terça-feira, 20 de março de 2018

EXISTE UMA HISTÓRIA DA MULHER?



José Paulo


PSICANÁLISE E MARXISMO: mai 1968

A psicanálise marxista mai 1968 de Lacan começa no Seminário 16 (1968-1969). Há vestígios dela até no Seminário 20 (1972-1973). Lacan, Derrida, Deleuze e Guattari, Foucault, Baudrillard constituem os gramáticos da filosofia parisiense de uma conjuntura cultural que começa na década de 1960 e alcança seu apogeu no final da década de 1970.

O livro Anti-Édipo (1972) é um momento de impulsão materialista da psicanálise fazendo pendant com o pensamento de Marx.

Falando da psicanálise marxista de Reich e de Reich:
“Ele retorna necessariamente a um dualismo entre o objeto real racionalmente produzido e a produção fantasmática do irracional. Renuncia, pois, a descobrir a medida comum ou a coextensão do campo social e do desejo. É que, para fundar verdadeiramente uma psiquiatria materialista, faltava-lhe a categoria de produção desejante, à qual o real fosse submetido tanto sob suas formas ditas racionais quanto irracionais”. (Deleuze. 2010: 47).

Reich ignora que: “Há tão somente o desejo e o social, e nada mais. Mesmo as mais repressivas e mortíferas formas de reprodução social são produzidas pelo desejo”. (Idem: 46). Parece desconhecer que: “a produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”. (Idem: 46).

A produção social (relações de produção e forças produtivas) é aquela das massas-trabalho (econômico, político, cultural) que se constituem em produção de desejo da família, do Estado, do capitalismo.

Como Aristóteles vê a produção da família e do Estado na Grécia?

A produção da família é produção de um liame natural entre aquele que é naturalmente governante (aquele que é capaz de prever as coisas com sua mente é naturalmente o governador e maître ou chefe) e aquele que é súbdito e escravo: aquele que é capaz de fazer coisas com seu corpo.

Maître e escravo tem um interesse comum na ordem da conservação recíproca senhor e escravo que faz pendant com a forma da conservação da espécie homem e mulher:
“Así, pues, la primera unión de personas a que da origen la necesidad  es la que se da entre aquellos seres que son incapaces de viver el uno sin o otro, es decir, es la unión del varón y la hembra para la continuidad de la especie –y eso no por un propósito deliberado, sino porque en el hombre, igual que en los demás animales y las plantas, hay un instinto natural que desea dejar detrás de si otro ser de la misma clase que uno mismo – y la unión del que naturalmente es gobernante y del que naturalmente es súbdito, pues el que es capaz de prever las cosas con su mente naturalmente es gobernador y señor o chefe, y el que es capaz de hacer esas cosas com su corpo es naturalmente súbdito y esclavo; por eso este señor, y este esclavo tienen un interés común”. (Aristoteles: 677).

A mulher do maître não é escravo; ela é subdito, que está sujeito a vontade do maître. Subdito é o ersatz de dito; a mulher não é dito, é ersatz de dito, substituto do dito. O dito estabelece o sujeito como efeito do significante homem; o subdito é o sujeito mulher (ersatz de sujeito, subsujeito) como efeito do significante homem igual a maître. A nota crítica 6 da página 676 da edição consultada diz que a ideia de laço natural definindo a família é um efeito da ideologia patriarcal no discurso aristotélico.

A família é produção social de desejo patriarcal das massas de homens que põe e repõe a mulher no lugar do subsujeito, ersatz de sujeito que é distinto do escravo que equivale a coisa.

Diz Aristóteles:
“Según esto, pues, es evidente que la ciudad es una cosa natural y que el hombre es por naturaleza un animal político”. (Idem: 679).

A ciudad é a cidade-Estado ou polis perfeita, pois o homem é anthropos physei politikon zoon!
“Finalmente, la comunidad compuesta de vários pueblos o aldeas es la polis perfecta. Esa ha conseguido al fine el límite de una autosuficiencia virtualmente completa, y así, habiendo comenzado a existir simplemente para proveer la vida, existe actualmente para atender a una vida buena”. (Idem: 678-679).

