sábado, 10 de março de 2018

HISTÓRIA


José Paulo

DOS estados DE VIOLÊNCIA DO HOMEM E ESCRAVATURA

Abra o dicionário de latim e consulte a palavra homo. Em Plínio, homo é o homem, o gênero humano. Ciências humanas significa ciência do homem, seguindo Plínio. Plínio deixou seu traço na cultura ocidental.

Na arqueologia do saber, Michel Foucault trabalha a partir da ciência do homem, onde o homem é o sujeito e a mulher inexiste como sujeito da representação. A representação é o centro tático do homem. Mas e se o sujeito é a passagem das massas do socius pelos estados de violência da história das intensidades do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo? Demos um salto brusco do todo para a não-toda, do gozo fálico para o gozo da mulher, da representação do desejo para o desejo sem representação.  

O que é o socius?   O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inengendrado, o inconsumível; instinto de morte é o seu nome (Deleuze: 20). Segundo a doutrina de Schreber, a atração e repulsão produzem intensos estados de nervos que preenchem o corpo sem órgãos efeitos em graus diversos, e pelos quais passa o sujeito-Schreber, devindo mulher e devindo muitas coisas ainda, num círculo de eterno retorno. (Deleuze: 34). Buscamos o corpo pleno determinado como socius, que pode ser o corpo da terra, o corpo despótico, ou o capital. Ainda mais, a superfície de registro das intensidades plenas.

O corpo sem órgão do capital neocolonial do terceiro-mundo por atração e repulsão encontra-se em estados de violência intensos onde um sujeito que não é neurótico (“é papai, é mamãe”) e que não é esquizo (“então é homem ou mulher”, “então é mulher em corpo de homem”) o atravessa e cai como resíduo ou na cultura mundial ou no mundo-da-vida em geral.

Qual é, enfim, tal sujeito como efeito da revolução do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo?

O sujeito é a passagem das massas do socius gramatical pelos estados de violência do homem do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo! 

O sujeito é a mulher como resíduo que sobra da passagem dos estados de violências do capital neocolonial do terceiro-mundo. Não há nada de feminismo neste sujeito-mulher, pois, ele é a impossibilidade de adquirir formas já que ele é não-toda. Um sujeito que diz para si “então eu não sou isso”: homo. Também “não sou isso”: LGBT. Não sou eu na ciência do homem, nas ciências humanas; não faço parte da representação: “isso é” coisa de macho. Não falo pela linguagem da representação ou das similaridades, ou das identidades LGBT.

Vivo na transição e transação dos estados de violência do homo, da ciência do homem, das ciências humanas, sem ser homem, sem ser humana. Sou contrahomo, contrahumana, sem chegar ao inumano, ao mundo das máquinas: ou psicótica-paranoica, ou miraculosa, ou celibatária.

Trata-se de um sujeito que não é um milagre da economia política fazendo pendant com a máquina desejante. É verdade que o Marquês de Sade quis tirar partido daquilo que como sujeito ele não sabia o que é! Daí ligarem a não-toda às perversões da teologia do Diabo do romantismo clássico alemão. Hitler quis extrair de mim (mulher ariana) uma raça de senhores capazes de dominar o planeta.
Como resíduo dos estados de violência do homem encontro em Hobbes um autor profícuo. Antes diz Proudhon: a propriedade privada é um roubo. A propriedade é um dos estados de violência do homem, no qual a mulher não tem qualquer participação.

Marx estabelece a relação entre propriedade e estados de violência no A ideologia alemã:
La primeira forma de la propriedad es, tanto en el mundo antiguo como en la Edad Media, la propriedad tribual, condicionada entre los romanos, principalmente, por la guerra y entre los germanos por la ganadería”. (Marx. 1974: 71).

