quarta-feira, 6 de novembro de 2024

MONTAIGNE, FREUD

 

José Paulo 

 

Walter Benjamin fala do narrar como forma de comunicação de uma arte artesanal desintegrada pela evolução das relações técnicas de produção no campo político estético, como o saber transmitido de boca a boca, de ouvido a ouvido de uma experiencia individual ou coletiva (Benjamin: 37, 31, 32 etc.).   0 cronista é o narrador da história, e ele sobrevive ao diluvio que afogou o narrador no Brasil de um Nelson Rodrigues barroco/iluminista. Nelson fez do narrar uma gramática de sentido tátil da vida carioca como vida do homem, como vida da espécie humana da história das gramáticas de sentido da civilização policiada.

Starobinski estudou o texto de Montaigne como barroco-renascentista. (Starobinski: 294). Ele diz que este fez pendente com Shakespeare para criar o conceito ou imagem textual de que o mundo é um teatro de comédia. Ele diz que a imagem desse conceito já aparece antes de Platão:

“Montaigne, com toques dispersos e acumulados, desenvolve um velho tema, anterior a Platão, o qual lhe deu a dimensão do mito; explorado pelos estoicos e pelos céticos; reto0mado por Beócio; amplamente ilustrado na Idade média, especialmente por João Salisbury; argumento inesgotável dos moralistas e dos pregadores: o mundo é um teatro, os homens aí sustentam papéis, declamam e gesticulam como atores – até que a morte os expulse da cena. Tema utilizado ora para exaltar a onipotência de um Deus a uma só vez autor, encenador, e espectador, ora para denunciar as vãs ficções em que os homens se deixam apanhar. Montaigne não se abstém de citar a frase atribuída a Petrônio, Mundus universus exerct histrioniam, que encontrará seu eco nas paredes do Globe Theattre e na boca de Jacques, o Melancólico (As  you like it): o mundo inteiro representa uma comédia, o mundo inteiro é um teatro”. (Starobinski: 11).

O campo político é uma plurivocidade de gramáticas de sentido de tela teatral da comédia humana europeia dos príncipes, papas, sacerdotes, aristocracia, burguesia, camponeses, proletários etc.

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Em Freud, a perversão é gramática de sentido da pulsão sexual normal e patológica. O fetichismo é a gramática de sentido da comunidade psíquica de significante do perverso:

“O ponto de contato com o normal é proporcionado pela supervalorização psicologicamente essencial do objeto sexual, que inevitavelmente se estende a tudo que com ele se associe. Certo grau de fetichismo, portanto, está habitualmente presente no amor normal, especialmente naqueles seus estágios em que o objetivo sexual normal parece inatingível ou sua consumação é impedida”. (Freud. v. 7: 155).

Se o fetichismo é a essência do perverso no ser humano, deve-se partir daí para se pensar o mundo como teatro de comédia barroca?

Freud:

“O que se coloca em lugar do objeto sexual é alguma parte do corpo (tal como o pé ou os cabelos) que é, em geral, muito inapropriada para finalidades sexuais, ou algum objeto inanimado que tenha relação atribuível com a pessoa que ele substitui e, de preferência, com a sexualidade dessa pessoa (por ex. uma peça de vestuário ou de roupa íntima). Tais substitutos são, com alguma justiça, assemelhados aos fetiches em que os selvagens acreditam estarem incorporados aos seus deuses”. (Freud. V. 7: 154-155).

Fetiches integrados aos deuses do mundo como teatro são o governante: o rei, o príncipe, o papa, o sacerdote, a aristocracia, a burguesia, o camponês...O fetiche pode estar no mais gozar do olhar - da escopofilia das classes baixas) – da queda do governante para regiões baixas do corpo humano. Na gramática de sentido pulsional sexual freudiana:

“É usual para a maioria das pessoas normais demorar-se um pouco no objetivo sexual intermediário de um olhar que tem vestígios sexuais; com efeito, isto lhes oferece uma possibilidade de orientar uma parte de sua libido para objetivos artísticos mais elevados. Por outro lado, este prazer de olhar [escopofilia] torna-se uma perversão (a) se se restringe exclusivamente aos órgãos sexuais genitais, ou (b) se estiver associado à anulação da repugnância (como no caso os voyeurs ou pessoas que olham para funções excretórias, ou (c) se, ao invés de ser preparatório para o objetivo sexual normal, ele o suplanta”. (Freud. v. 7: 158). Na gramática de sentido freudiana a escopofilia é associada ao desejo como prazer de olhar. No teatro do mundo como comédia humana, a escopofilia é vinculada ao mais gozar do fetiche. O palco é a representação do fetiche teatral [o sublime governante lançado nos jogos de significante-semblância do baixo corporal] - que aparece como o mais gozar do auditório.       

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O homem grego da antiguidade era perverso? Por outro lado, a filosofia é a gramática de sentido de um discurso que não fosse do perverso?

Freud:

“Se isto não fosse verdade, como então explicar o fato de que os prostitutos masculinos, que se oferecem aos invertidos – tanto hoje quanto na antiguidade – imitam as mulheres em toda sua aparência externa, na vestimenta e nas atitudes?

Hannah Arend fala das aparências de semblância autêntica e inautêntica. (Arendt: 31).  O Sol é o significante=semblante autêntico para o olhar do homem que acompanha o nascer do Sol e o pôr do Sol. A ficção literária da fada Morgana ou do Saci-Pererê pode ser semblância inautêntica. O prostituto homem é semblância inautêntica do cinismo da percepção? Sabe que é homem, mas faz de conta que é mimeses de fêmea?