A filosofia política de Aristóteles é um pensamento naturalista?

Clémant Rosset tem dúvidas sobre o naturalismo grandiloquente aristotélico:
“Para Aristóteles, natureza e arte constituem noções intercambiáveis ao ponto de ser legítimo interrogar se o modelo artificial não inspira a concepção naturalista. É verdade que Aristóteles insistentemente diz o contrário: a produção artificial deve sempre aprender com a produção natural, se tratando da produção técnica, da produção estética (teoria da mimésis, na Poética) ou da produção de um Estado (o livro 1 da Política ressalta o caráter natural e não contratual das relações sociais fundamentais). Todavia, por outro lado, é fácil mostrar que o modelo natural ao qual Aristóteles se refere é concebido em termos artificialistas; a natureza produziria seus produtos naturais exatamente como o homem produz seus produtos artificiais (...) Também é fácil demonstrar que, em Aristóteles, a visão naturalista é tributária de uma concepção política, e não ao contrário”.   (Rosset: 240).

A natureza é natureza do homem; o homem é o sujeito-maître do discurso do senhor. A natureza é um efeito do significante discurso do maître. O naturalismo é tributário de um discurso artificial, e não o inverso.

Rosset põe e repõe a produção das formas como família e Estado como produção social de desejo em Aristóteles. E também as formas homem (aquele que governa) e mulher (aquela que é governada sem ser escravo) como sinal de civilização, pois, só o bárbaro equivale mulher e escravo. Assim:
“es normal que los griegos gobernaran a los bárbaros”. (Aristoteles: 677).

A produção social de desejo da posição da mulher na antiguidade (subdito ou ersatz de sujeito, distinto de escravo) define a fronteira ente civilização e barbárie. No entendimento do Anti-Édipo: “Na verdade, a produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”. (Deleuze. 2010: 46).
                                                                     II

A propósito do significante homem. Falta de desejo no significante (Deleuze. 2010: 43) quer dizer que há falta de desejo no discurso do inconsciente homo. O objeto a ou objeto parcelar é a máquina de desejo que irá tampar o buraco no campo simbólico, pois, todo discurso é lacunar, se ele o é como se fosse a estrutura do discurso do inconsciente. (Althusser: 23). Como objeto de desejo faltante no discurso, a mulher é substituída pelo objeto a - ersatz de objeto de desejo mulher. Assim, o governante civilizado do primeiro-mundo desenvolvido capitalista pode governar os bárbaros do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo dentro e seu próprio território.

E como explicar a China neste contexto? Contexto no qual a China desliza da barbárie capitalista e caminha para ocupar o lado do capitalismo desenvolvido de primeiro-mundo no Oriente! Lacuna no discurso ocidental capitalista?

A revolução maoísta na China alterou o lugar da mulher, ao despedaçar os estados de violência patriarcal asiático. No final, a revolução socialista acabou sendo uma revolução em prol da mulher. A revolução leninista tem claramente praticado uma política do lado da mulher. Tal fenômeno ainda não foi gramaticalizado pelo movimento mulher no Ocidente.

A revolução socialista se realiza contra o Um? O Um é o sucedâneo do homo como classe dominante. O Um remete para o discurso do maître para a além da dominação como subjugação pela força bruta. O maître encontra-se na própria língua como gramático rhetor percipio. A relação entre o gramático e as massas (homem ou mulher) se faz pela transferência (relação de amor) ou pela contratransferência (relação de ódio).

As massas amam o sujeito suposto saber do gramático condensado na língua da política. Quando eles passam a odiar o gramático tal fato significa a des-suposição do saber do rhetor percipio. Trata-se da des-suposição do saber do maître. (Lacan. 1975: 64)

Como multidão, a mulher ama o sujeito suposto saber homo como gramático, como rhetor percipio. Deixou de amar? A transferência da mulher para o homem garante que não se trata apenas de dominação como técnicas de assujeitamento polimorfas. (Foucault. 1997: 24). Trata-se do gozo justo fálico na satisfação da relação entre sujeitos homem e mulher (Lacan. 1975: 61) de onde advém o Um, o sujeito suposto saber na relação transferencial de amor no bojo da língua da política em um sentido forte.

