terça-feira, 31 de dezembro de 2019
domingo, 29 de dezembro de 2019
FOUCAULT e as gramáticas do capitalismo globalizado
José Paulo
GRAMÁTICAS
DA ECONOMIA [da política] E ENUNCIADO
A história
acabada articula-se como campo de enunciado, gramática da sociedade e/ou da
política, acaso e contingência.
O campo de enunciado põe a gramática em relação com o campo
de objetos, campo de poderes/saberes, posições subjetivas no campo de sujeitos.
O campo de exercício da função enunciativa aloja o enunciado nos espaços
supracitados em que são considerados, utilizados e repetidos. (Foucault.2017:129).
O livro “A arqueologia do saber’ constrói uma ponte, virtual,
com a gramática da economia ou discurso econômico (Foucault. 2017: 131). Não há
gramática da economia que não seja cruzada pelo campo do enunciado. (Foucault.
2017: 138). A existência do campo do indivíduo, sujeito, ou melhor, campo do <autor>, individual ou coletivo (Foucault.
2017: 130) é condicionada pela existência do campo do enunciado e pelas gramática
do capitalismo.
A linguagem econômica ou gramática da economia é, também, em
seu aparecimento e seu modo de ser o campo do enunciado:
“A linguagem, na instância de seu aparecimento e seu modo de
ser, é o enunciado”. (Foucault. 2017: 138).
A política é uma modalidade de utilização da gramática
política ou formação de discurso político, sendo o discurso:
“um conjunto de enunciados que se apoia um mesmo sistema de
formação; é assim que poderei falar do discurso clínico, do discurso econômico,
do discurso da história natural, do discurso psiquiátrico”. (Foucault. 2017:
131).
Mesmo Lacan reconhece a existência do discurso político como
gramática do significante atravessada pelo campo do enunciado e contingência ou
real:
“Mas, ao entrar o discurso político – atente-se para isso –
no avatar, produziu-se o advento do real, a alunissagem, aliás, sem que o
filósofo que há em todos nós, por intermédio do jornal, se comovesse com isso,
a não ser vagamente”. (Lacan. 2003: 535).
Foucault fixa a gramática do significante em um campo do
enunciado articulador das posições de sujeito em um campo de poderes/saberes:
“Trata-se de suspender, no exame da linguagem, não apenas o
ponto de vista do significado (o que já é comum agora), mas também o do
significante, para fazer surgir o fato de que em ambos existe linguagem, de
acordo com domínios de objetos e sujeitos possíveis, de acordo com outras
formulações e reutilizações eventuais”. (Foucault. 2017: 136).
A formação discursiva é o ponto-de-partida para a abordagem
do porto que queremos conquistar:
“a formação discursiva é o sistema enunciativo geral ao qual
obedece um grupo de performances verbais – sistema que não o rege
sozinho, já que ele obedece, ainda, e segundo suas outras dimensões, aos
sistemas lógico, linguístico, psicológico. O que foi definido como ‘formação
discursiva’ escande o plano geral das coisas ditas no nível específico dos
enunciados. As quatro direções em que analisamos (formação de objetos, formação
das posições subjetivas, formação dos conceitos, formações das escolhas
estratégicas) correspondem aos quatro domínios em que se exerce a função
enunciativa”. (Foucault. 2017: 142).
Trabalhando com os campos das gramáticas (sociedade,
economia, política, história), o objetivo é fazer pendant desses campos com o
campo de enunciado individualizado na formação discursiva:
“da mesma forma, que a descrição dos enunciados e da maneira
pela qual se organiza o nível enunciativo conduz à individualização das
formações discursivas”. (Foucault. 2017: 142).
Ou ainda:
“Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida
em que se apoiem na mesma formação discursiva”. (Foucault. 2017: 143).
A formação discursiva é o habitat do campo de enunciado
regido também pelas gramáticas supracitadas. Há determinação ou
sobredeterminação do campo do enunciado sobre as gramáticas?
O campo de enunciado articulado às gramáticas depende da
“prática discursiva”:
“é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre
determinadas no tempo e no espaço, que definiriam, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de
exercício da função enunciativa”. (Foucault. 2017: 144).
A prática discursiva se realiza, ou individualiza, ou se
atualiza em uma dada <formação social gramatical>. A prática discursiva política <democracia liberal> foi fabricada por campos de
poderes/saberes habitados por indivíduos/sujeitos/ autores na formação social
gramatical ocidental. No entanto, ela precisa ser vivida nas formações sociais
(países, grupos de países, nações) regradas por gramáticas da história
econômica.
2
A prática discursiva econômica da gramática da sociedade
capitalista se apoia no campo de enunciado, que tem como enunciado-mestre: <o capital é uma relação social mediado por coisas>. Então, pode-se falar de uma formação social gramatical
capitalista.
As gramáticas do capitalismo desenvolvido necessitam para a
acumulação capitalista e reprodução ampliada de capital da formação social
gramatical subdesenvolvida. O marxismo é a subjetividade que fala com efeitos
do campo enunciativo da economia política. (Foucault. 2017:149):
“mas como o conjunto das coisas ditas, as relações, as
regularidades e as transformações que podem aí ser observadas, o domínio do
qual certas figuras e certos entrecruzamentos indicam o lugar singular de um
sujeito falante e podem receber o nome de um autor. ‘Não importa quem fala’,
mas o que ele diz não é dito de qualquer lugar. É considerado, necessariamente,
no jogo de uma exterioridade”. (Foucault. 2017: 150).
Um enunciado marxista encontra-se registrado no autor Rosa
Luxemburgo, agora, relido na subjetividade que fala <gramática marxista da economia>. O enunciado liga a formação
capitalista desenvolvida à subdesenvolvida:
“Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma
espécie de metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e
pré-capitalista. Sem as formações
pré-capitalistas, a acumulação não se pode verificar, mas, ao mesmo tempo, ela
consiste na desintegração e assimilação delas. Assim, pois, nem a acumulação de
capital pode realizar-se sem as estruturas não-capitalistas nem estas podem
sequer se manter. A condição vital da acumulação do capital é a dissolução
progressiva e contínua das formações pré-capitalistas”. (Rosa: 363).
O enunciado de Rosa relido pela gramática marxista é o
fenômeno da recorrência:
“Todo enunciado compreende um campo de elementos antecedentes
em relação aos quais se situa, mas que tem o poder de reorganizar-se e de
distribuir segundo relações novas. Ele constitui seu passado, define naquilo
que o precede, sua própria filiação, redesenha o que torna possível ou
necessário, exclui o que não pode ser compatível com ele. Além disso, coloca o
passado enunciativo como verdade adquirida, como um acontecimento que se
produzia, como uma forma que se pode modificar, como matéria a transformar, ou
ainda, como objeto de que se pode falar. Em relação a todas essas
possibilidades de recorrência, a memória e o esquecimento, a redescoberta do
sentido ou sua repressão, longe de serem leis fundamentais, não passam de
figuras singulares. (Foucault. 2017: 152).
Rosa é retomada como parte do <arquivo> marxista: “O arquivo é, de início, a
lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como
acontecimentos singulares”. (Foucault. 2017: 158).
3
No domínio das gramatas do capitalismo e do
subdesenvolvimento, o capitalismo desenvolvido, avançado, cibernético existe em
uma formação social gramatical (EUA, Ásia oriental, Alemanha), que necessita
para a acumulação capitalista e reprodução ampliada de capital da formação
social gramatical capitalista subdesenvolvida.
Para existir, a gramática do capitalismo desenvolvido
cibernético cria e recria as gramáticas do subdesenvolvimento na América
Latina, África e outras regiões econômicas.
