José Paulo
DOS estados DE VIOLÊNCIA DO HOMEM
E ESCRAVATURA
Abra o dicionário de latim e
consulte a palavra homo. Em Plínio, homo é o homem, o gênero humano.
Ciências humanas significa ciência do homem, seguindo Plínio. Plínio deixou seu
traço na cultura ocidental.
Na arqueologia do saber, Michel
Foucault trabalha a partir da ciência do homem, onde o homem é o sujeito e a
mulher inexiste como sujeito da representação. A representação é o centro
tático do homem. Mas e se o sujeito é a passagem das massas do socius pelos estados de violência da
história das intensidades do capitalismo profundo neocolonial do
terceiro-mundo? Demos um salto brusco do todo para a não-toda, do gozo fálico
para o gozo da mulher, da representação do desejo para o desejo sem
representação.
O que é o socius? O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo, o
estéril, o inengendrado, o inconsumível; instinto de morte é o seu nome (Deleuze:
20). Segundo a doutrina de Schreber, a atração e repulsão produzem intensos
estados de nervos que preenchem o corpo sem órgãos efeitos em graus diversos, e
pelos quais passa o sujeito-Schreber, devindo mulher e devindo muitas coisas
ainda, num círculo de eterno retorno. (Deleuze: 34). Buscamos o corpo pleno
determinado como socius, que pode ser
o corpo da terra, o corpo despótico, ou o capital. Ainda mais, a superfície de
registro das intensidades plenas.
O corpo sem órgão do capital
neocolonial do terceiro-mundo por atração e repulsão encontra-se em estados de
violência intensos onde um sujeito que não é neurótico (“é papai, é mamãe”) e
que não é esquizo (“então é homem ou mulher”, “então é mulher em corpo de
homem”) o atravessa e cai como resíduo ou na cultura mundial ou no
mundo-da-vida em geral.
Qual é, enfim, tal sujeito como
efeito da revolução do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo?
O sujeito é a passagem das massas do socius gramatical pelos estados de violência do homem do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo!
O sujeito é a mulher como resíduo
que sobra da passagem dos estados de violências do capital neocolonial do
terceiro-mundo. Não há nada de feminismo neste sujeito-mulher, pois, ele é a
impossibilidade de adquirir formas já que ele é não-toda. Um sujeito que diz
para si “então eu não sou isso”: homo. Também “não sou isso”: LGBT. Não sou eu
na ciência do homem, nas ciências humanas; não faço parte da representação:
“isso é” coisa de macho. Não falo pela linguagem da representação ou das
similaridades, ou das identidades LGBT.
Vivo na transição e transação dos
estados de violência do homo, da ciência do homem, das ciências humanas, sem
ser homem, sem ser humana. Sou contrahomo, contrahumana, sem chegar ao inumano,
ao mundo das máquinas: ou psicótica-paranoica, ou miraculosa, ou celibatária.
Trata-se de um sujeito que não é
um milagre da economia política fazendo pendant com a máquina desejante. É
verdade que o Marquês de Sade quis tirar partido daquilo que como sujeito ele
não sabia o que é! Daí ligarem a não-toda às perversões da teologia do Diabo do
romantismo clássico alemão. Hitler quis extrair de mim (mulher ariana) uma raça
de senhores capazes de dominar o planeta.
Como resíduo dos estados de
violência do homem encontro em Hobbes um autor profícuo. Antes diz Proudhon: a propriedade privada é um roubo. A propriedade é um dos estados de
violência do homem, no qual a mulher não tem qualquer participação.
Marx estabelece a relação entre
propriedade e estados de violência no A
ideologia alemã:
La primeira forma de la propriedad
es, tanto en el mundo antiguo como en la Edad Media, la propriedad tribual,
condicionada entre los romanos, principalmente, por la guerra y entre los
germanos por la ganadería”. (Marx. 1974: 71).