Como sair do campo do domínio do Um? Trata-se de subverter a língua da política transferencial transformando-a em língua contratransferencial. O ódio à articulação da hegemonia do homem assujeitando a mulher pelo sujeito suposto saber significa a des-suposição do gramático homo como rhetor percipio.

A contratransferência é uma des-suposição que deve se realizar justamente no campo da língua. Temos uma ciência do homem ou ciências humanas; não temos uma ciência da mulher; soa ridículo! Ciência do homem significa um campo de sujeito homo suposto saber ao qual a mulher está assujeitada por livre e espontânea vontade, pois, não se trata de dominação. A língua é um campo de sujeito suposto saber transferencial onde a multidão de mulheres se submete ao gramático pelo amor transferencial  ao discurso do maître; o senhor da mulher é o homo; como vimos em Aristóteles, a mulher é subdito!

A articulação da hegemonia é a condição do que Lacan chama de leitura. A mulher lê o sujeito suposto saber. Para articular uma verdadeira leitura da multidão mulher, a mulher talvez lesse melhor na medida em que, desse saber, ela supusesse menos. (Lacan. 1975: 64).

A multidão mulher se estabelece como sujeito no século XXI através da revolta contra o homo e pela passagem dos estados de violência do homem. Daí advém a insistência usual, corriqueira do significante estupro. O estupro define a dominação ou assujeitamento brutal da mulher pelo homem. Tal dominação tem como efeito o sujeito mulher revoltado que descobre que entre os sexos, no ser falante, a relação sexual não acontece, na medida em que em que é a partir daí que se pode enunciar o que vem a ser, a essa relação, em suplência. (Lacan 1975: 63).

A suplência (que pode se anunciar pelo Eros) é suposto tender a fazer só um dessa multidão imensa. O não existe relação sexual é a condição necessária da política como articulação da hegemonia como lugar do amor dedicado ao sujeito suposto saber. Neste sujeito suposto saber, a mulher é subdito, um ersatz de dito em suplência, ou mais exatamente, como complemento, para ela abandonar sua condição de não-toda; ela não é um dito assim como não existe relação sexual.
                                                                                          III 

Se o inconsciente é mesmo aquilo que é estruturado como uma linguagem, é no nível da língua que temos que interrogar o Um. (Lacan. 1975: 63). Como sujeito, a multidão-mulher tem que des-supor a articulação da hegemonia homo no nível da língua em geral e da língua política em particular. Não basta demandar igualdade de gênero! A elementar presidente Dilma Rousseff se autodenominava presidenta e não presidente. A revolução da mulher tem que caminhar no território do gramático, na tela gramatical da política como história universal mística. (Lacan. 1975: 70).   

Como já foi mostrado, o inconsciente não é um fato superestrutural como a ideologia. (Marx. 1974: 136 ). Ele faz pendant com a produção social (relações de produção e forças produtivas) de desejo na história e na política. Hobbes diz que a multidão (soberania popular) fabrica o contrato da representação da política como Um, uma só vontade. (Hobbes: 109). Reich diz que a produção social de desejo da multidão alemã fabricou o nazismo (Deleuze. 2010:  47): Hitler como o gramático rhetor percipio como sucedâneo, na política, da filosofia de Heidegger. A potência do fascismo encontra-se no fato dele ser um ente do discurso do inconsciente que trafega na Alemanha, no Japão, na Itália, no Brasil, na Argentina e em inúmeros países em busca do sujeito suposto saber nacional-socialismo. Trata-se do socialismo feudal. (Badiou: 26).  

Na articulação da hegemonia do amor transferencial, a mulher é posta como sujeito no amor cortês. Ela é a dama no fingimento de que há relação sexual. O amor cortês se enraíza no discurso da féalité, da fidelidade à pessoa: “Este último termo, a pessoa, é sempre o discurso do Senhor, do Maître. O amor cortês é, para o homem, cuja dama era completamente, no sentido mais servil, la sujette, a única maneira de se sair com elegância da ausência da relação sexual”. (Lacan 1975: 65).

