotência de um Deus a uma só vez autor,
encenador, e espectador, ora para denunciar as vãs ficções em que os homens se
deixam apanhar. Montaigne não se abstém de citar a frase atribuída a Petrônio,
Mundus universus exerct histrioniam, que encontrará seu eco nas paredes do
Globe Theattre e na boca de Jacques, o Melancólico (As you like it): o mundo inteiro representa uma
comédia, o mundo inteiro é um teatro”. (Starobinski: 11).
O campo político é uma plurivocidade de gramáticas de sentido
de tela teatral da comédia humana europeia dos príncipes, papas, sacerdotes,
aristocracia, burguesia, camponeses, proletários etc.
2
Em Freud, a perversão é gramática de sentido da pulsão sexual
normal e patológica. O fetichismo é a gramática de sentido da comunidade
psíquica de significante do perverso:
“O ponto de contato com o normal é proporcionado pela
supervalorização psicologicamente essencial do objeto sexual, que
inevitavelmente se estende a tudo que com ele se associe. Certo grau de
fetichismo, portanto, está habitualmente presente no amor normal, especialmente
naqueles seus estágios em que o objetivo sexual normal parece inatingível ou
sua consumação é impedida”. (Freud. v. 7: 155).
Se o fetichismo é a essência do perverso no ser humano,
deve-se partir daí para se pensar o mundo como teatro de comédia barroca?
Freud:
“O que se coloca em lugar do objeto sexual é alguma parte do
corpo (tal como o pé ou os cabelos) que é, em geral, muito inapropriada para
finalidades sexuais, ou algum objeto inanimado que tenha relação atribuível com
a pessoa que ele substitui e, de preferência, com a sexualidade dessa pessoa
(por ex. uma peça de vestuário ou de roupa íntima). Tais substitutos são, com
alguma justiça, assemelhados aos fetiches em que os selvagens acreditam estarem
incorporados aos seus deuses”. (Freud. V. 7: 154-155).
Fetiches integrados aos deuses do mundo como teatro são o
governante: o rei, o príncipe, o papa, o sacerdote, a aristocracia, a
burguesia, o camponês...O fetiche pode estar no mais gozar do olhar - da
escopofilia das classes baixas) – da queda do governante para regiões baixas do
corpo humano. Na gramática de sentido pulsional sexual freudiana:
“É usual para a maioria das pessoas normais demorar-se um
pouco no objetivo sexual intermediário de um olhar que tem vestígios sexuais;
com efeito, isto lhes oferece uma possibilidade de orientar uma parte de sua
libido para objetivos artísticos mais elevados. Por outro lado, este prazer de
olhar [escopofilia] torna-se uma perversão (a) se se restringe exclusivamente
aos órgãos sexuais genitais, ou (b) se estiver associado à anulação da
repugnância (como no caso os voyeurs ou pessoas que olham para funções excretórias,
ou (c) se, ao invés de ser preparatório para o objetivo sexual normal, ele o
suplanta”. (Freud. v. 7: 158). Na gramática de sentido freudiana a escopofilia
é associada ao desejo como prazer de olhar. No teatro do mundo como comédia
humana, a escopofilia é vinculada ao mais gozar do fetiche. O palco é a
representação do fetiche teatral [o sublime governante lançado nos jogos de
significante-semblância do baixo corporal] - que aparece como o mais gozar do
auditório.
3
O homem grego da antiguidade era perverso? Por outro lado, a
filosofia é a gramática de sentido de um discurso que não fosse do perverso?
Freud:
“Se isto não fosse verdade, como então explicar o fato de que
os prostitutos masculinos, que se oferecem aos invertidos – tanto hoje quanto
na antiguidade – imitam as mulheres em toda sua aparência externa, na
vestimenta e nas atitudes?
Hannah Arend fala das aparências de semblância autêntica e
inautêntica. (Arendt: 31). O Sol é o
significante=semblante autêntico para o olhar do homem que acompanha o nascer
do Sol e o pôr do Sol. A ficção literária da fada Morgana ou do Saci-Pererê pode
ser semblância inautêntica. O prostituto homem é semblância inautêntica do
cinismo da percepção? Sabe que é homem, mas faz de conta que é mimeses de
fêmea?
O teatro do prostituto para sua audiência de homens é
essencialmente um discurso da comunidade psíquica de significante do perverso:
“Tal imitação, de outro modo, se chocaria, inevitavelmente,
com o ideal dos invertidos. É claro que, na Grécia, onde a maioria dos homens
mais másculos se incluía entre os invertidos, o que excitava o amor de um
homem, não era o caráter masculino do rapaz, mas suas semelhanças físicas com a
mulher e suas qualidades mentais femininas – sua timidez, sua modéstia, e sua
necessidade de ser educado e de assistência. Logo que um menino se tornava
homem, deixava de ser objeto sexual para os homens, e ele também, talvez, se
tornasse um amante de rapazes. Neste caso, portanto, como em vários outros, o
objeto sexual não é alguém do
mesmo sexo, mas sim alguém que combine os caracteres dos dois sexos; existe,
portanto, uma conciliação entre um impulso que aspira por um homem e um que
aspira por uma mulher, ao mesmo tempo em que permanece condição primordial que
o corpo do objeto (isto é, os órgãos sexuais genitais) seja masculino. Assim, o
objeto sexual é uma espécie de reflexo da própria natureza bissexual do indivíduo”.