Um caso clássico é a destruição da formação capitalista
industrial dependente na América Latina e a passagem de países como Argentina,
México, Brasil e Chile para o subdesenvolvimento capitalista.
4
Um campo de enunciados neoliberal sustenta-se no enunciado <o livre mercado no comando da economia e do Estado>. O campo de enunciado neoliberal articula uma política de
destruição do Estado social periférico e a tolerância à desarticulação da
sociedade industrial capitalista dependente. Enfim, o enunciado neoliberal
prepara o terreno para a gramática do subdesenvolvimento capitalista., sem que
haja sucessão entre eles.
A história econômica das gramáticas em tela parece dizer que
a formação social gramatical subdesenvolvida é um universo em expansão
planetária. Essas seria a característica do capitalismo globalizado na terceira
década ado século XXI.
Países industrializados desenvolvidos podem vir a fazer parte
da formação social gramatical subdesenvolvida. Nem a Europa ocidental está
livre desse processo histórico do presente.
A história econômica supracitada planetária mexe e remexe com
a política da democracia liberal. Não se trata de um determinismo econômico. A história
econômica em tela abala a estrutura da democracia liberal em todo o mundo
ocidental. Ela parece evocar no espaço político uma repetição histórica:
fascismo.
A produção política da contemporaneidade subdesenvolvida vai
criando suas formas políticas sem um campo de enunciados correlatos, na América
Latina? A política subdesenvolvida em tela dará margem à produção de um campo
de enunciados invisíveis, para a cultura nacional pública, a partir do campo de
indivíduos/sujeitos/autores existindo em um campo de poderes/saberes.
Um enunciado constitucional como <direitos individuais fundamentais> se tornou objeto de uma luta política entre as forças
neoliberais, as forças do subdesenvolvimento e as forças progressistas que
querem fazer a transição dos países subdesenvolvidos para as gramáticas do
desenvolvimento capitalista cibernético.
É uma evidência que a Alemanha luta para encontrar seu lugar
na formação social gramatical, capitalista, desenvolvida, cibernética. A
democracia liberal não se encontra ameaçada na Alemanha, mesmo com o avanço de
movimentos extremistas.
A política capitalista subdesenvolvida de Trump é uma ameaça ao
curso natural da história econômica capitalista desenvolvida cibernética na
formação social norte-americana. A burguesia republicana segue sob comando de
Trump para derrotar a burguesia democrata na próxima eleição presidencial.
Trata-se de um ponto de inflexão na história econômica dos Estados Unidos.
No campo de
poderes/saberes, a posição de sujeito da burguesia republicana já significa a
progressão acelerada do <capitalismo criminoso> (Platt:45-55) e do <criminostat> (Virilio: 55), fenômenos de desenvolvimento do
subdesenvolvimento capitalista na América. O <criminostat> é uma forma de Estado noir da gramática do capitalismo
subdesenvolvido.
O discurso econômico subdesenvolvimento existe, também, em um
campo de poderes/saberes do enunciado neoliberal. Ele é um objeto da luta
política gramatical com sua estratégia e táticas:
“ele aparece como um bem – finito, limitado, desejável, útil
– que tem suas regras de aparecimento e também suas condições de apropriação e
de utilização; um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência (e não
simplesmente em suas ‘aplicações práticas), a questão do poder; um bem que é,
por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política”. (Foucault. 2017:
148).
Pôr o neoliberalismo e o capitalismo subdesenvolvido em um
arquivo do presente requer a aceitabilidade de que há um ersatz de gramática do
arquivo discursivo:
“A arqueologia busca definir não os pensamentos, as
representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se
manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas que
obedecem a regras”. (Foucault. 2017: 169).
O discurso econômico ou economia política do subdesenvolvimento
é reescrito na gramática marxista da economia. Esta é a reescrita da economia
política em geral:
“Nada além e nada diferente de uma reescrita: isto é, na
forma mantida da exterioridade, uma transformação regulada do que já foi
escrito. Não o retorno ao próprio segredo da origem; é a descrição sistemática
de um discurso-objeto”. (Foucault. 2017: 171).
O <período enunciativo> (Foucault. 2017: 182) da economia política marxista não
acabou, pois, a gramática da economia política é sua regularidade
homogênea/heterogênea como enunciabilidade, sem ser a análise bipolar do antigo
e do novo. (Foucault. 2017: 173).
A gramática da economia política em oposição à economia
política deve ser tomada como oposição de momentos funcionais determinados, que
assegura um <desenvolvimento adicional> do campo enunciativo”. (Foucault. 2017: 190).
5
O arquivo do subdesenvolvimento se desenvolve como uma
prática discursiva em um espaço de diálogo?
Há o
passado discursivo do subdesenvolvimento da CEPAL, de Celso Furtado, e do
marxismo americano. O subdesenvolvimento atual é um fato econômico ou artefato
(“fato dito”) da gramática marxista da economia. Há diálogo entre o passado e o
presente? Há sim uma reescrita da escrita do subdesenvolvimento do passado.
Aliás, há o desenvolvimento adicional do campo enunciativo das
Américas:
“abrem sequencias de argumentação, de experiencia, de
verificações, de inferências diversas; permitem a determinação de objetos
novos, suscitam novas modalidades enunciativas, definem novos conceitos ou
modificam o campo de aplicação dos que já existem, mas sem que nada seja
modificado no sistema de positividade do discurso”. (Foucault. 2017: 190).
Talvez, o estratégico do subdesenvolvimento sejam as práticas
não-discursiva que envolvem o subdesenvolvimento como prática discursiva:
“A análise arqueológica individualiza e descreve formações
discursivas, isto é, deve compará-las, opô-las, umas às outras na
simultaneidade em que se apresentam, distingui-las das que não têm o mesmo
calendário, relacioná-las no que podem ter de específico com as práticas não
discursivas que as envolvem e lhes servem de elemento geral”. (Foucault. 2017:
192).
As práticas não discursivas das forças (econômica, política,
cultural) do subdesenvolvimento têm uma modalidade de articulação que significa
mais dominação do que hegemonia em uma formação social. Banco, Mercado
Financeiro, mass media, Estado de segurança policial/privado, capitalismo
criminoso, criminostat constituem a prática não discursiva que envolve a
gramática da economia do subdesenvolvimento.
Em um momento no qual a consciência histórica nacional deixou
de ser um enunciado de um campo enunciativo, o subdesenvolvimento avança
progressivamente sem que os povos subdesenvolvidos saibam que sabem de seu
destino subdesenvolvido.
Descrever enunciativamente o subdesenvolvimento nos leva para
a o envolvimento da gramática da economia com as práticas não discursivas:
“é também para descrever, ao mesmo tempo que eles e em
correlação com eles, um campo institucional, um conjunto de acontecimentos, de
práticas, de decisões políticas, um encadeamento de processos econômicos em que
figuram oscilações demográficas, técnicas de assistência, necessidade de mão de
obra, níveis diferentes de desemprego etc.”. (Foucault. 2017: 192).
Estabelecer a relação do campo enunciativo com os domínios
não-discursivos, eis uma tática essencial da gramática do subdesenvolvimento:
“A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as
formações discursivas e os domínios não discursivos (instituições,
acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos)”. (Foucault. 2017:
198).