Como a mulher pode escapar da armadilha do amor cortês onde ela é a sujeita? Assujeitada ao discurso do maître por via do amor ao sujeito suposto saber?

A filosofia tradicional fez pendant com a teologia onde o Grande Outro (lugar onde vem se inscrever tudo que se pode articular como significante) é produção social de desejo do Bem supremo de Aristóteles. Lacan diz: “se revelará que é no lugar, opaco, do gozo do Outro, desse Outro no que ele poderia ser, se a mulher existisse, que está situado o Ser Supremo, manifestamente mítico em Aristóteles”. (Lacan. 1975: 77). Se a mulher existisse como produção social desejante, ou seja, existisse como mulher nas relações de produção fazendo pendant com as forças produtivas. Trata-se da existência da mulher como crítica da economia política! É simples! Na economia política da mulher não há antagonismo entre gerir uma família e ser parte da força de trabalho fabril ou do setor de serviço. É preciso pensar em uma outra categoria de produtividade do trabalho.  

A mulher sem existir na relação sexual fálica é o segredo da teologia política do Bem Supremo, como mística, em Aristóteles, se ela existisse como produção social desejante da sociedade do homem livre grego.
“C’est en tant sa jouissance est radicalement Autre que la femme a devantage rapport à Dieu que tout ce qui a pu se dire dans la spéculation antique en suivant la voie de ce qui ne s’articule manifestement que comme le bien de l’homme”. (Lacan. 1975: 77).

Aristóteles diz a respeito do Bem Supremo:
“que o homem feliz vive bem e se conduz bem, pois, praticamente definimos a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem”. (Aristóteles. 1992: 25-26). O que define a civilização grega em relação aos bárbaros é também o se conduzir bem em relação a mulher, e o conduzir-se bem da mulher, pois, ela encontra-se, mesmo como subdito, no lugar do Ser Supremo, do Bem. Há uma articulação entre vida privada e vida pública a partir do Bem Supremo como lugar da mulher subdita. O Grande Outro é a vida pública fazendo pendant com a vida privada. Uma música da Bossa Nova diz sobre o Bem Supremo: “é impossível ser feliz sozinho”.

Na atualidade, claro que a produção social do desejo do homem do Bem Supremo é a mulher em carne e osso, pois, está claro para ela que o amor por Deus só pode ser o amor pela mulher. A teologia materialista, racional, gramatical é falar de Deus se ela é falar da mulher, se ela existir na produção social desejante da história mundial e na política planetária como não-toda suplementar fazendo pendant como o Bem Supremo. A mulher pode não ser não-toda, talvez?

Haverá toda uma subversão no campo da língua se termos como passivo e ativo forem gramaticalizado como uma produção social de desejo fantasmática de que há relação sexual, de que o liame sexual é um liame gramatical na produção social desejante gramatical das formas: da família à política, caindo no liame gramatical místico. (Lacan. 1975: 76).

 A relação da mulher com o Grande Outro é importante por quê? O inconsciente faz falar o ser falante reduzido ao homem que é todo, pois castrado por Deus, pela Lei do incesto. A mulher é não-toda (será?) por nada saber da castração, da Lei: “Não se pode mais odiar a Deus se ele próprio não sabe nada, notadamente do que se passa”.  Este é o custo da mulher fazer parelha com Deus.

Lacan é claro sobre o inconsciente:
“É daí que eu digo que a imputação do inconsciente é um fato de incrível caridade. Eles sabem, eles sabem, os sujeitos. Mas enfim, mesmo assim eles não sabem tudo. No nível desse não-todo não há senão o Outro a não saber. E o Outro que faz o não-tudo, justamente no que ele é a parte que de-todo-não-sabe nesse não-tudo”. (Lacan.1982 :133).

O simbólico é o lugar da mulher ao contrário do que pensa o senso-comum do homem. Porém onde a mulher pode ter um inconsciente se a libido é apenas masculina? A mulher é toda, lá onde o homem a vê, só aí ela pode ter um inconsciente. Como ser falante a mulher é vista pelo homem como mãe. Ela tem efeitos de inconsciente no limite em que ela não é responsável pelo inconsciente de todo mundo. Isto significa (no ponto em que o Outro com a qual ela tem a ver) o Grande Outro faz com que ela não saiba nada porque ele (o Outro) sabe tão menos que é muito difícil sustentar a sua existência. (Lacan. 1975: 90-91).