O tráfico de gado sempre envolveu uma certa quantidade de violência. Os estados de violência do homem como um elemento colonial sulista (dos estados de violência da história do Brasil de onde saiu o nosso condottiere gaúcho Getúlio Vargas) do Brasil colonial são descritos pelo nosso marxista Nelson Werneck Sodré:
“De sorte que, no Sul pastoril, as Ordenanças continuam a constituir a ossatura do sistema militar. Elas encontram naquela área todas as condições para ganhar uma amplitude que as torna o elemento necessário e indispensável. Porque, na luta pelo gado e, na luta pelas pastagens, surge uma organização militar, moldada pelas Ordenanças, em que o padrão antigo, dos primeiros tempos de colonização – a população em armas – assume as proporções naturais e conjuga-se com a situação regional”. (Sodré: 55).   

Trata-se da história do tomar a coisa que envolve a vontade de violência para tal fato.

Quanto a propriedade privada, ela começa com a violência da propriedade mobiliária escravagista e a desintegração da comunidade:
“La verdadera propriedad privada, entre los antigos, al igual que en los pueblos modernos, comienza con la propriedad mobiliaria. (La esclavitud y la comunidad) (el dominium ex jure quiritium). (Marx. 1974: 71).

O direito privado faz pendant com o desenvolvimento da propriedade privada a partir de estados de violência contra a comunidade:
El derecho privado se deserrola, conjuntamente con la propriedad privada, como resultado de la desintegración de la comunidad natural”. (Marx. 1974: 72).

O imaginário político do discurso do direito estabelece uma relação direta entre direito privado e violência:
“El derecho privado proclama las relaciones de propriedad existentes como el resultado de la voluntad general. El mismo jus utendi et abutendi (direito de usar e de abusar, ou seja consumir ou destruir a coisa) expresa, de una parte, el hecho de que la propriedad privada ya no guarda la menor relación con la comunidad y, de otra parte, la ilusión de que la misma propriedad privada descansa sobre la mera voluntad privada, como el derecho a disponer arbitrariamente de la cosa”, (Marx. 1974: 73).

Então a propriedade privada é o abusar, consumir ou destruir a coisa (abuti), mesmo esta coisa sendo um escravo, um indivíduo vivo humano, um homem ou uma mulher. Abusar sexualmente da mulher é um direito dos estados de violência da propriedade privada no modo de produção escravagista.     

Marx e Engels dizem que a estrutura econômica impõe limites ao abuti:
  “En la práctica, el abuti tropieza con limitaciones económicas muy determinadas y concretas para el proprietario privado, si no quiere que su propriedad, y con ella su jus abutendi, pasen a otras manos, puesto que la cosa no es tal cosa simplemente en relación con su voluntad, sino que solamente se convierte  en verdadera propriedad en el comercio e independientemente del derecho a una cosa”. (Marx. 1974: 73).

Nem a vontade armada e nem o direito definem a verdadeira propriedade. A relação de propriedade depende da estrutura econômica, daí o caminho do homem para fora dos estados de violência articulados à propriedade e ao direito privados.

Marx trabalha contra o imaginário ideológico que define a história por estados de violência do homem:
“Nada más usual que la idea de que en la historia, haste ahora, todo há consistido en la acción de tomar. Los bárbaros tomaram el Imperio romano, y con esta toma se explica el paso del mundo antiguo al feudalismo. (Marx. 1974: 74).

O usual até a economia política era pensar a história como efeito dos estados de violência do homem. Marx e Engels mostram que se trata de uma ideologia historiográfica ou de uma filosofia da história ideológica.

O desenvolvimento das forças produtivas e a as formas reais de propriedade privada - indústria, comércio (Marx. 1974: 74, 75) e sua superestrutura ideológica do direito constituem uma subtração, paulatina, da história como o tomar a propriedade privada do proprietário original vivida imersa em estados de violência e vontade de violência do homem. Percebam que a economia política, Marx e Engels não falam da propriedade privada e da vontade de violência associada a mulher. A mulher é o não-toda inexistente!    
                                                                          II

O ensaio O Manifesto do Partido Comunista diz que a história do Ocidente é a história das lutas de classes. A sociedade de classes inscreve uma sociologia fazendo pendant com o desenvolvimento das forças produtivas, as formas de propriedade privada e as formas do direito privado. A ideia de civilização de Marx (em um contraponto aos estados de violência da propriedade como barbárie) é dialética materialista em um contraponto ao juízo de civilização ideológico, idealista. Porém ela pode alcançar a stásis.

O capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo é aquele que faz pendant com a sociedade pós-capitalista como sociedade do conhecimento e das organizações no primeiro-mundo desenvolvido. (Drucker: 3-42). A característica central do capitalismo profundo neocolonial significa que ele conseguiu desintegrar as lutas de classes como stásis, pois, a sociedade de classes deixa de existir como lutas de classes no Ocidente. No lugar das lutas de classes como stásis, entra os estados de violência da história gramatical de da sociedade de subclasses, ersatz de classe social. (Ianni: 75, 78, 175).  

O primeiro-mundo desenvolvido capitalista moderno continua existindo em territórios geoeconômicos. Porém o fundamento dele significa que ele é o gramático rhetor percipio que pilota em um território mundial a territorialização ampliada do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo. Pilota também a desterritorialização do capitalismo moderno do primeiro-mundo em países centrais da economia política ocidental e a reterritorialização do capitalismo moderno no Oriente asiático. (Ianni: 15-16):
“Ainda não está claro se estamos prestes a assistir a uma troca de guarda no alto comando da economia mundial capitalista e ao início de um novo estágio de desenvolvimento capitalista. Mas a substituição de uma região ‘antiga’ (a América do Norte) por uma ‘nova’ (o leste asiático) como o centro mais dinâmico dos processos de acumulação de capital em escala mundial já é uma realidade”. (Arrighe: 344).

O fundamental é que o capitalismo chinês é a sintetização socialista do capitalismo moderno ocidental como acumulação ampliada de capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo. Na África, “proprietários privados socialistas” neocolonizadores chineses se alimentando (comendo a carne) de africanos pretos é mais do que o símbolo do capitalismo profundo.                
                                                                                        ENGELS
                                                                                       III                                                                               
No livro Anti-Dühring, Engels dedica páginas memoráveis à visão da história como vontade de violência fazendo pendant com a propriedade privada? Não para por aí. Sob a influência do livro O capital, Engels discute se a história tem como determinação em última instância a política ou a economia. Durante o século XX, o marxismo ocidental tratou o livro de Engels como paradigma da concepção economicista da história!

No jornalismo, na classe política, na ciência do homem e no imaginário político popular, os estados de violência surgem como determinando a história brasileira do final da segunda década do século XXI. Os estados de violência do homem parecem se constituir em um fator dissipador da sociedade brasileira. Segundo a leitura de Dühring feita por Engels, a violência remete para a política e, assim, os estados de violência do homem fazem da política o fator determinante em última instância da conjuntura brasileira atual.

O Brasil fez do Anti-Dühring de Engels um livro da atualidade do nosso século XXI. Passemos a ele com vagar, pois, entre nós, é fácil metabolizar que a política (condensada nos estados de violência do homem) encontra-se no comando da história conjuntural e, portanto, no comando da economia na gramática de Lenin.

A discussão inicia-se com uma citação de Dühring em diálogo e luta com Marx:
“Alguns dos recentes sistemas socialistas tomam como princípio diretor a falsa aparência de uma relação completamente invertida – tão invertida que salta aos olhos -, fazendo por assim dizer sair de situações econômicas as infraestruturas políticas. Ora, esses efeitos de segunda ordem existem sem dúvida como tais, e são atualmente os mais sensíveis. Todavia, devemos procurar o elemento primordial na violência política imediata e não em uma força econômica indireta”. (Engels. 1950: 191).

Se não ficou claro, eis uma outra citação:
“e como, por outro lado, toda a ˂propriedade baseada na violência>, ainda hoje em vigor, se alicerça nessa escravização primitiva – é evidente que todos os fenômenos econômicos se explicam por intermédio de causas políticas, ou seja, da violência”. (Engels. 1950: 191-192).