O aparecimento da formação discursiva do subdesenvolvimento
se estabelece com o acontecimento político governo Bolsonaro e seu ministro
Paulo Guedes. A instituição parlamento 2019 está no comando legislativo de
práticas e processos econômicos, que têm em determinadas forças econômicas sua
realidade possível. Elos fracos ligam o parlamento neoliberal ao capitalismo
subdesenvolvido que desenvolvem o capitalismo criminoso e o criminostat como formas
específicas de articulação subdesenvolvida.
A gramática da arqueologia:
“ela tenta determinar como as regras de formação de que
depende – e que caracterizam a positividade a que pertence – podem estar
ligadas a sistemas não discursivos: procura definir formas específicas de
articulação”. (Foucault. 2017: 198).
Chegará um momento em que as formas específicas de
articulação subdesenvolvida definirão a vida econômica e o próprio mundo da
vida. Aí, a simples farmácia das cidades cosmopolitas (São Paulo, Rio, Buenos
Aires) deixarão de funcionar, regularmente, como a parte final de vínculo do
consumidor com o mercado farmacêutico do capitalismo industrial.
O governo Bolsonaro instituiu uma política de destruição do
capitalismo farmacêutico. Com isso inúmeros laboratórios nacionais e
estrangeiros foram fechados. A falta de remédios de primeira necessidade já é
uma realidade no Rio. Crianças não são
vacinadas por falta de vacina. A articulação do subdesenvolvimento tem como
motor o governo neoliberal materializado no governo Bolsonaro e parlamento do
presidente da Câmara Rodrigo Maia.
Primeiro temos que descartar a relação casual da política nacional
com o subdesenvolvimento capitalista:
“ Uma análise causal, em compensação, consistiria em procurar
saber até que ponto as mudanças políticas, ou os processos econômicos, puderam
determinar a consciência dos homens da ciência – o horizonte e a direção de seu
interesse, seu sistema de valores, sua maneira de perceber as coisas, o estilo
de sua racionalidade; assim, em uma época em que o capitalismo industrial
começa a recensear suas necessidades de mão de obra, a doença tomou uma
dimensão social: a manutenção da saúde, a cura, a assistência aos doentes
pobres, a pesquisa das causas e dos focos patogênicos tornaram-se um encargo
coletivo que o Estado devia, por um lado, assumir, e, por outro, supervisionar.
Daí, resultam a valorização do corpo como instrumento de trabalho, o cuidado de
racionalizar a medicina pelo modelo das outras ciências, os esforços para
manter o nível de saúde de uma população, o cuidado com a terapêutica, a
manutenção de seus efeitos, o registro dos fenômenos de longa duração”.
(Foucault. 2017: 199).
Na Argentina e, especialmente no Brasil, a sociedade
industrial em colapso muda a relação da política com a população, especialmente
com os pobres doentes. Um Estado social industrial é dissolvido pela política
não pela relação causal da história econômica com a política.
A formação discursiva neoliberal é um campo de enunciado no
qual desfazer o Estado social é um enunciado reitor. O discurso neoliberal antecipa a história
econômica do subdesenvolvimento capitalista. O neoliberalismo é uma formação
discursiva inventada nos Estados Unidos na década de 1970 e utilizada, pela
primeira vez, no Chile do general Pinochet.
O que o subdesenvolvimento faz é destruir os campos de
demarcação dos objetos médicos abertos na Europa a partir dos séculos XVIII e
XI, abertos pela prática política europeia moderna:
“mas ela abriu novos campos de demarcação dos objetos médicos
(tais como são constituídos pela massa da população administrativamente
enquadrada e fiscalizada, avaliada segundo certas normas de vida e saúde,
analisada segundo formas de registro documental e estatístico; são
constituídos, também pelos grandes exércitos populares da ´época revolucionaria
e napoleônica, com sua forma específica de controle médico; são constituídos,
ainda, pelas instituições de assistência hospitalar que foram definidas, no
final do século XVIII e no início do século XIX, em função das necessidades
econômicas da época e da posição reciproca das classes sociais”. (Foucault.
2017: 200).
O modelo de história do subdesenvolvimento capitalista se
articula especificamente como descompromisso com a história da política
europeia do capitalismo industrial, em função das necessidades econômicas da
época e da posição das classes sociais em processo de proletarização.
A política não constitui a prática discursiva do
subdesenvolvimento. No entanto, como a medicina, o subdesenvolvimento é um
campo de enunciados que se articula em práticas que lhe são exteriores e que
não são de natureza discursiva, como já apontamos:
“Não se trata, portanto, de mostrar como a prática política
de uma dada sociedade constitui ou modificou os conceitos médicos e a estrutura
teórica da patologia, mas como o discurso médico, como prática que se dirige a
um certo campo de objetos, que se encontra nas mãos de um certo número de
indivíduos estatutariamente designados, que tem, enfim, de exercer certas
funções na sociedade, se articula em práticas que lhe são exteriores e que não
são de natureza discursiva”. (Foucault. 2017: 201).
A política do subdesenvolvimento é exterior ao discurso do
subdesenvolvimento. Aliás, o discurso não aparece no plano psicológico da
representação ou como ideologia do mundo da vida. A gramática do
subdesenvolvimento capitalista é conhecida pelos poucos capazes de suportá-la,
pois, ela é a linguagem da vida real. Algo próximo ao real impossível de ser
suportado.
No Brasil, o discurso subdesenvolvido não tem consciência,
ele não se aloja em uma forma externa da linguagem; não é uma língua, com um
sujeito para falá-lo; ele é uma prática que tem suas formas próprias de
encadeamento e de sucessão.
A história foucaultiana das ideias do subdesenvolvimento fala
de cortes, falhas, aberturas, formas inteiramente novas de positividade e
redistribuição súbitas. (Foucault. 2017:202, 206).
A política neoliberal da curta duração entre o governo Temer
e o Governo Bolsonaro não significa uma sucessão da ideia de subdesenvolvimento
entre eles. A ideia de subdesenvolvimento é uma ideia desenvolvida, como
prática governamental e legislativa, inteiramente, no governo Bolsonaro mais
parlamento 2019, de Rodrigo Maia. A diferença entre o neoliberalismo de Temer e
o de Bolsonaro consiste na diferença que a prática discursiva subdesenvolvida
aí instala.
O subdesenvolvimento discursivo substitui uma formação
discursiva da sociedade industrial dependente, que pode ser encontrada em autores
como Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marino. Destaco o livro “Dependência
e desenvolvimento na América Latina”, nacionalizado nas culturas universitárias
da América Latina. No entanto, esses
autores, obviamente, não determinam o aparecimento do acontecimento sociedade
industrial na periferia do capitalismo industrial desenvolvido. (Foucault.
2019: 208-209).
A acontecimento da substituição de um discurso por outro é a
não necessidade de uma sociedade industrial da contemporaneidade no
subdesenvolvimento capitalista.
Enfim, falar da substituição de um campo de enunciado por
outro significa:
“Dizer que uma formação discursiva substitui outra não é
dizer que todo um mundo de objetos, enunciações, conceitos, escolhas teóricas
absolutamente novas surge já armado e organizado em um texto que o situaria de
uma vez por todas; mas sim que aconteceu uma transformação geral de relações
que, entretanto, não altera forçosamente todos os elemento; que os enunciados
os enunciados obedecem a novas regras de formação e não que todos os objetos ou
conceitos, todas as enunciações ou todas as escolhas teóricas desapareçam.
(Foucault. 2017: 210).
A realidade do subdesenvolvimento vai se transformando em uma
gramática da economia política periférica das gramáticas capitalista
desenvolvidas, cibernéticas.