A produção social desejante tem a dimensão da fantasia na verdade da realidade dos fatos. A fantasia (no qual o sujeito é encarcerado) é como tal suporte do que Freud chamou o princípio da realidade. (Lacan. 1975: 75). O Evangelho é o modo discursivo de melhor dizer a verdade, pois, enfia a realidade na fantasia. (Lacan. 1975: 97-98).     

Marx não faz teoria como concepção-de-mundo (ideologia); ele faz o evangelho marxista. (Lacan. 1975: 32-33). No entanto, ainda é o evangelho do homem que vê a mulher como inconsciente. Na grande indústria, a mulher é igual ao homem como força-de-trabalho. Na cultura marxista a mulher faz parelha como o homem, Rosa Luxemburgo faz pendant com Lenin. Não há diferença cultural entre o homem e a mulher. No entanto, Rosa não deixou um evangelho que uma segunda letra viria completar:
“Marx e Lenin, Freud e Lacan não são parelhas no ser. É pela letra que eles acharam no Outro que, como seres de saber, eles procedem dois a dois num Outro suposto. O novo, no saber deles, é que não é suposto que o Outro saiba nada dele – não por certo, o ser que ali faz letra – pois é mesmo do Outro que ele faz letra às suas expensas, ao preço do seu ser, meu Deus, para cada um não é que se trate de coisa alguma, mas, tão pouco, não se trata de muita coisa, para dizer a verdade”. (Lacan. 1982: 132).

O texto contranarcísico supracitado põe e repõe o sujeito suposto saber condensado em uma letra e mais outra letra no seu devido lugar. Na psicanálise materialista gramatical, o desejo não é pilotado pelo fantasma. Isto seria um modo de fugir da realidade dos fatos da produção social desejante:
“Dizemos que o campo social é imediatamente percorrido pelo desejo, que é o seu produto histórico determinado, e que a libido não tem necessidade de mediação ou sublimação alguma, para investir as forças produtivas e as relações de produção. Há tão somente o desejo e o social, e nada mais. Mesmo as mais repressivas e mortíferas formas de reprodução social são produzidas pelo desejo, na organização que dele deriva sob tal ou qual condição que deveremos analisar. Eis porque o problema fundamental da filosofia política é ainda aquele que Espinosa soube levantar (e que Reich redescobriu): ‘Por que os homens combatem por sua servidão como se tratasse da sua salvação? (Deleuze. 2010: 46).

Na produção social desejante das relações de produção fazendo pendant com as forças produtivas, a política é o espaço da aparência de semblância salvacionista de uma realidade na qual os homens lutam por sua servidão particular. O avesso dessa realidade é o niilismo político: se correr o bicho pega; se ficar o bicho come!

Há formas e formas de servidão política. Hoje, a democracia liberal é uma forma de servidão política desvelada como servidão política, servidão que não faz os homens combater por ela como se fosse sua salvação. A mulher segue esse riscado. Trata-se da libido do inconsciente do homem onde a mulher o vê como seu inconsciente estruturado como uma linguagem homo. Talvez Lacan tenha introduzido a mudança histórica no significante inconsciente por causa da mulher.
                                                                                   
                                                                                IV

O inconsciente estruturado como uma linguagem ainda pode ser o inconsciente freudiano? Se a linguagem tem como modelo o mito, a tragédia, o inconsciente é dramatúrgico, teatral ou expressivo como definem Deleuze e Guattari. Quem é a mulher neste inconsciente expressivo?  A Mãe (a mãe incestuosa de Édipo). Na psicanálise lacaniana, ela pode ser a irmã Antígona. Ela não pode ser uma máquina desejante esquizo bíblica de Sodoma e Gomorra.

O inconsciente expressivo substitui a máquina desejante pela representação dramatúrgica grega clássica. Toda a história do sujeito se encontra na representação triangular papai-mamãe-eu, neste romance familiar da Grécia mitológica. Freud introduz a representação em crise na cultura do século XX pela regressão ao mundo clássico da antiguidade. Na cultura do século XX, o teatro como forma produtiva simbólica fora substituído pela fábrica como força prática institucional.