Dühring e Engels consideram a propriedade baseada na violência um estado de violência senhor-escravo (discurso do maître lacaniano) primitivo. Lacan diz que o discurso do capitalista é uma forma de discurso do maître na época moderna, se ele é o discurso da burocracia. (Lacan. 1991:33-34).

O discurso do maître é uma forma de dominação primitiva que faz pendant com os estados de violência do homem. A revolução do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo não recarrega o discurso do maître como ser do ente da realidade dos fatos mundial? Só que no século XXI é um discurso do maître como a organização da sociedade pós-capitalista no lugar da burocracia como fator desestabilizador (Drucker: 34) das nações, dos povos-nações, da sociedade das subclasses sociais gramaticais. A subclasse é o novo gramático da história do capitalismo profundo neocolonial.   
De mãos dadas com os estados de violência da história capitalista do discurso do maître da sociedade pós-capitalista, Dühring parece abalar a concepção de história de Engels:
“Deste modo, o exemplo pueril que o Sr. Dühring forjou por suas próprias mãos para provar que a violência é ˂o elemento histórico fundamental> demonstra que a violência é apenas o meio, ao passo, que o proveito econômico é o fim. E na mesma medida em que o fim é ˂mais fundamental> do que o meio empregado para o alcançar, também o aspecto econômico da relação é mais fundamental na História do que o aspecto político”. (Engels. 1950: 192).

Não podemos esquecer que a estratégia de Lenin na primeira fase da revolução russa foi a política no comando da economia. E que Stalin fez a história da revolução russa pondo no comando os estados de violência do homem contra o campesinato.

Engels leva muito a sério as ideias de seu oponente:
“Logo, se o Sr. Dühring chama à propriedade atual uma propriedade baseada na violência e a qualifica de ˂forma de dominação que talvez não se baseie apenas na exclusão do próximo do uso dos meios naturais de existência, mas também, o que é muito mais importante, na sujeição do Homem a um serviço de escravo>, limita-se a misturar alhos com bugalhos. A sujeição do Homem a um serviço de escravo sob todas as suas formas supõe que quem submete dispões de meios de trabalho sem os quais não poderia utilizar o homem submetido e ainda, na escravatura, que dispõe de meios de subsistência sem os quais não poderia conservar o escravo vivo, isto é, em qualquer caso, a posse de determinados meios de fazer fortuna acima da média. Em toda hipótese é evidente que podem ter sido roubados, quer dizer, ser fruto da violência. Todavia, não é de modo algum necessário que seja essa a sua origem. Podem ter sido adquiridos pelo trabalho, pelo roubo, pelo comércio ou pela fraude. Contudo, para poderem ser roubados é necessário que primeiro tenham sido ganhos pelo trabalho”. (Engels. 1950: 193-19).

Engels admite que a acumulação primitiva de capital está associada aos estados de violência que expropriam a riqueza acumulada pelo trabalho. No entanto, o conceito de lutas de classes inaugura a civilização no lugar da barbárie dos estados de acumulação da riqueza pela violência. O significante luta burguesa vai além de um conceito sociológico de luta de classes.

A revolução burguesa acontece:
“na França, derrubando diretamente a nobreza; na Inglaterra, aburguesando-a cada vez mais e absorvendo-a até se transformar na sua grinalda decorativa. E como conseguiu? Graças a uma simples transformação do ‘estado econômico’ a que se seguiu (com mais ou menos rapidez, a bem ou a mal) uma alteração nas situações políticas. A luta da burguesia contra a nobreza feudal tem sido a luta da cidade contra o campo, da indústria contra a propriedade fundiária, da economia monetária contra a economia natural. E as armas decisivas do burguês nessa luta foram os seus meios de domínio econômico constantemente aumentados pelo desenvolvimento da indústria, primeiro artesanal, mas tornada progressivamente manufatureira, e pela expansão do comércio. Durante toda essa luta, o poder político se encontrava nas mãos da nobreza, com exceção de uma era na qual o poder real utilizou o burguês contra a nobreza para manter em xeque uma classe contra outra. Mas a partir do momento em que o burguês, politicamente ainda impotente, começou, graças ao aumento de seu poder econômico, a tornar-se perigoso, a realeza aliou-se novamente à nobreza e provocou com isso, primeiro em Inglaterra e depois na França: a revolução burguesa”. (Engels. 1965: 196).