A economia política do subdesenvolvimento é uma formação
discursiva que estabelece um vínculo enunciativo entre Marx e a gramática da
economia como fenômeno de <deslocamento segmentar>:
“Daí os fenômenos de ‘deslocamento segmentar’ de que se pode
citar, pelo menos, um outro exemplo notório: conceitos como o de mais-valia ou
de baixa tendencial da taxa de lucro, tais como se encontram em Marx, podem ser
descritos a partir do sistema de positividade que já é empregado em Ricardo;
ora esses conceitos (que são novos, mas cujas regras de formação não o são)
aparecem – no próprio Marx – como referentes, ao mesmo tempo, a uma prática
discursiva inteiramente diversa; são aí formados segundo leis específicas,
ocupam outra posição, não figuram nos mesmos encadeamentos; essa positividade
nova não é uma transformação das análises de Ricardo; não é uma nova economia
política; é um discurso cuja instauração teve lugar em virtude da derivação de
certos conceitos econômicos, mas que, em compensação, define as condições nas
quais se exerce o discurso dos economistas e pode, pois, valer como teoria e
crítica da economia política”. (Foucault. 2017: 212-213).
A falta e/ou a destruição da sociedade industrial cibernética
desenvolvida é o acontecimento que assiná-la um emaranhado de continuidade e
descontinuidade, de modificações internas às positividades, da formação
discursiva subdesenvolvimento capitalista.
Um planeta estratificado por várias gramáticas econômicas capitalista
e campos de enunciados de formações sociais gramaticais está em processo de
construção.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo.
Lisboa; Chiado Books, 2019
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje.
Lisboa: Chiado Books, 2019
CARDOSO, Fernando Henrique. Dependência e desenvolvimento na
América Latina. RJ: Zahar Editores, 1973
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. RJ: Forense
Universitária, 2017
LACAN, Jacques. Outros escritos. RJ: Jorge Zahar Editor, 2003
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital. RJ: Zahar Editores,
1970
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Paris: Galilée, 1977
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
EUROPA
José Paulo
O que se denomina como moderno significa, simplesmente, uma <nova época> na história mundial? Ou significa um
corte no fluxo histórico que define a ideia de época? A ascensão da Europa no
comando da história mundial é o espírito do mundo, que encarna a ideia, sendo
levado avante por paixões de indivíduos, em especial os “indivíduos históricos
mundiais", como Alexandre, César e Napoleão? (Inwood:162).
A época pode ser definida como a
passagem da história da política para a história da economia? Ou definida pelo
surgimento de um campo de poderes/saberes no comando da história mundial?
Assim, o surgimento do campo de poderes/saberes econômico definiria a ideia de
época, ou melhor, a ideia de época moderna?
2
Em uma explosão intelectual, Hegel
associa a dissolução da Idade média com o nascimento de um campo de saberes
científico moderno?
Hegel viveu uma parte de sua visa
adulta quando a sociedade industrial inglesa se erguera em um império liberal
capitalista, que determinará o rumo da história mundial no século XIX.
A ciência moderna e a técnica
industrial se tornam as forças produtivas da sociedade de classes da
modernidade. O trabalho livre como força produtiva de produção de mais-valia e
da riqueza capitalista de um império industrial muda a ideia de colonialismo
dos grandes descobrimentos, cuja América é o símbolo maior.
Hegel diz sobre a dissolução da Idade
Média:
“No lugar do formalismo escolástico,
surgiu um outro conteúdo. Platão tornou-se conhecido no Ocidente, e com ele
surgiu um novo mundo humano. As novas representações encontraram o instrumento
principal para a sua propagação na recém-inventada <arte da impressão de livros>, que corresponde - assim com a
pólvora ao caráter moderno, e atende às necessidades de estabelecer um
relacionamento ideal com os outros. E já que, no estudo dos antigos, se exprime
o amor por virtudes e atos humanos, a Igreja não viu nisso nada de mal, não
notando que naquelas obras estrangeiras encontrava-se um princípio bem alheio –
e que se opunha a ela”. (Hegel.1995:
340).
A técnica é vista como definindo o
caráter moderno em antagonismo com o campo de poderes/saberes da Igreja. A era de Gutemberg põe o mercado de livros
como força propulsora da cultura moderna em um desenvolvimento do antagonismo
do presente moderno com o passado medieval.
MacLuhan diz:
Quer dizer, o leitor da palavra
impressa está, em relação ao autor, em posição completamente diferente do
leitor dos manuscritos. A palavra impressa gradativamente esvaziou de seu
sentido a leitura em voz alta e acelerou o ato de ler até o ponto em que o
leitor pôde sentir-se ‘nas mãos de’ seu autor. Veremos que, do mesmo modo que a
palavra impressa foi a primeira coisa produzida em massa, foi também o primeiro
‘bem’ ou ‘artigo de comércio’ a repetir-se ou reproduzir-se uniformemente. A
linha de montagem de tipos móveis tornou possível um produto que era uniforme e
podia repetir-se tanto quanto um experimento científico. Esse caráter não se
encontra no manuscrito. Os chineses ao imprimir por meio de blocos de madeira,
no século oitavo, ficaram sobremodo impressionados com o caráter repetitivo da
operação impressora, considerando-a um processo ‘mágico’ e a utilização como
forma alternativa para a roda de orações”. (MacLuhan: 176-177).
O campo de poderes/saberes tem na
ciência moderna seu signo e poder transformador da realidade, que a Igreja toma
como inimigo figadal:
“Ela se separou da ciência, da
filosofia e da literatura humanística, e logo teve a oportunidade de exprimir
sua aversão à ciência. O célebre Copérnico descobriu que a Terra e os planetas
giravam em torno do Sol, mas a Igreja declarou-se contrária a essa progressão.
Galileu, numa discussão sobre razões favoráveis e desfavoráveis dessa
descoberta de Copérnico, declarando-se ele mesmo a ela favorável, foi obrigado,
de joelhos, a pedir perdão por essa calúnia”. (Hegel. 1995: 347-348).
O campo de poderes/saberes moderno
começa com a matematização galilaica da natureza. A razão moderna significa
matematização da realidade e do mundo da técnica, que se constituiria como
técnica industrial e força produtiva do modo de produção especificamente
capitalista do século XIX:
“A matemática, como domínio do conhecimento
(e da técnica, sob sua instrução) genuinamente objetivo, estava para Galileu, e
já antes dele, no foco do interesse que move o homem ‘moderno’ para um
conhecimento filosófico do mundo e uma prática racional. Tem de haver método de
medidas para tudo aquilo que abrangem, na sua idealidade e aprioridade,, a
geometria ou a matemática das figuras. E o mundo concreto inteiro terá de se
revelar como matematizavel e objetivo, se seguirmos aquelas experiencias
singulares e medirmos efetivamente tudo o que lhe é atribuível como pressuposto
da geometria aplicada, ou melhor, se construirmos os métodos de medida
correspondentes. Se assim fizermos, o lado das ocorrências especificamente
qualitativas tem <indiretamente> de se <comatematizar>”. (Husserl:29-30).
Como técnica, a ciência moderna é uma
força produtiva motriz da história econômica do capitalismo industrial. (Marx.
1978:55).
3
Spaltung do mundo medieval e
nascimento do mundo moderno fazem pendant com a cultura moderna do livro. Por
ora, anuncia-se a fundação futura de um campo de poderes/saberes moderno na
política mundial.