O tráfico de gado sempre envolveu
uma certa quantidade de violência. Os estados de violência do homem como um
elemento colonial sulista (dos estados de violência da história do Brasil de
onde saiu o nosso condottiere gaúcho Getúlio Vargas) do Brasil colonial são descritos
pelo nosso marxista Nelson Werneck Sodré:
“De sorte que, no Sul pastoril,
as Ordenanças continuam a constituir a ossatura do sistema militar. Elas
encontram naquela área todas as condições para ganhar uma amplitude que as
torna o elemento necessário e indispensável. Porque, na luta pelo gado e, na
luta pelas pastagens, surge uma organização militar, moldada pelas Ordenanças,
em que o padrão antigo, dos primeiros tempos de colonização – a população em
armas – assume as proporções naturais e conjuga-se com a situação regional”. (Sodré:
55).
Trata-se da história do tomar a coisa que envolve a vontade de
violência para tal fato.
Quanto a propriedade privada, ela
começa com a violência da propriedade mobiliária escravagista e a desintegração
da comunidade:
“La verdadera propriedad privada,
entre los antigos, al igual que en los pueblos modernos, comienza con la
propriedad mobiliaria. (La esclavitud y la comunidad) (el dominium ex jure quiritium). (Marx. 1974: 71).
O direito privado faz pendant com
o desenvolvimento da propriedade privada a partir de estados de violência
contra a comunidade:
El derecho privado se deserrola,
conjuntamente con la propriedad privada, como resultado de la desintegración de
la comunidad natural”. (Marx. 1974: 72).
O imaginário político do discurso
do direito estabelece uma relação direta entre direito privado e violência:
“El derecho privado proclama las
relaciones de propriedad existentes como el resultado de la voluntad general.
El mismo jus utendi et abutendi (direito de usar e de abusar, ou seja
consumir ou destruir a coisa) expresa, de una parte, el hecho de que la
propriedad privada ya no guarda la menor relación con la comunidad y, de otra
parte, la ilusión de que la misma propriedad privada descansa sobre la mera
voluntad privada, como el derecho a disponer arbitrariamente de la cosa”,
(Marx. 1974: 73).
Então a propriedade privada é o
abusar, consumir ou destruir a coisa (abuti),
mesmo esta coisa sendo um escravo, um indivíduo vivo humano, um homem ou uma
mulher. Abusar sexualmente da mulher é um direito dos estados de violência da
propriedade privada no modo de produção escravagista.
Marx e Engels dizem que a
estrutura econômica impõe limites ao abuti:
“En la
práctica, el abuti tropieza con
limitaciones económicas muy determinadas y concretas para el proprietario privado,
si no quiere que su propriedad, y con ella su jus abutendi, pasen a otras manos, puesto que la cosa no es tal
cosa simplemente en relación con su voluntad, sino que solamente se convierte en verdadera propriedad en el comercio e
independientemente del derecho a una cosa”. (Marx. 1974: 73).
Nem a vontade armada e nem o
direito definem a verdadeira propriedade. A relação de propriedade depende da
estrutura econômica, daí o caminho do homem para fora dos estados de violência
articulados à propriedade e ao direito privados.
Marx trabalha contra o imaginário
ideológico que define a história por estados de violência do homem:
“Nada más usual que la idea de
que en la historia, haste ahora, todo há consistido en la acción de tomar. Los bárbaros tomaram el Imperio romano, y con esta toma se explica el paso del
mundo antiguo al feudalismo. (Marx. 1974: 74).
O usual até a economia política
era pensar a história como efeito dos estados de violência do homem. Marx e
Engels mostram que se trata de uma ideologia historiográfica ou de uma
filosofia da história ideológica.
O desenvolvimento das forças
produtivas e a as formas reais de propriedade privada - indústria, comércio
(Marx. 1974: 74, 75) e sua superestrutura ideológica do direito constituem uma
subtração, paulatina, da história como o tomar
a propriedade privada do proprietário original vivida imersa em estados de
violência e vontade de violência do homem. Percebam que a economia política,
Marx e Engels não falam da propriedade privada e da vontade de violência
associada a mulher. A mulher é o não-toda inexistente!