A luta de classe da burguesia é parte da civilização europeia que caminha na transformação da estrutura da história sem pôr os estados de violência do homem no comando da história? Para o Marx do O 18 do Brumário de Luís Bonaparte, os estados de violência do homem fazem parte da revolução burguesa tanto quanto a luta pacífica do burguês na concepção de Engels.  

Em Marx, os estados de violência políticos significam o abrir caminho na história moderna como grande tragédia histórica capitalista. (Marx. 1974: 336). Não se faz a omelete sem quebrar os ovos!
                                                                                                 IV

Na relação entre violência e economia política moderna, os estados de violência aparecem domesticados:
“Todavia, a introdução da pólvora na artilharia e a adoção de armas de fogo não foi de modo algum um ato de violência; foi um progresso industrial e, logo, econômico. A indústria é sempre a indústria, se orientando para a produção ou para a destruição de objetos. E a introdução das armas de fogo teve um efeito revolucionário na própria condução da guerra e também nas relações políticas – relações de dominação e sujeição. Para obter a pólvora e as armas de fogo era necessário dispor da indústria e do dinheiro, e uma e outro pertenciam ao burguês da cidade. Por isso, as armas de fogo foram desde o início as armas da cidade e da monarquia triunfante apoiada nas cidades contra a nobreza feudal. As muralhas até então impenetráveis dos castelos dos nobres ruíram debaixo do fogo dos canhões do burguês e as balas dos arcabuzes burgueses transpassaram as couraças dos cavaleiros”. (Engels. 1950: 200).

No Brasil, a cidade do burguês rico está sob ataque das massas de subclasses lumpesinais criminais dos de baixo. Tais massas tem a sua disposição a indústria armamentista e dinheiro de transações econômicas ilegais. A luta entre as subclasses lumpesinais e o burguês rico pode levar a desintegração (está levando) da economia política legal da cidade. Tais lutas subclasses são parte da acumulação primitiva do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo. Onde isso vai dar?

Engels trata militarmente a passagem do domínio da nobreza para o domínio do burguês:
“Justamente com a cavalaria couraçada da nobreza, desfez-se também o domínio da nobreza; com o desenvolvimento da burguesia, a infantaria e a artilharia tornaram-se cada vez mais as armas decisivas; sob a influência da artilharia, a arte da guerra teve que anexar uma nova subdivisão de características absolutamente industriais: o corpo de engenheiros militares”. (Engels.1950: 200). 

Vivemos um momento militar na luta do burguês rico contra as subclasses lumpesinais. Toda uma economia política lumpesinal funciona na grande cidade ao lado (e pôr dentro) da economia política legal. Os preços dessa economia lumpesinal são mais baratos, pois, ela expropria a economia política legal e não paga impostos. Parcelas consideráveis da população da cidade são beneficiadas pela economia política lumpesinal. O contrabando assume proporções ciclópicas. Trata-se de uma economia política ilegal dentro da economia política legal.

A economia política das ilegalidades dominantes dos de cima e dos de baixo tem a sua própria forma política (Kriminostat) cuja luta é a sintetização do Estado legal. Tem sua própria forma econômica avançada (o capitalismo criminoso de Platt). Em países da América Latina (México, Venezuela, Bolívia, Peru etc.) a sintetização lumpesinal criminal já parece ter alcançado um ponto de não-retorno. O capitalismo criminoso avança inclusive na sintetização economia legal e ilegal nos EUA. Todas as fronteiras civilizatórias construídas pelo capitalismo moderno são despedaçadas pedra por pedra.