Para Hegel, o tempo moderno está
associado à vontade subjetiva, na atividade particular da vontade na cultura
como forma universal, ou seja, o próprio pensamento:
“Até a cultura pertence à forma; a
cultura é a confirmação da forma do universal, e isso é o próprio pensamento. O
direito, a propriedade, a moralidade objetiva, o governo e a Constituição,
entre outras coisas, têm, agora que ser determinados de maneira universal para
que sejam adequados e razoáveis ao conceito de livre vontade. Só assim o espírito
da verdade pode surgir na vontade subjetiva, na atividade particular da
vontade. Se a intensidade do livre espírito subjetivo decide-se pela forma da
universalidade, então, o espírito objetivo pode se manifestar. Nesse sentido, é
preciso compreender que o Estado foi constituído na religião. Estados e leis
não são mais do que o surgimento da religião nas relações da realidade”.
(Hegel. 1995: 346).
A religião é uma espécie de fenômeno
cultural no real? Se Hegel afirma tal fato, onde o Estado é, também, um efeito
da cultura, então, a história da política (como história das diferentes formas
de Estado) é também a história da cultura. A era moderna seria a passagem da
história da cultura para a história da técnica moderna em uso na era da grande
navegação:
“O terceiro momento principal que
devemos mencionar exteriorização do espírito, esse desejo do homem de conhecer
o seu mundo. O espírito cavaleiro dos heróis marinheiros de Portugal e Espanha
encontrou um novo caminho para as Índias Orientais e descobriu a América.
Também esse progresso aconteceu sem transgressão aos limites da Igreja. O
objetivo de Colombo era particularmente de caráter religioso: os tesouros dos
ricos países hindus a serem descobertos deveriam, na sua opinião, ser
utilizados para uma nova cruzada e para converter os seus habitantes pagãos ao
cristianismo. O homem descobriu que a Terra era redonda, portanto, para ele,
algo delimitado, e as viagens marítimas foram favorecidas pela introdução da
bússola, deixando assim de ser mera navegação costeira. A técnica aparece
quando existe a necessidade”. (Hegel.1995: 340).
Hegel não vê a história da economia
como força motriz da era das grandes descobertas europeias? Ele é refém de uma
concepção de tempo moderno cultural? Ao contrário, ele assinala a passagem da
história cultural para a história das forças técnicas produtivas como fundadora
da época moderna.
Marx entende a época moderna pela história
da acumulação primitiva de capital europeu:
“A chamada acumulação primitiva é
apenas o processo histórico que dissocia o trabalhador dos meios de produção. É
considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de
produção capitalista”. (Marx.1996: 830).
A colônia é o território econômico
não-capitalista usado como parte da acumulação primitiva do capital europeu,
como quer Rosa Luxemburgo:
“Se o capitalismo vive das formações
e das estruturas não-capitalistas, vive mais precisamente da ruína dessas
estruturas, e, se necessita de um meio não-capitalista para a acumulação,
necessita-o basicamente para realizar a acumulação, após tê-lo absorvido.
Considerada historicamente, a acumulação capitalista é uma espécie de
metabolismo que se verifica entre os modos de produção capitalista e
pré-capitalista. Sem as formações pré-capitalistas, a acumulação não se pode
verificar, mas, ao mesmo tempo, ela consiste na desintegração e assimilação
delas. Assim, pois, nem a acumulação do capital pode realizar-se sem as estruturas
não-capitalistas nem estas podem sequer se manter. A condição vital da
acumulação do capital é a dissolução progressiva e contínua das formações
pré-capitalistas”. (Rosa: 363).
Rigorosamente, o “capital comercial”
que liga a economia da metrópole europeia com a economia da colônia não deve
ser definido como <capital>:
“De início, descobriu Wakefield, nas
colônias, que a propriedade de dinheiro, de meios de subsistência, de máquinas
e de outros meios de produção não transformam um homem em capitalista, se lhe
falta o complemento, o trabalhador assalariado, o outro homem que é forçado a
vender-se a si mesmo voluntariamente. Descobriu que o capital não é uma coisa,
e sim uma relação social entre pessoas efetivada através de coisas”. Marx. 1996: 885).
A ideia de liberdade cultural moderna
é aquela do homem livre, do homem não subjugado ao poder da Igreja, em Hegel.
Trata-se do homem europeu não submetido ao campo de poderes/saberes da Igreja. É
a liberdade como fenômeno da cultural política europeia germânica com Lutero e
Calvino.
“Este é o conteúdo da Reforma: o homem está determinado por
si mesmo a ser livre”. (Hegel. 1995: 346).
E a liberdade civil republicana onde
entra no discurso político hegeliano?
Em Marx, o homem livre se refere ao
homem comum no modo de produção capitalista, homem livre, mas forçado, a vender
sua força de trabalho: proletariado assalariado do capital industrial.
O campo de poderes/saberes da
modernidade tem a sociedade de classes como centro econômico, político e
cultural na Europa. Burgueses e proletários são os símbolos e sujeitos da
história econômica capitalista com efeitos pertinentes na política na cultura
ou domínio das ideologias de classe social.
No discurso marxista, a liberdade
civil republicana será tida como liberdade da sociedade civil burguesa em luta
contra a sociedade do trabalho. A luta de classes é um fenômeno político que
põe em xeque-mate a liberdade civil republicana para todos. Ao proletariado, a
ordem burguesa nega os direitos políticos constitutivos da liberdade civil
republicana. Daí, os marxistas falarem em ditadura burguesa (igual a democracia
burguesa) a ser substituída por uma ditadura do proletariado.
A liberdade hegeliana é um produto da
Reforma protestante. A cidade moderna em contraposição ao campo tradicional é o
habitat desse movimento de cultura política que para Hegel é o corte no fluxo
histórico, que instaura a modernidade política:
“As nações eslavas eram agricultoras.
Essa relação carrega consigo aquela de senhores e servos. Na agricultura,
prevalece o ímpeto da natureza. A atividade humana e subjetiva, com efeito,
prevalece menos nesse trabalho, por isso os eslavos são mais lentos e mais
difíceis de se conquistar para o sentimento básico do ser subjetivo, para a consciência
do universal, para aquilo que anteriormente denominamos poder estatal, e em decorrência
desses fatores não puderam participar da liberdade que então nascia”. (Hegel.
1995: 348).
A liberdade de hegeliana associa
liberdade cultural e política moderna? Trata-se da liberdade como fenômeno da
cultura política universal condensada na ideia de <poder estatal>.
Com Marx, temos a universalização do
poder estatal como fenômeno moderno, assim que o Estado se define como aparelho
de Estado e poder de Estado. (Balibar:94). Essa invenção política europeia foi copiada
por inúmeros povos em vários continentes. Então, o poder estatal aparece como
expressão da sociedade de classes, capitalista, industrial da luta de classe da
burguesia contra o proletariado. Assim, a existência do poder estatal não se
remete a uma cultura política universal hegeliana, e sim a universalização da
sociedade de classes moderna industrial.
A propósito, na América Latina, o
poder estatal só existiu com a sociedade industrial capitalista em países como
Argentina, Brasil e México - na segunda metade do século XX. O desaparecimento
da sociedade industrial nesses países hoje significa a desintegração do poder
estatal. Então, inúmeros fenômenos estranhos tomam conta do mundo urbano. Por
exemplo, a grande cidade se torna uma articulação arqueopolítica do crime
organizado.
No Brasil com Bolsonaro, o poder estatal
se torna quase a propriedade privada de um senhor. O Estado da sociedade
industrial capitalista perde seu caráter de universalidade. A articulação da <política do subdesenvolvimento>
(Bandeira da Silveira.
2019b: 133) desfaz o Estado como poder de Estado e aparelho de Estado. Este último
se torna propriedade privada de um senhor. As gramáticas do modo de produção e
circulação do subdesenvolvimento adquirem uma universalidade americana em um
contraponto às gramáticas do capitalismo industrial, avançado, cibernético.