(Freud. v. 7: 145).
A natureza bissexual é a essência do homem da civilização com
recalque, civilização policiada. A essência é bissexual e, no entanto, ela cria
e recria efeitos de gramática de sentido do mundo fenomênico do aparecer como
teatro da comédia humana, que é a comunidade psíquica de significante:
neurótico, psicótico, perverso – como telas [gramatical, de gosto, ideológica
...] na superfície do campo político da civilização do recalque.
No final de sua vida, Freud insistiu:
“É bem sabido que em todos os períodos houve, como ainda há,
pessoas que podem tomar como objetos sexuais membros de seu próprio sexo, bem
como do sexo oposto, sem que uma das inclinações interfira na outra. Chamamos
tais pessoas de bissexuais e aceitamos sua existência sem sentir muita surpresa
sobre ela. Viemos a saber, contudo, que todo ser humano é bissexual nesse
sentido e que sua libido se distribui, quer de maneira manifesta, quer de
maneira latente, por objetos de ambos os sexos”. (Freud. v. 23: 277).
A gramática de sentido freudiana é na aparência de semblância
um reducionismo da vida humana da civilização do recalque ao
significante-semblante sexual. Todavia, a gramática de sentido freudiana pode
ser lida como dialética materialista, como lógica paraconsistente (Newton da
Costa; 2008) ? Ora, a essência bissexual
o home é e não é homem, ao mesmo tempo. A mesma coisa se aplica a mulher. Como
significante-semblante do campo dos fenômenos o homem pode ser e não ser
perverso, ser perverso patológico e normal, simultaneamente etc. Tal fato
define o homem como tela do mundo como teatro da comédia humana...
4
O primeiro modelo de narrar a experiencia do campo político é
de Heródoto. Starobinski fala do campo política de Montaigne:
“A política se define em seu princípio, como ostentação,
astúcia, artimanha – defesas bastante legítimas contra as ciladas dos inimigos
e a inconstância da fortuna. ‘A própria inocência não poderia, em nossa época,
dispensar a dissimulação, nem negociar sem mentir’. Assim, a mentira se esconde
tão pouco que se torna figura de convenção universalmente aceita. A máscara e a
duplicidade são a ‘forma’ comum, a ‘maneira’ que cada um adota – o subtendido
erigido em regra geral”. (Starobinski: 13).
Montaigne era um estudioso das telas [de gramática, de gosto,
de ideologia] do campo político da antiguidade. Heródoto criou o modelo de
narrar a experiencia do campo político da civilização com recalque:
“Lesskov debruçou sobre as escolas dos antigos. O primeiro
narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de sua obra “Histórias”
há uma história sobre Psamenita que está cheia de ensinamentos. Quando o rei
egípcio Psamenita foi derrotado e feito prisioneiro pelo ri persa Cambises,
este decidiu humilhá-lo. Para isso ordenou que Psamenita fosse trazido para a
rua, em que desfilaria o cortejo triunfal persa. E mais ainda, organizou o
cortejo de forma que o prisioneiro visse passar a sua filha na condição d
criada, encaminhando-se para o poço com um cântaro. Enquanto todos os egípcios
protestavam e se lamentavam perante o espetáculo, Psamenita mantinha-se
silencioso e imóvel com os olhos postos no chão; a assim continuou mesmo
quando, pouco depois, viu seu filho ser levado ao cortejo da execução. Mas quando
reconheceu, na fila dos cativos, um pobre velho seu criado, então bateu com os
punhos na cabeça em sinal do mais profundo desespero. Esta história mostra-nos o
que é a verdadeira narrativa. A informação só é válida enquanto atualidade. só
vive nesse momento, entregando-se-lhe completamente, e é nesse preciso momento
que tem que ser esclarecida. A narrativa é muito diferente. ; não se gasta. Conserva
toda a sua força e pode ainda ser explorada muito tempo depois. Vemos que
Montaigne retoma o tema do rei egípcio e pergunta a si ´próprio: <Porque é
que ele só lamenta quando vê o criado? A isto Montaigne responde : <Porque
estava já tão cheio de tristeza, que aquele facto foi apenas a gota d água que
fez transbordar o copo>”. (Benjamin: 35).
A grandeza do rei derrotado e de sua família lançados na região
escura do abjeto da humilhação em plena luz solar da rua. Isso é o mais gozar
do rei vendedor.
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