É preciso ficar claro a relação entre a economia política industrial e os estados de violência do homem:
“Em resumo, sempre e em todos os casos são as condições e os meios de domínio econômico que servem à ˂violência> para esta obter êxito, sem o qual a violência deixa de ser violência”. (Engels. 1950: 204).

A evolução da história ocidental desagua na civilizada sociedade de classes moderna:
“Se com a sua dominação do homem pelo homem, condição prévia da dominação da Natureza pelo Homem, o Sr. Dühring quer apenas dizer, em geral, que todo o nosso estado atual, o nível de desenvolvimento alcançado presentemente pela agricultura e pela indústria, é o resultado de uma história social que se desenvolve com base em antagonismos de classe, em relação de dominação e escravatura, diz qualquer coisa há muito convertida em um lugar-comum, desde a publicação do Manifesto Comunista”. (Engels. 1950: 210).

Percebe-se o discurso do maître pela referência à escravatura. A escravatura é um recurso evolutivo na história universal. Há uma transdialética gramatical entre a escravatura (discurso do maître) e a época moderna. E a escravatura é um efeito do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho fazendo pendant com os estados de violência do homem:
“A produção se desenvolve a ponto da força de trabalho humano poder produzir mais do que o necessário à sua sobrevivência; existiam os meios para manter mais forças de trabalho e também para as ocupar; logo, a força de trabalho adquire um valor. Mas a comunidade a que pertencia e a associação de que fazia parte não forneciam forças de trabalho disponíveis, um excedente de força de trabalho. Em contrapartida, a guerra fornecia o excedente, e a guerra era tão velha como a existência simultânea de diversos grupos de comunidade justapostos. Até ali, como ninguém sabia o que fazer dos prisioneiros de guerra, limitavam-se a abatê-los, e em tempos ainda mais recuados comiam a carne do inimigo. Mas ao nível do ˂estado econômico> então alcançado, os prisioneiros de guerra adquiriram um valor; pouparam-lhes a vida e apropriaram-se do seu trabalho. Assim, a violência, em vez de dominar a situação econômica, se viu, ao contrário, posta por força das circunstâncias ao serviço da situação econômica. Estava inventada a escravatura”. (Engels. 1950: 212).

A relação entre trabalho e guerra significa um recurso evolutivo que instala a escravatura:
“ O caso é claro; enquanto o trabalho humano era ainda tão pouco produtivo que só fornecia poucos excedentes para além dos meios de subsistência necessários, o aumento das forças produtivas, a ampliação do comércio, o desenvolvimento do Estado e do direito, a instituição da arte e da ciência só eram possíveis graças a uma divisão reforçada do trabalho que tinha forçosamente de se basear na grande divisão do trabalho entre as massas encarregadas do trabalho manual simples e os poucos privilegiados que se ocupavam da direção do trabalho, do comércio, dos negócios do Estado e, mais tarde, chamariam a si as ocupações artísticas e científicas. Ora, a forma mais simples, mais natural, de semelhante divisão do trabalho era precisamente a escravatura. Tendo em conta os antecedentes históricos do mundo antigo, e em especial do mundo grego, a marcha progressiva para uma sociedade fundada em antagonismos de classe só podia se realizar sob a forma da escravatura”. (Engels. 1950: 213-214).

As lutas de classes da modernidade fazendo pendant com o desenvolvimento das forças produtivas e a produção de mais-valia relativa alteraram a paisagem do capitalismo do século XIX e metade primeira do século XX.