(Bandeira da Silveira. 2019a:141).
“O Estado precisa ter uma última
vontade decisiva; mas se um indivíduo deve ser considerado o poder decisório
final, ele o deve ser de forma determinada e natural, e não por escolha,
opinião ou método desse gênero. Mesmo entre os gregos livres, o oráculo era o
poder exterior que determinava os principais assuntos; aqui, o <nascimento> é o oráculo. Algo independente de
toda arbitrariedade. Já que o líder de uma monarquia pertencia a uma família, o
domínio era uma propriedade privada – portanto, seria como tal divisível -,
mas, com a divisão, opõe-se ao conceito de Estado, e então os direitos dos
monarcas e de suas famílias tiveram que ser especificados. Os domínios não
pertenciam a um único senhor, mas à família como <fideicomissos>, e as <classes> tinham a garantia, pois, deviam
manter a unidade. Dessa forma, o principado perdeu o sentido de propriedade
particular, de posses de bens e domínios, de jurisdição etc., passando a ser
propriedade e assunto estatal”. (Hegel. 1995: 353).
Com Bolsonaro, o poder estatal é substituído
por uma outra forma de poder político, com o presidente da república em posse de
um aparelho de Estado <inquisitorial>. Assim, aparece a ideia prática de um <poder político inquisitorial>:
“O instrumento utilizado para estabelecer o
poder real na Espanha foi a <Inquisição>. Esta, introduzida com o fim de
perseguir judeus, mouros e hereges, logo tomou caráter político ao se voltar
contra os inimigos do Estado. A Inquisição fortaleceu o despotismo dos reis,
estava acima de bispos e arcebispos, e podia submetê-los ao tribunal. Constantes
confiscos de bens, um dos mais habituais castigos, enriqueceram, na ocasião, o Tesouro
nacional. A Inquisição, além disso, era um tribunal de suspeita., e já que
exercia u enorme poder sobre o clero, tinha o seu verdadeiro apoio no orgulho
nacional. Todo espanhol queria ser de sangue cristão, e esse orgulho coincidiu com
as intenções e a tendência da Inquisição. Algumas províncias da monarquia
espanhola, como Aragón, ainda mantinham muitos direitos especiais e
privilégios, mas, a partir do rei espanhol Filipe II, eles foram abolidos”.
(Hegel. 1995: 354).
4
Hegel pensa a gramática moderna europeia?
A gramática europeia se estabelece
como interioridade, ou seja, como subjetividade universal através do pensamento:
“O pensamento considera tudo em forma de universalidade e, por isso, é a
atividade e produção do universal”. (Hegel. 1995: 360).
A Europa produz o capitalismo industrial
moderno como pensamento universal que conquista a América. Esta inventa uma gramática
capitalista cibernética que define o rumo da história econômica do planeta a
partir do final do século XX.
No século XXI, a gramática do capitalismo
avançado, cibernético se constrói como uma sociedade industrial na Ásia
Oriental. Assim, a China desponta como potência industrial fazendo pendant com
os Estados Unidos. No nosso presente da terceira década do século XXI, a maioria
dos países da Europa vão se tornado periferia subdesenvolvida (industrial ou
não) do capitalismo desenvolvido cibernético asiático.
A ideia de liberdade subjetiva
universal de Hegel parece ter abandonada a Europa?
“O interesse prático precisa dos
objetos, consome-os. O teórico observa-os com a segurança de que eles não são
diferentes em si. Assim, o ápice da interioridade é o pensamento. O homem não é
livre se não pensa, apenas mantém com o mundo à sua volta uma relação com uma outra
forma de ser”. (Hegel. 1995: 361).
O campo de poderes/saberes moderno
inventado pela Europa está naufragando. Ele se tornou obsoleto. Anote-se, no
entanto, que ao naufrágio da economia política corresponde o aparecimento das
gramáticas do capitalismo cibernético desenvolvido e do subdesenvolvimento do
século XXI, nas Américas.
BALIBAR, Étienne. Cinq études du materialisme
historique. Paris: Maspero, 1974
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo.
Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiado, 2019a
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento
hoje. Lisboa: Chiado, 2019b
HEGEL. Filosofia da história.
Brasília: UNB, 1995
HUSSERL, Edmund. A crise das ciências
europeias e a fenomenologia transcendental. RJ: Forense Universitária, 2012
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel.
RJ: Jorge Zahar Editora, 1997
MCLUHAN, Marshall A galáxia de Gutenberg.
SP: Editora Nacional/USP, 1972
MARX. O capital. Livro 1, capítulo VI
(inédito). SP: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978
MARX. O capital. Livro 1. Volume 2.
RJ: Bertrand Brasil, 1966
ROSA LUXEMBURGO. A acumulação do capital.
RJ: Zahar, 1970
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
sexta-feira, 6 de dezembro de 2019
AMÉRICAS para americanos hoje
José Paulo
O objetivo é estabelecer a gramática política da América.
Começo pela gramática em si.
Estabelece-se com
clareza a gramática da sociedade como homóloga à Constituição moderna (discurso
legal virtual)? Ao contrário, a gramática de uma formação social em uma
história econômica faz pendant com o estado de exceção soberano:
“E como a linguagem pressupõe o não-linguístico como aquilo
com o qual deve poder manter-se em relação virtual (na forma de uma <langue>, ou mais precisamente, de um jogo
gramatical, ou seja de um discurso cuja denotação atual é mantida
indefinidamente em suspenso), para poder depois denotá-lo no discurso em ato,
assim a lei pressupõe o não-jurídico (por exemplo, a mera violência enquanto
estado de natureza) como aquilo com o qual se mantém em relação potencial no
estado de exceção. A exceção soberana (como zona de indiferença entre natureza
e direito) é a pressuposição da referência jurídica na forma de sua suspensão”.
(Agamben: 28).
A gramática de uma sociedade é o discurso virtual homóloga na
política à exceção soberana.
Foucault diz:
“Atrás do sistema acabado, o que a análise das formações
descobre não é a própria vida em efervescência, a vida ainda não capturada, mas
sim uma espessura imensa de sistematicidades, um conjunto cerrado de relações
múltiplas. Além disso, essas relações, por mais que se esforcem para não serem
a própria trama do texto, não são, por natureza, estranhas ao discurso. Pode-se
mesmo qualifica-las de pré-discursivas’, mas com a condição de que se admita
que esse pré-discursivo pertence, ainda, ao discurso, isto é, que elas não
especificam um pensamento, uma consciência ou um conjunto de representações que
seriam, mais tarde, e de uma forma inteiramente necessária, transcritas em um
discurso, mas que caracterizam certos níveis de discurso, definem regras que
ele <atualiza> enquanto prática singular. Não
procuramos, pois, passar do texto ao pensamento, da conversa ao silêncio, do
exterior ao interior, da dispersão espacial ao puro recolhimento do instante,
da multiplicidade superficial à unidade profunda. Permanecemos na dimensão do
discurso”. (Foucault.2012:90-91).
2
Tocqueville escreve:
Já discorri o bastante para colocar sob sua verdadeira luz o
caráter da civilização anglo-americana. Ela é produto (e este ponto de partida
deve estar presente sem cessar no pensamento) de dois elementos perfeitamente
distintos, que aliás muitas vezes se combateram mutuamente, mas que, de certa
forma, os americanos conseguiram incorporar um ao outro e combinar
maravilhosamente. Refiro-me ao <espírito de religião> e ao <espírito de liberdade>”. (Tocqueville: 90).