Freud usa a cultura clássica grega para fazer uma abordagem idealista da cultura do século XX e do século XIX. Na filosofia política, é Freud contra Marx, idealismo contra materialismo marxista. É verdade que Freud pensa o mundo com Marx, mas o essencial é que ele cria um evangelho contra o evangelho de Marx. Neste, a mulher não é somente mãe e irmã, é também trabalho, forma produtiva do capital, produtora de mais-valia e parte do povo revolucionário da Comuna de Paris 1871.

Como sujeito, a mulher faz a passagem do inconsciente expressivo para o inconsciente produtivo de mais-valia (Mehwert) e mais-de-gozar, isto é, Mehrlust. (Lacan.2008 :29, 30). Mehwert é máquina de produção  técnica; Mehrlust é máquina de produção desejante.

A tentativa de demolição da sociologia pós-modernista do inconsciente produtivo (Baudrillard. 1979: 26, 39, 49) faz pendant com o desenvolvimento do capitalismo do primeiro-mundo que substituiu a fábrica pela organização, e a ética protestante pela ética do desejo. Trata-se de uma redução das máquinas produtivas desejante e sociais a um problema de administração, de saber e poder administrativos desejantes. (Drucker: 27-42). Como administrar as máquinas produtivas desejantes na organização configura o novo espírito do capitalismo. (Boltanski: 199-202; 218-222). Abrir as comportas do desejo (Lacan. 1995: 275) no solo da fábrica organizacional, eis a nova ética do capitalismo desenvolvido sob cerco do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.

Todavia, não se assiste ao triunfo do capitalismo da ética do desejo onde a mulher e seu desejo não-todo não se deixa edipianizar como limite à abertura das comportas do desejo. O capitalismo triunfante é aquele capitalismo neocolonial do terceiro-mundo que conquista vastos continentes e países e que faz um cerco fático triunfante ao subcapitalismo do segundo-mundo (ersatz de capitalismo desenvolvido chamado de em desenvolvimento) e que ataca com sucesso o capitalismo desenvolvido, civilizado, do primeiro-mundo.

Qual o lugar da mulher no capitalismo neocolonial do terceiro-mundo? O Brasil fez uma Reforma Trabalhista na qual a mulher perde todos os direitos conquistados por sua condição de mulher como mãe e como propriamente mulher. Curioso é que a legislação que garantia os direitos de mulher na fábrica é considerada populista pelo bloco oligárquico político homo em extensão que faz os ataques na esfera do trabalho à mulher.

Tal oligarquia homo faz da mulher um sujeito populista. Dominada por jornalistas mulheres, a televisão é uma força produtiva desejante/técnica oligárquico homo que age favoravelmente aos ataques contra a mulher. A televisão não é representação, ela não representa interesses capitalistas; como empresa capitalista, ela é a condensação no espaço da incultura das relações de produção e forças produtivas do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo. Um senador negro do PT fala em escravização moderna neocolonial da mulher como sucedâneo da escravização colonial, do Brasil colonial. 

                                                                             V

Se Marx fez o evangelho do capitalismo industrial moderno, Baudrillard fez o evangelho do capitalismo da pós-modernidade. O Livro referência é o Simulacres e Simulation. O fenômeno elementar do pós-modernismo é a cultura funcionando como simulacro de simulação, onde o hiper-real é mais real que o próprio real. (Baudrillard. 1981: 177, 119-120). O espaço do simulacro de simulação tem sustentado a democracia liberal a partir do capitalismo neoliberal do globalismo. Começa a fazer água com a soberania do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.    

Primeiro, Baudrillard é a máquina de produção desejante gramatológica do capitalismo neoliberal do globalismo. Trata-se de uma máquina com fúria e fogo voltada para a destruição das máquinas desejantes gramatológicas: Marx, Freud, Lacan, Foucault, Deleuze e Guattari, Derrida e Lyotard.  