O teatro do prostituto para sua audiência de homens é essencialmente um discurso da comunidade psíquica de significante do perverso:

“Tal imitação, de outro modo, se chocaria, inevitavelmente, com o ideal dos invertidos. É claro que, na Grécia, onde a maioria dos homens mais másculos se incluía entre os invertidos, o que excitava o amor de um homem, não era o caráter masculino do rapaz, mas suas semelhanças físicas com a mulher e suas qualidades mentais femininas – sua timidez, sua modéstia, e sua necessidade de ser educado e de assistência. Logo que um menino se tornava homem, deixava de ser objeto sexual para os homens, e ele também, talvez, se tornasse um amante de rapazes. Neste caso, portanto, como em vários outros, o objeto sexual        não é alguém do mesmo sexo, mas sim alguém que combine os caracteres dos dois sexos; existe, portanto, uma conciliação entre um impulso que aspira por um homem e um que aspira por uma mulher, ao mesmo tempo em que permanece condição primordial que o corpo do objeto (isto é, os órgãos sexuais genitais) seja masculino. Assim, o objeto sexual é uma espécie de reflexo da própria natureza bissexual do indivíduo”. (Freud. v. 7: 145).

A natureza bissexual é a essência do homem da civilização com recalque, civilização policiada. A essência é bissexual e, no entanto, ela cria e recria efeitos de gramática de sentido do mundo fenomênico do aparecer como teatro da comédia humana, que é a comunidade psíquica de significante: neurótico, psicótico, perverso – como telas [gramatical, de gosto, ideológica ...] na superfície do campo político da civilização do recalque.

No final de sua vida, Freud insistiu:

“É bem sabido que em todos os períodos houve, como ainda há, pessoas que podem tomar como objetos sexuais membros de seu próprio sexo, bem como do sexo oposto, sem que uma das inclinações interfira na outra. Chamamos tais pessoas de bissexuais e aceitamos sua existência sem sentir muita surpresa sobre ela. Viemos a saber, contudo, que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se distribui, quer de maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os sexos”. (Freud. v. 23: 277).

A gramática de sentido freudiana é na aparência de semblância um reducionismo da vida humana da civilização do recalque ao significante-semblante sexual. Todavia, a gramática de sentido freudiana pode ser lida como dialética materialista, como lógica paraconsistente (Newton da Costa; 2008) ?  Ora, a essência bissexual o home é e não é homem, ao mesmo tempo. A mesma coisa se aplica a mulher. Como significante-semblante do campo dos fenômenos o homem pode ser e não ser perverso, ser perverso patológico e normal, simultaneamente etc. Tal fato define o homem como tela do mundo como teatro da comédia humana...

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O primeiro modelo de narrar a experiencia do campo político é de Heródoto. Starobinski fala do campo política de Montaigne:

“A política se define em seu princípio, como ostentação, astúcia, artimanha – defesas bastante legítimas contra as ciladas dos inimigos e a inconstância da fortuna. ‘A própria inocência não poderia, em nossa época, dispensar a dissimulação, nem negociar sem mentir’. Assim, a mentira se esconde tão pouco que se torna figura de convenção universalmente aceita. A máscara e a duplicidade são a ‘forma’ comum, a ‘maneira’ que cada um adota – o subtendido erigido em regra geral”. (Starobinski: 13).

Montaigne era um estudioso das telas [de gramática, de gosto, de ideologia] do campo político da antiguidade. Heródoto criou o modelo de narrar a experiencia do campo político da civilização com recalque:

“Lesskov debruçou sobre as escolas dos antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto. No capítulo XIV do terceiro livro de sua obra “Histórias” há uma história sobre Psamenita que está cheia de ensinamentos. Quando o rei egípcio Psamenita foi derrotado e feito prisioneiro pelo ri persa Cambises, este decidiu humilhá-lo. Para isso ordenou que Psamenita fosse trazido para a rua, em que desfilaria o cortejo triunfal persa. E mais ainda, organizou o cortejo de forma que o prisioneiro visse passar a sua filha na condição d criada, encaminhando-se para o poço com um cântaro. Enquanto todos os egípcios protestavam e se lamentavam perante o espetáculo, Psamenita mantinha-se silencioso e imóvel com os olhos postos no chão; a assim continuou mesmo quando, pouco depois, viu seu filho ser levado ao cortejo da execução. Mas quando reconheceu, na fila dos cativos, um pobre velho seu criado, então bateu com os punhos na cabeça em sinal do mais profundo desespero. Esta história mostra-nos o que é a verdadeira narrativa. A informação só é válida enquanto atualidade. só vive nesse momento, entregando-se-lhe completamente, e é nesse preciso momento que tem que ser esclarecida. A narrativa é muito diferente. ; não se gasta. Conserva toda a sua força e pode ainda ser explorada muito tempo depois. Vemos que Montaigne retoma o tema do rei egípcio e pergunta a si ´próprio: <Porque é que ele só lamenta quando vê o criado? A isto Montaigne responde : <Porque estava já tão cheio de tristeza, que aquele facto foi apenas a gota d água que fez transbordar o copo>”. (Benjamin: 35).

A grandeza do rei derrotado e de sua família lançados na região escura do abjeto da humilhação em plena luz solar da rua. Isso é o mais gozar do rei vendedor.        

            

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