O capitalismo mundial da segunda metade do século XX viu se desenvolver uma classe gramatical intelectual como força produtiva tecno-científica que gerou o espaço do mundo digital. Bakunin fez uma profecia racional weberiano (Weber: 316):
“Um corpo científico, ao qual se tivesse confiado o governo da sociedade, acabaria logo por deixar de lado a ciência, ocupando-se de outro assunto; e este assunto, o de todos os poderes estabelecidos, seria sua eternização, tornando a sociedade confiada a seus cuidados cada vez mais estúpida e, por consequência, mais necessitada de seu governo e de sua direção.
Mas o que é verdade para as academias científicas, o é igualmente para todas as assembleias constituintes e legislativas, mesmo quando emanadas do sufrágio universal. Este último pode renovar sua composição, é verdade, o que não impede que se forme, em alguns anos, um corpo de políticos, privilegiados de fato, não de direito, que, dedicando-se exclusivamente à direção dos assuntos públicos de um país, acabem por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquia política. Vejam os Estados Unidos e a Suíça”. (Bakunin: 33).

O Brasil não cabe como luva na profecia racional de Bakunin?

Como aristocracia intelectual autotélica, ela oferece o modelo orgânico para a classe política autotélica oligárquica. Trata-se de uma certa espécie de estado de violência política autotélico objetivo, pois o processo eleitoral da democracia liberal não é capaz de transformar democraticamente tal estado de coisas da economia política libidinal oligárquica do capital. (Lyotard. 1974: 241-278).

É a escravatura política do povo pelo discurso da servidão voluntária. (La Boétie: 45-54). O efeito gramatical mais espetacular é a subtração do significante legitimação via soberania popular para a oligarquia política que, por isso, se torna autotélica sem necessidade de legitimação na vida real da política parlamentar ou governamental. Na política não cabe legitimação por paralogia. (Lyotard. 1986: 111-120).  

A escravatura política faz pendant com o discurso do maître como efeito da revolução do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.   

Ainda podemos falar um pouco mais da relação da violência com a história:
"É, portanto, claro o papel desempenhado na história pela violência, relativamente à evolução econômica. Em primeiro lugar, toda a violência política assenta primitivamente numa função econômica de caráter social e aumentada na medida em que a dissolução das comunidades primitivas transforma os membros da sociedade em produtores privados, isto é, torna-os ainda mais estranhos aos administradores das funções sociais comuns. Em segundo lugar, depois de se tornar independente em relação à sociedade, depois de se converter de serva em senhora, a violência política pode agir em duas direções: ou atua no sentido e na direção da evolução econômica normal, e neste caso não só não se verifica o conflito entre ambas como também se acelera a evolução econômica; ou a violência atua contra a evolução econômica e neste caso, com algumas exceções recentes, sucumbe regularmente perante o desenvolvimento econômico”. (Engels. 1950).

NO caso brasileiro, a violência atua contra o sistema industrial, uma economia industrial que, além disso, entrou em decadência; a violência atua contra o comércio (setor de serviço) levando à falência a pequena burguesia das grandes, médias e pequenas cidades; atua inclusive contra o Banco. A violência atua, em certo, grau contra a evolução econômica e não há perspectiva dela sucumbi perante o desenvolvimento econômico do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.

Será que a violência atual pode ser a parteira da história como violência da revolução do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo? Nesta situação, a violência desempenharia um papel revolucionário positivo até como teologia materialista racional:
“Para o Sr. Dühring, a violência é o mal absoluto; para ele o primeiro ato de violência é o pecado original; toda a sua argumentação não passa de uma choradeira sobre a forma como até aqui toda a História tem sido contaminada pelo pecado original, sobre a infame corrupção de todas as leis naturais e sociais por esse poder diabólico: a violência. Mas que a violência ainda desempenha na História outro papel, um papel revolucionário; que segundo as palavras de Marx, seja a parteira de toda a velha sociedade que traz no ventre outra nova; que seja o instrumento graças ao qual o movimento social leva de vencida e despedaça formas políticas caducas e mortas – a tal respeito o Sr. Dühring não tuge nem muge”. (Engels. 1950: 215-216)

Os estados de violência do regime 1988 foi o parteiro de uma nova forma política que para a consciência do país letrado é o real como impossível de ser suportado. A democracia liberal é a aparência de semblância de uma outra forma política RSI (Real/Simbólica/Imaginário). Trata-se de uma democracia representativa lumpesinal como sucedâneo da democracia direta lumpesinal da Grécia antiga. Fala-se tanto em classe política perigosa, pois, organização criminosa, e se esquece que o modelo político vigente, o filho, é feito à imagem do Pai, ou melhor, é personificação da classe política perigosa. Trata-se da subclasse gramatical dos de cima!  