No entanto, o livro Da sedução é o seu evangelho maior como é possível constatar facilmente. Antes de mergulharmos no rico e exuberante universo baudrillardiano, passo a limpo o As três ecologias, de Félix Guattari e seu conceito de capitalismo mundial integrado (CMI) que antecipou, na gramatologia teórica, o capitalismo neoliberal do globalismo.

O CMI significa a substituição da luta de classes e de sua subjetividade pesada proletária pelas três ecologias: meio ambiente; relações sociais e subjetividade humana. O CMI significa o poder tutelar (Tocqueville: 431-438) do mercado mundial fazendo pendant com o sistema industrial militar sobre o Terceiro-mundo que conduzem algumas de suas regiões a uma pauperização absoluta e irreversível. Aparece em países como a França através do desiderato industrial militar que são as usinas nucleares na década de 1980. (Guattari: 9). E o mais fundamental dito a seguir.

A oposição terceiro-mundo e mundo desenvolvido implode por todos os lados com a terceiro-mundialização dos países do mundo desenvolvido capitalista e a expansão de espécies de subjetividade (e de máquinas de produção desejantes ou trans-sujeitos próprios do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo como racialização das relações sociais, xenofobia etc. (Guattari: 12-13).

Fazendo pendant com o quase domínio do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo, desenvolve-se o antagonismo mulher versus homem transversal à luta de classe. (Guattari: 13). À ideia do sujeito mulher como parte das três ecologias viria se acrescentar o trans-sujeito mulher como ser-mulher na passagem dos estados de violência do homem que explodem em racialização das relações sociais, fundamentalismo religioso, terrorismo, cismas nacionalitários, em fenômenos moleculares de violência contra as pessoas nos Estados Unidos da América, capitalismo criminoso mundial (tráfico de criança, de mulheres, exploração sexual articulado ao capital fictício etc.), de S. Platt, e formas de violência urbana lumpesinal dos de baixo das máfias, cartéis de drogas, facções criminais etc.      
                                                                                      VI

O livro Da sedução tem como objeto virtual a mulher como avesso de um objeto carnal.

O ponto  de partida é a subversão da fórmula de Freud: “a anatomia é o destino”. (Baudrillard. 1979: 13). Está ideia liga à cultura ocidental e as ciências humanas ao corpo, à produção da natureza humana. Trata-se de um destino fálico.

Freud diz que só existe libido masculina, então, só há sexualidade do homem: “a sexualidade é essa estrutura forte, discriminante, centrada no falo (phallus), a castração, o nome do pai, o recalque. Não existe outra. De nada serve sonhar com alguma sexualidade não-fálica, não-represada, não-marcada. De nada serve, no interior dessa estrutura, querer passar o feminino para o outro lado da represa e misturar os termos; ou a estrutura permanece a mesma (todo o feminino é absorvido pelo masculino) ou ela se esboroa e já não existe feminino ou masculino: grau zero da estrutura. É bem o que hoje se produz simultaneamente: polivalência erótica, infinita potencialidade do desejo, ramificações, difrações, intensidades libidinais, - todas as múltiplas variantes de uma alternativa liberadora oriunda dos confins de uma psicanálise liberta de Freud ou dos confins de um desejo liberto da psicanálise – todas se conjugam por trás da efervescência do paradigma sexual, direcionadas para a indiferenciação da estrutura e sua potencial neutralização”. (Baudrillard. 1979: 10-11).

 Na subversão da estrutura freudiana: “A transição para o feminino na mitologia sexual é contemporânea da passagem da determinação à indeterminação geral”. Se compreende assim, a soberania do jornalismo na cultura do século XXI até o fim da segunda década deste século.

O jornalismo é a linguagem da indeterminação como besteira: “O pensamento é a mais elevada determinação, efetuando-se em face da besteira como do indeterminado que lhe é adequado. A besteira (e não o erro) constitui a maior impotência do pensamento, mas também a fonte de seu mais elevado poder naquilo que o força a pensar”. (Deleuze. 1988: 434). O evangelho pós-modernista de Baudrillard é o poder do pensamento que se faz na transdialética com a indeterminação da besteira.

No pós-modernismo, o feminino (e os feminismos) é besteira, pois, indeterminação da estrutura falocrática.