Citando um outro texto meu:
A América do Norte é a
invenção de uma nova gramaticada política na qual o <legislator>
americano combina, sincreticamente, a política moderna (republicanismo
democrático) com a cultura judaica da antiguidade:
“Nada é mais singular e ao mesmo tempo mais instrutivo que a
legislação daquela época: é nela, principalmente, que se encontra a chave do
grande enigma social que os Estados Unidos apresentam ao mundo em nossos dias.
Entre esses monumentos, distinguiremos particularmente, como
um dos mais caraterísticos, o código de leis que o pequeno Estado de
Connecticut promulgou em 1650. Em primeiro lugar, ocuparam-se os legisladores
de Connecticut das leis penas; e, para redigi-las, concebem a estranha ideia de
se abeberarem nos textos sagrados.
‘Quem quer adorar outro Deus que não seja o Senhor – dizem
eles, para começar, - aquele certamente morrerá’. Seguem-se dez ou doze
disposições da mesma natureza, tomadas de empréstimo, textualmente, ao
Deuterônimo, ao Êxodo e ao Levítico. A blasfêmia, bruxaria, o adultério e o
estupro são castigados com a morte; a ofensa cometida por um filho contra seus
pais é capitulada na mesma pena. Dessa forma, a legislação de um povo rude e
semicivilizado era transportada ao seio de uma sociedade cujo espírito era esclarecido
e brandos os costumes; em consequência, jamais se viu a pena de morte mais
frequentemente prescrita nas leis, nem mais raramente aplicada”. (Tocqueville:82-83).
Há além da Constituição formal americana dos “pais fundadores”
o discurso virtual ou gramática da formação social americana, enfim, da política
americana. Esta se define pela política americana na plurivocidade de campo de
poderes/saberes local ou regional, nacional [e internacional].
O que é <política>?
Na cultura grega da antiguidade, a política tem uma dimensão
ética. O vocabulário político (polis, polites, politikós) não
especificava um domínio político distinto da ética. Na cultura romana, a
política faz pendant com um vocabulário político como civilis societas e
iures societas. Não se trata da sociedade doa sociologia moderna ou da
formação social marxista.
A política grega associada às formas de governo pode ser a
política do democrata (da multidão), do oligarca (dos poucos) e do tirano (do
um).
No vocabulário latino, a res publica ou coisa comum,
coisa da cidade, interesse geral, se contrapõe ao império e à polis e polites.
Na república moderna, trata-se de uma ideia política que designa uma forma de
Estado (oposta à monarquia) de um poder político centralizado e burocrático que
se contrapõe as ideias de politeia, de res publica e de common
weal.
É um truísmo que Maquiavel pensou a política como domínio
separado da ética, da moral e, principalmente, da religião. Pode-se, então,
falar de uma gramática da política, de um fenômeno específico.
Na cultura medieval, a política aparece entrelaçada com a
religião, o poder religioso em luta contra o poder temporal pelo domínio do
mundo político, da sociedade. A Idade Média se caracteriza por uma
plurivocidade de revolução do secularismo. Na política, o vocabulário político
secular inclui o regnum, império não submetido ao poder papal, a
cidade-Estado, as repúblicas da Idade Média tardia, uma certa Igreja secular,
Igreja-Estado.
Uma ideia verdadeiramente distinta sobre política se encontra
em Hobbes. Ele define a política como o poder de inventar palavras, de
defini-las, de impô-las aos súditos. (Sartori:163). Esta ideia maravilhosa da
política faz do político o governante da linguagem, o gramático da língua
política. Trata-se da ideia de Gramsci do político como intelectual condensado
ao mesmo tempo homem político prático e inventor da linguagem política na
história de uma formação social.
Pode-se medir, com régua e compasso, a elite política por seu
poder de inventas, criar e recriar, a linguagem política.
Não é obra do acaso a América ter criado, na sociedade, uma
linguagem da política latino-americana da atualidade: linguagem neoliberal. No
entanto uma prática política latino-americana produziu uma linguagem que se
contrapõe ao neoliberalismo. Trata-se da linguagem do bolivarianismo.
O choque antagônico entre o campo da direita neoliberal e o
campo da esquerda bolivariana está levando à destruição da plurivocidade do
campo de poderes/saberes na A. L. Com efeito, ambos os campos em tela evitam
falar no subdesenvolvimento de hoje como motor da política da A. L.
Aliás, a cultura anglo-americana tem um vocabulário
específico para designar <política>. Politics é a
luta pelo acesso ao poder político, a conquista do governo em um Estado
nacional. Policy é o desenvolvimento das medidas adotadas pelo
governante, os diferentes níveis da administração, mas também todo agir
definido por ser vantajoso ou útil. (Colas:12-13). Em resumo, política é a
política do governante representativo.
A política pode ser a combinação de dominação (coerção) e
hegemonia ou articulação política através de ideias e do domínio do político
pela invenção e reinvenção da língua política nacional, em um campo de
poderes/saberes, que articula o local, o nacional com o internacional.
Um exemplo de governante ou gramático da língua política é
Carl Schmitt. Ele definiu a ideia de política que uma força prática (fascismo)
usou para tentar dominar a política mundial, sendo derrotada na guerra.
A ideia é a seguinte:
“Uma determinação conceitual do político só pode ser obtida
mediante a descoberta e identificação das categorias especificamente políticas.
É que o político tem seus critérios próprios, que de maneira peculiar se tornam
eficazes diante dos domínios diversos e relativamente independentes do
pensamento e do agir humano, especialmente o moral, o estético e o econômico. O
político precisa, pois situar-se em algumas distinções últimas, às quais pode
reportar-se toda ação especificamente política. Admitamos que as distinções
últimas no âmbito moral sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no
econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável e não rentável. A
questão, então, é se também existe uma distinção peculiar não semelhante ou
analógica às demais, porém independente delas, autossuficiente, e como tal
evidente, como critério simples do político, e em que ela consiste.
A distinção especificamente política a que podem reportar-se
as ações e os motivos políticos é a discriminação entre <amigo> e <inimigo>. (Schmitt:51).
A ideia schmittiana da política está sendo usada pelo campo
da direita latino-americana aliada aos Estados Unidos na terceira década do
século XXI para destruir a política como plurivocidade de campo de
poderes/saberes.
3
A política americana é uma invenção hobbesiana de uma língua
política de articulação da hegemonia (junção elite e povo) na história
capitalista da modernidade?
Tocqueville diz que a América funda a gramática da sociedade
democrática. Precisamos descobrir quem é o gramático que inventa a gramática da
sociedade?
Trata-se de um gramático sociológico?
Tocqueville escreve:
“O estado social é, de ordinário, resultado de um fato, às
vezes das leis, as mais das vezes da reunião dessas duas causas; uma vez,
porém, que ela existe, podemos considerá-la em si mesma a causa primeira da
maior parte das leis, dos costumes e das ideias que regem a conduta das nações;
aquilo que não produz, ela o modifica. Para conhecer a legislação e os costumes
de um povo, convém começar, por isso mesmo, estudando o estado social”.
(Tocqueville: 94).
Marx desenvolveu todo um vocabulário a partir da ideia que a
sociedade civil é o palco da história. Tocqueville e Marx parece terem criado a
ideia de sociologia, como ensina os mestres da sociologia universitária.
Em Tocqueville e Marx, a política é uma expressão da
sociedade. Em Tocqueville, ela é a expressão do grande proprietário privado de
terra americano. Em Marx, a política em sua forma acabada é expressão da
sociedade industrial. Trata-se da diferença na origem entre política americana
e política europeia.