II
O ensaio O Manifesto do Partido Comunista diz que a história do Ocidente é a
história das lutas de classes. A sociedade de classes inscreve uma sociologia
fazendo pendant com o desenvolvimento das forças produtivas, as formas de
propriedade privada e as formas do direito privado. A ideia de civilização de
Marx (em um contraponto aos estados de violência da propriedade como barbárie)
é dialética materialista em um contraponto ao juízo de civilização ideológico,
idealista. Porém ela pode alcançar a stásis.
O capitalismo profundo
neocolonial do terceiro-mundo é aquele que faz pendant com a sociedade
pós-capitalista como sociedade do conhecimento e das organizações no
primeiro-mundo desenvolvido. (Drucker: 3-42). A característica central do
capitalismo profundo neocolonial significa que ele conseguiu desintegrar as
lutas de classes como stásis, pois, a
sociedade de classes deixa de existir como lutas de classes no Ocidente. No
lugar das lutas de classes como stásis,
entra os estados de violência da história gramatical de da sociedade de
subclasses, ersatz de classe social. (Ianni: 75, 78, 175).
O primeiro-mundo desenvolvido
capitalista moderno continua existindo em territórios geoeconômicos. Porém o
fundamento dele significa que ele é o gramático
rhetor percipio que pilota em um
território mundial a territorialização ampliada do capitalismo neocolonial do
terceiro-mundo. Pilota também a desterritorialização do capitalismo moderno do
primeiro-mundo em países centrais da economia política ocidental e a
reterritorialização do capitalismo moderno no Oriente asiático. (Ianni: 15-16):
“Ainda não está claro se estamos
prestes a assistir a uma troca de guarda no alto comando da economia mundial
capitalista e ao início de um novo estágio de desenvolvimento capitalista. Mas
a substituição de uma região ‘antiga’ (a América do Norte) por uma ‘nova’ (o
leste asiático) como o centro mais dinâmico dos processos de acumulação de
capital em escala mundial já é uma realidade”. (Arrighe: 344).
O fundamental é que o capitalismo
chinês é a sintetização socialista do capitalismo moderno ocidental como
acumulação ampliada de capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo. Na
África, “proprietários privados socialistas” neocolonizadores chineses se
alimentando (comendo a carne) de africanos pretos é mais do que o símbolo do
capitalismo profundo.
ENGELS
III
No livro Anti-Dühring, Engels
dedica páginas memoráveis à visão da história como vontade de violência fazendo
pendant com a propriedade privada? Não para por aí. Sob a influência do livro O capital, Engels discute se a história
tem como determinação em última instância a política ou a economia. Durante o
século XX, o marxismo ocidental tratou o livro de Engels como paradigma da
concepção economicista da história!
No jornalismo, na classe
política, na ciência do homem e no imaginário político popular, os estados de
violência surgem como determinando a história brasileira do final da segunda
década do século XXI. Os estados de violência do homem parecem se constituir em
um fator dissipador da sociedade brasileira. Segundo a leitura de Dühring feita
por Engels, a violência remete para a política e, assim, os estados de
violência do homem fazem da política o fator determinante em última instância
da conjuntura brasileira atual.
O Brasil fez do Anti-Dühring de
Engels um livro da atualidade do nosso século XXI. Passemos a ele com vagar,
pois, entre nós, é fácil metabolizar que a política (condensada nos estados de
violência do homem) encontra-se no comando da história conjuntural e, portanto,
no comando da economia na gramática de Lenin.
A discussão inicia-se com uma
citação de Dühring em diálogo e luta com Marx:
“Alguns dos recentes sistemas
socialistas tomam como princípio diretor a falsa aparência de uma relação
completamente invertida – tão invertida que salta aos olhos -, fazendo por
assim dizer sair de situações econômicas as infraestruturas políticas. Ora,
esses efeitos de segunda ordem existem sem dúvida como tais, e são atualmente
os mais sensíveis. Todavia, devemos procurar o elemento primordial na violência
política imediata e não em uma força econômica indireta”. (Engels. 1950: 191).
Se não ficou claro, eis uma outra
citação:
“e como, por outro lado, toda a
˂propriedade baseada na violência>, ainda hoje em vigor, se alicerça nessa
escravização primitiva – é evidente que todos os fenômenos econômicos se
explicam por intermédio de causas políticas, ou seja, da violência”. (Engels.