A revolução violenta do capitalismo profundo neocolonial pode ser uma conquista comparável à relação entre povos:
“ Qualquer conquista efetuada por um povo mais atrasado perturba profundamente o desenvolvimento econômico e aniquila numerosas forças produtivas. Mas na enorme maioria dos casos de conquistas perduráveis, o conquistador mais atrasado é forçado a adaptar-se ao ˂estado econômico> mais desenvolvido, visto depender da conquista; acaba mesmo por ser assimilado pelo povo conquistado e até por ser obrigado, quase sempre, a adotar a língua dele. Não obstante, nos países em que (excetuando os casos de conquista) a violência interna do Estado entra em conflito com a sua evolução econômica (como até aqui se tem verificado em determinado estágio relativamente a quase todo o poder político), a luta salda-se sempre pelo derrube do poder político”. (Engels. 1950: 215).

O Brasil é um caso no qual a violência interna do Estado entra em conflito com a sua evolução econômica em direção ao capitalismo profundo neocolonial. A perspectiva da luta signifique, talvez, a ruína do poder político como tal.      
                                                                 HOBBES

Para não dizerem que não falei de Hobbes.

A violência é um fundamento do discurso hobbesiano (Lupus est homo homini lupus): “Portanto tudo aquilo que é valido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem”. (Hobbes: 80).

Hobbes diz:
“Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalhas é suficientemente conhecida. (Hobbes: 79).

Os estados de violência Lupus est homo homini lupus se constituem nos espaços objetivo e subjetivo do trans-sujeito gramatical. Eles são o que não para de não se inscrever no domínio simbólico. Só um poder comum gramatical faz cessar os estados de violência Lupus est homo homini lupus.

O poder gramatical comum é um fenômeno teológico, pois, o Estado é o Deus mortal. (Hobbes: 110).
Hobbes diz:
“A única maneira de instituir tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeito, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comum”. (Hobbes: 109).

O Leviatã se define pelos estados de violência do homem não para de não se inscrever como gramático teológico, ou seja, Deus mortal. Quanto ao problema da relação entre violência e história, o texto mais seguro para tratar disso é o de Philonenko.

Partindo do gramático da guerra: l’on saisisse comme langage toute conduite porteuse de significations susceptibles d’être comprises par un autrui quelconque”. (Philonenko: 183).

A relação entre guerra e história define a gramática de estados de violência do homem: “La guerre n’est pas lutte. Le propre de la guerre est d’être une action violente s’inscrivant dans une histoire. Le terme qui doit retenir l’attention dans cette définition est le mot histoire. La guerre ne se sépare pas de l’histoire et toutes les actions violentes ne sont pour autant des actions des actions de guerre: c’est seulement quand une action violente s’inscrit dans l’histoire, lorsqu’elle s’écrit en s’inscrivant, qu’elle atteint la dimension de la guerre”. (Philonenko: 184).

Os estados de violência do homem podem ser àquele da luta ou da guerra. Eles podem ser estados de violência da política ou da guerra (estados de violência inscritos na história). Em relação aos estados de violência do homem na política, estes não se inscrevem na história. A rigor, não há história política da ciência do homem. Marx pensou a inscrição da política na história através das lutas de classes que podem assumir a forma da guerra entre as classes: ciência da história!  

No século XXI, os estados de violência permanecem como pólemos e não mais como violência política na guerra ou stásis. (Derrida: 110). DA luta política foi subtraído a luta de classe e, portanto, a guerra entre as classes sociais. Todavia, os estados de violência políticos se referem a subclasse como stásis, como violência inscrita na história.

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