Poulantzas define política assim: “A prática política é o
‘motor da história’ na medida em que o seu produto constitui afinal a
transformação da unidade de uma formação social, nos seus diversos estágios e
fases. Isto porém, não em um sentido historicista: a prática política é quem
transforma a unidade, na medida em que o seu objeto constitui o ponto nodal de
condensação das contradições entre os diversos níveis, com historicidades
próprias e desenvolvimento desigual”. (Poulantzas.1977: 39-40).
A prática política é o gramático ou governante da sociedade
industrial. O gramático da política só existe se uma <força prática> (Lenin: 29) fizer pendant com uma
teoria concreta da sociedade de classes moderna: marxismo. Assim, política é
idêntica à revolução social.
4
Na origem da América moderna, a gramática da sociedade
democrática é maior que as forças pessoal e/ou grupal. Trata-se de um fato
ininteligível para os latinos americanos, pois, neste continente, a sociedade
faz pendant com a força pessoal e/ou grupal. Temos uma espécie de <filosofia do sujeito> como motor da história latino-americana.
“Ao contrário, o tempo, os acontecimentos e as leis tornaram o
elemento democrático não apenas preponderante, mas, também, único. Não se deixa
perceber nele nenhuma influência de família nem de grupo; em geral, com efeito,
não seria possível perceber nele nenhuma influência de família ou de grupo;
muitas vezes, com efeito, não seria possível descobrir nele influências
individuais ainda que pouco duráveis”. (Tocqueville: 103).
A política democrática é aquela da igualdade:” Ora, não
conheço mais que duas maneiras de fazer reinar a igualdade no mundo político: é
preciso que se deem direitos a cada cidadão, ou que não sejam dados a ninguém”.
(Tocqueville: 104).
Os povos democráticos não têm a liberdade como objeto
principal da vida política, e sim a igualdade.:
“Por outro lado, quando os cidadãos são todos mais ou menos
iguais, é difícil para eles defender a sua independência contra as agressões do
poder. (...) Como primeiro povo que se submeteu àquela alternativa temível que
acabo de descrever, os anglo-americanos foram bastante felizes para escapar ao
poder absoluto”. (Tocqueville: 104).
Os americanos escapam de um destino funesto através da
soberania popular que é o poder da sociedade reconhecido nos costumes e leis:
“Na América, o princípio da soberania popular jamais fica
escondido ou estéril, como em certas nações; é reconhecido pelos costumes,
proclamado nas leis; estende-se com toda liberdade e sem obstáculos atinge as
suas últimas consequências. Se existe um único país no mundo onde podemos
esperar apreciar em seu justo valor o dogma da soberania popular, estudá-lo na
sua aplicação aos negócios da sociedade e julgar as suas vantagens e os seus
perigos, esse país é, sem dúvida, a América”. (Tocqueville: 106-107).
A soberania popular faz pendant com a igualdade entre os
cidadãos. Ela não se presta à sociedade aristocrática onde a desigualdade é
própria da natureza da política. A soberania popular é a instituição política (“a
lei das leis”) de uma sociedade que atualiza a gramática da sociedade
democrática na política. A ideia de governante moderno é uma construção da
gramática da soberania popular.
“Estalou a Revolução Americana. O dogma da soberania popular
saiu da comuna e apoderou-se do governo; todas as classes comprometeram-se pela
sua causa; travaram-se batalhas e alcançaram-se vitórias em seu nome; e ele se
transformou em lei das leis”. (Tocqueville: 107).
Na América Latina, a soberania popular não é uma instituição
política da gramática da sociedade nacional igualitária. Ela aparece nas
Constituições como algo artificial, como artefato produzido por uma imitação
dos povos democráticos. Aliás, a soberania popular na Constituição é um poder
popular representativo em contradição com uma América Latina habitada por uma
sociedade hierárquica. Ela não é um dado
natural da história política do povo latino-americano. Em geral, a elite
latino-americana interpreta a soberania popular como um fenômeno que deve
servir à personalidade política ou a facção política. Assim, o partido político
latino-americano ou é situacionista (serve ao poder político do presidente da
república) ou se torna mera ficção política, na oposição. A ideia de partido
político, entre nós, nunca foi gramaticalizada.
Hegel traça uma diferença entre o passado da América do Norte
e o da América do Sul que chega até o presente:
“Vemos a prosperidade da América do Norte, graças ao
desenvolvimento da indústria e da população, à ordem civil e uma firme
liberdade; toda a confederação constitui apenas um Estado e tem os seus centros
políticos. Ao contrário, na América do Sul as repúblicas repousam somente no
poder militar, toda a sua história é uma revolução permanente: Estados
confederados separam-se; outros, que estavam separados, unem-se de novo, e
todas essas mudanças são operadas por revoluções militares”. (Hegel: 76).
A sociedade democrática americana se apoia na igualdade entre
os cidadãos que constrói o <poder civil>. A América Latina não se define pela
busca da igualdade política; ao contrário, se define pela desigualdade da
distribuição do poder político entre o estrato militar e o povo civil. O
estrato militar cria uma república hierárquica (no Brasil e na América
espanhola) avessa à liberdade civil.
No
campo de poderes das Américas, os Estados Unidos usaram o domínio do poder
militar sobre o quase inexistente poder civil, entre nós, em longa duração,
para controlar a América do Sul na era do populismo econômico, que foi um
esforço da elite latino-americana para retirar certos países do
subdesenvolvimento.
o
populismo econômico gerou um campo de poderes/saberes na América Latina, na
época da Guerra Fria, em um antagonismo com o campo de poderes do imperialismo
americano. A direita militar latina e os Estados Unidos destruíram este campo de
poderes populista econômico, que era o motor de uma história econômica de
retirada dos países do subdesenvolvimento da periferia do imperialismo
americano.
5
O
lugar do pobre na política é um fato que distingui a América do Norte da
América do Sul:
“O
novo continente transformara-se num refúgio, num ‘asilo’ e num ponto de
encontro dos pobres; aí havia surgido uma nova raça de homens, ‘unidos pelos
laços de seda de um governo moderado’, e vivendo em condições de ‘uma agradável
uniformidade’, da qual ‘ a pobreza absoluta, pior do que a morte’, havia sido
banido (...) Não foi a Revolução Americana e suas preocupações com o
estabelecimento de um novo organismo político, de uma nova forma de governo,
mas sim a América, o ‘novo continente’, o americano, o ‘novo homem’, ‘a adorável
igualdade, no dizer de Jefferson, ‘que os pobres usufruem justamente com
os ricos’, que revolucionou o espírito dos homens”. (Arendt: 20).
No
século XXI, o lugar do pobre na política da América do Sul mudou de posição social
no campo de poderes de nosso continente. O <bolivarianismo> tomou o lugar
do populismo latino-americano se constituindo como um campo de poderes
antagônico ao campo de poderes norte-americano. Na Bolívia, o indígena pobre se
tornou o poder da soberania popular que fabricou um Estado inédito, entre nós,
e uma <economia popular progressista>, onde o pobre é protagonista da
história econômica. O campo da direita boliviana oligárquico, em aliança com os
Estados Unidos, através de um golpe de Estado militar-policial, vem procurando
destruir o bolivarianismo indígena, mesmo que isso signifique destruir o país.
As
Américas para os norte-americanos é o símbolo político de uma história que, com
o neoliberalismo, mergulhou a A. L. em uma espécie de novo subdesenvolvimento
capitalista na periferia do capitalismo globalizado cibernético.
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