1950: 191-192).
Dühring e Engels consideram a
propriedade baseada na violência um estado de violência senhor-escravo
(discurso do maître lacaniano) primitivo. Lacan diz que o discurso do
capitalista é uma forma de discurso do maître na época moderna, se ele é o
discurso da burocracia. (Lacan. 1991:33-34).
O discurso do maître é uma forma
de dominação primitiva que faz pendant com os estados de violência do homem. A
revolução do capitalismo profundo neocolonial do terceiro-mundo não recarrega o
discurso do maître como ser do ente da realidade dos fatos mundial? Só que no
século XXI é um discurso do maître como a organização da sociedade pós-capitalista
no lugar da burocracia como fator desestabilizador (Drucker: 34) das nações,
dos povos-nações, da sociedade das subclasses sociais gramaticais. A subclasse
é o novo gramático da história do capitalismo profundo neocolonial.
De mãos dadas com os estados de
violência da história capitalista do discurso do maître da sociedade
pós-capitalista, Dühring parece abalar a concepção de história de Engels:
“Deste modo, o exemplo pueril que
o Sr. Dühring forjou por suas próprias mãos para provar que a violência é ˂o
elemento histórico fundamental> demonstra que a violência é apenas o meio,
ao passo, que o proveito econômico é o fim. E na mesma medida em que o fim é
˂mais fundamental> do que o meio empregado para o alcançar, também o aspecto
econômico da relação é mais fundamental na História do que o aspecto político”.
(Engels. 1950: 192).
Não podemos esquecer que a
estratégia de Lenin na primeira fase da revolução russa foi a política no
comando da economia. E que Stalin fez a história da revolução russa pondo no
comando os estados de violência do homem contra o campesinato.
Engels leva muito a sério as
ideias de seu oponente:
“Logo, se o Sr. Dühring chama à
propriedade atual uma propriedade baseada na violência e a qualifica de ˂forma
de dominação que talvez não se baseie apenas na exclusão do próximo do uso dos
meios naturais de existência, mas também, o que é muito mais importante, na
sujeição do Homem a um serviço de escravo>, limita-se a misturar alhos com
bugalhos. A sujeição do Homem a um serviço de escravo sob todas as suas formas
supõe que quem submete dispões de meios de trabalho sem os quais não poderia
utilizar o homem submetido e ainda, na escravatura, que dispõe de meios de
subsistência sem os quais não poderia conservar o escravo vivo, isto é, em
qualquer caso, a posse de determinados meios de fazer fortuna acima da média.
Em toda hipótese é evidente que podem ter sido roubados, quer dizer, ser fruto
da violência. Todavia, não é de modo
algum necessário que seja essa a sua origem. Podem ter sido adquiridos pelo
trabalho, pelo roubo, pelo comércio ou pela fraude. Contudo, para poderem ser
roubados é necessário que primeiro tenham sido ganhos pelo trabalho”. (Engels.
1950: 193-19).
Engels admite que a acumulação
primitiva de capital está associada aos estados de violência que expropriam a
riqueza acumulada pelo trabalho. No entanto, o conceito de lutas de classes
inaugura a civilização no lugar da barbárie dos estados de acumulação da
riqueza pela violência. O significante luta burguesa vai além de um conceito
sociológico de luta de classes.
A revolução burguesa acontece:
“na França, derrubando diretamente
a nobreza; na Inglaterra, aburguesando-a cada vez mais e absorvendo-a até se
transformar na sua grinalda decorativa. E como conseguiu? Graças a uma simples
transformação do ‘estado econômico’ a que se seguiu (com mais ou menos rapidez,
a bem ou a mal) uma alteração nas situações políticas. A luta da burguesia
contra a nobreza feudal tem sido a luta da cidade contra o campo, da indústria
contra a propriedade fundiária, da economia monetária contra a economia
natural. E as armas decisivas do burguês nessa luta foram os seus meios de
domínio econômico constantemente
aumentados pelo desenvolvimento da indústria, primeiro artesanal, mas tornada
progressivamente manufatureira, e pela expansão do comércio. Durante toda essa
luta, o poder político se encontrava nas mãos da nobreza, com exceção de uma
era na qual o poder real utilizou o burguês contra a nobreza para manter em
xeque uma classe contra outra. Mas a partir do momento em que o burguês,
politicamente ainda impotente, começou, graças ao aumento de seu poder
econômico, a tornar-se perigoso, a realeza aliou-se novamente à nobreza e
provocou com isso, primeiro em Inglaterra e depois na França: a revolução
burguesa”. (Engels. 1965: 196).