Baudrillard fala de uma transformação onde a soberania cabe as aparências da semblância, lugar da estratégia da aparência. Aí, a mulher aparece como o ser que seduz o homem. Trata-se de um universo: “Que é interpretado já não em termos de relações psíquicas e psicológicas nem de recalque ou inconsciente, mas em termos de jogo, de desafio, de relações duais e de estratégia das aparências: em termos de sedução (não mais em termos de estrutura e de oposições distintivas mas de reversibilidade sedutora) um universo onde o feminino é já não o que se opõe ao masculino mas o que seduz o masculino.
“Na sedução, o feminino não é um termo marcado nem não-marcado. Tampouco recobre uma ‘anatomia’ de desejo ou gozo, uma anatomia de corpo, de fala ou de escrita que teria perdido (?); não reivindica sua verdade, ele seduz”. (Baudrillard. 1979: 12).

Os estados de violência do homem contra a mulher não precisam de explicação ou justificação. Ele é um fato artificial (ou artefato) dos jogos de sedução da estratégia das aparências: sou homem, você é mulher. A mulher seduz o homem com sua transexualidade, eis a causa da violência. O homem odeia a mulher que o seduz. O ser da mulher é sedução.

O combate direto ao homem poderoso assediador na indústria do cinema e televisão significa uma mudança de tática, pois:
“Que opõem as mulheres, no seu movimento de contestação, à estrutura falocrática? Uma autonomia, uma diferença, uma especificidade de desejo e de gozo, um outro uso de seu corpo, uma fala, uma escrita – jamais uma sedução. Envergonham-se dela como de uma encenação artificial de seu corpo, como de um destino de vassalagem e de prostituição. Não compreendem que a sedução representa o domínio do universo simbólico, ao passo que o poder representa apenas o domínio do universo real. A soberania da sedução não tem medida comum com a detenção do poder político ou sexual”. (Baudrillard. 1979: 12-13).

A revolução da mulher só pode ser a subversão completa do domínio do homem sobre o mundo. Não se trata de ir atrás de um discurso que não fosse semblância, mas de deixar a soberania da semblância dominar como estratégia da aparência sobre o reino claudicante da verdade do homo:
“Estranha e feroz cumplicidade do movimento feminista com a ordem da verdade! Pois a sedução é combatida e rejeitada como desvio artificial da verdade da mulher, aquela que em última instância achar-se-á inscrita no seu corpo e no seu desejo. Assim, trata-se de apagar de uma só vez o imenso privilégio do feminino de nunca ter tido acesso à verdade, ao sentido, e de ter permanecido senhor absoluto do reino das aparências. Poder imanente à sedução de tudo subtrair a sua verdade e de fazê-lo retornar ao jogo, ao puro jogo das aparências e de frustrar daí, num instante, todos os sistemas de sentido e de poder; fazer voltar sobre si mesmas todas as aparências, fazer representar o corpo como aparência e não como profundidade de desejo – ora, todas as aparências são reversíveis; somente nesse nível os sistemas são frágeis e vulneráveis, o sentido é vulnerável apenas ao sortilégio. É cegamente inverossímil renegar esse único poder igual e superior a todos os outro, pois ele os inverte pelo simples jogo da estratégia das aparências. (Baudrillard. 1979: 13).         

Assim como não há libido da mulher, não há verdade da mulher! Há feitiço, sedução: “Ora a mulher nada mais é que aparência”. (Baudrillard. 1979: 15). Ela não entra nos jogos de verdade da totalidade fálica ou do não-toda, espécie de forma incompleta da história. Na segunda década do século XXI, acaba a história do homo e começa a história da mulher como estratégia das aparências:
“Ora, somente a sedução opõe-se radicalmente à anatomia como destino. Somente a sedução rompe com a sexualidade distintiva dos corpos e a inelutável economia fálica dela resultante”. (Baudrillard. 1979: 15).

A história da mulher se constitui como uma máquina de produção de sedução encerrando, definitivamente, a época freudiana como máquina de produção de desejo?

A história da mulher se estabelece em uma transdialética em carne o osso sedutora (que faz pendant com a transexualidade da mulher) com a história do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo.      

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