A luta de classe da burguesia é
parte da civilização europeia que caminha na transformação da estrutura da
história sem pôr os estados de violência do homem no comando da história? Para
o Marx do O 18 do Brumário de Luís
Bonaparte, os estados de violência do homem fazem parte da revolução
burguesa tanto quanto a luta pacífica do burguês na concepção de Engels.
Em Marx, os estados de violência
políticos significam o abrir caminho na história moderna como grande tragédia histórica capitalista. (Marx.
1974: 336). Não se faz a omelete sem quebrar os ovos!
IV
Na relação entre violência e
economia política moderna, os estados de violência aparecem domesticados:
“Todavia, a introdução da pólvora
na artilharia e a adoção de armas de fogo não foi de modo algum um ato de
violência; foi um progresso industrial e, logo, econômico. A indústria é sempre
a indústria, se orientando para a produção ou para a destruição de objetos. E a
introdução das armas de fogo teve um efeito revolucionário na própria condução
da guerra e também nas relações políticas – relações de dominação e sujeição.
Para obter a pólvora e as armas de fogo era necessário dispor da indústria e do
dinheiro, e uma e outro pertenciam ao burguês da cidade. Por isso, as armas de
fogo foram desde o início as armas da cidade e da monarquia triunfante apoiada
nas cidades contra a nobreza feudal. As muralhas até então impenetráveis dos
castelos dos nobres ruíram debaixo do fogo dos canhões do burguês e as balas
dos arcabuzes burgueses transpassaram as couraças dos cavaleiros”. (Engels.
1950: 200).
No Brasil, a cidade do burguês
rico está sob ataque das massas de subclasses lumpesinais criminais dos de
baixo. Tais massas tem a sua disposição a indústria armamentista e dinheiro de
transações econômicas ilegais. A luta entre as subclasses lumpesinais e o
burguês rico pode levar a desintegração (está levando) da economia política
legal da cidade. Tais lutas subclasses são parte da acumulação primitiva do
capitalismo neocolonial do terceiro-mundo. Onde isso vai dar?
Engels trata militarmente a
passagem do domínio da nobreza para o domínio do burguês:
“Justamente com a cavalaria
couraçada da nobreza, desfez-se também o domínio da nobreza; com o
desenvolvimento da burguesia, a infantaria e a artilharia tornaram-se cada vez
mais as armas decisivas; sob a influência da artilharia, a arte da guerra teve
que anexar uma nova subdivisão de características absolutamente industriais: o
corpo de engenheiros militares”. (Engels.1950: 200).
Vivemos um momento militar na
luta do burguês rico contra as subclasses lumpesinais. Toda uma economia
política lumpesinal funciona na grande cidade ao lado (e pôr dentro) da
economia política legal. Os preços dessa economia lumpesinal são mais baratos,
pois, ela expropria a economia política legal e não paga impostos. Parcelas
consideráveis da população da cidade são beneficiadas pela economia política
lumpesinal. O contrabando assume proporções ciclópicas. Trata-se de uma
economia política ilegal dentro da economia política legal.
A economia política das
ilegalidades dominantes dos de cima e dos de baixo tem a sua própria forma
política (Kriminostat) cuja luta é a
sintetização do Estado legal. Tem sua própria forma econômica avançada (o
capitalismo criminoso de Platt). Em países da América Latina (México,
Venezuela, Bolívia, Peru etc.) a sintetização lumpesinal criminal já parece ter
alcançado um ponto de não-retorno. O capitalismo criminoso avança inclusive na
sintetização economia legal e ilegal nos EUA. Todas as fronteiras
civilizatórias construídas pelo capitalismo moderno são despedaçadas pedra por
pedra.
É preciso ficar claro a relação
entre a economia política industrial e os estados de violência do homem:
“Em resumo, sempre e em todos os
casos são as condições e os meios de domínio econômico que servem à
˂violência> para esta obter êxito, sem o qual a violência deixa de ser
violência”. (Engels. 1950: 204).
A evolução da história ocidental
desagua na civilizada sociedade de classes moderna:
“Se com a sua dominação do homem
pelo homem, condição prévia da dominação da Natureza pelo Homem, o Sr. Dühring
quer apenas dizer, em geral, que todo o nosso estado atual, o nível de
desenvolvimento alcançado presentemente pela agricultura e pela indústria, é o
resultado de uma história social que se desenvolve com base em antagonismos de
classe, em relação de dominação e escravatura, diz qualquer coisa há muito convertida
em um lugar-comum, desde a publicação do Manifesto
Comunista”. (Engels. 1950: 210).
Percebe-se o discurso do maître
pela referência à escravatura. A escravatura é um recurso evolutivo na história
universal. Há uma transdialética gramatical entre a escravatura (discurso do
maître) e a época moderna. E a escravatura é um efeito do desenvolvimento das
forças produtivas do trabalho fazendo pendant com os estados de violência do
homem:
“A produção se desenvolve a ponto
da força de trabalho humano poder produzir mais do que o necessário à sua
sobrevivência; existiam os meios para manter mais forças de trabalho e também
para as ocupar; logo, a força de trabalho adquire um valor. Mas a comunidade a que pertencia e a associação de que fazia
parte não forneciam forças de trabalho disponíveis, um excedente de força de
trabalho. Em contrapartida, a guerra fornecia o excedente, e a guerra era tão
velha como a existência simultânea de diversos grupos de comunidade
justapostos. Até ali, como ninguém sabia o que fazer dos prisioneiros de
guerra, limitavam-se a abatê-los, e em tempos ainda mais recuados comiam a
carne do inimigo. Mas ao nível do ˂estado econômico> então alcançado, os
prisioneiros de guerra adquiriram um valor; pouparam-lhes a vida e
apropriaram-se do seu trabalho. Assim, a violência, em vez de dominar a
situação econômica, se viu, ao contrário, posta por força das circunstâncias ao
serviço da situação econômica. Estava inventada a escravatura”. (Engels. 1950:
212).
A relação entre trabalho e guerra
significa um recurso evolutivo que instala a escravatura:
“ O caso é claro; enquanto o
trabalho humano era ainda tão pouco produtivo que só fornecia poucos excedentes
para além dos meios de subsistência necessários, o aumento das forças
produtivas, a ampliação do comércio, o desenvolvimento do Estado e do direito, a
instituição da arte e da ciência só eram possíveis graças a uma divisão
reforçada do trabalho que tinha forçosamente de se basear na grande divisão do
trabalho entre as massas encarregadas do trabalho manual simples e os poucos
privilegiados que se ocupavam da direção do trabalho, do comércio, dos negócios
do Estado e, mais tarde, chamariam a si as ocupações artísticas e científicas.
Ora, a forma mais simples, mais natural, de semelhante divisão do trabalho era
precisamente a escravatura. Tendo em conta os antecedentes históricos do mundo
antigo, e em especial do mundo grego, a marcha progressiva para uma sociedade
fundada em antagonismos de classe só podia se realizar sob a forma da
escravatura”. (Engels. 1950: 213-214).
As lutas de classes da
modernidade fazendo pendant com o desenvolvimento das forças produtivas e a
produção de mais-valia relativa alteraram a paisagem do capitalismo do século
XIX e metade primeira do século XX.
O capitalismo mundial da segunda
metade do século XX viu se desenvolver uma classe gramatical intelectual como
força produtiva tecno-científica que gerou o espaço do mundo digital. Bakunin
fez uma profecia racional weberiano (Weber: 316):
“Um corpo científico, ao qual se
tivesse confiado o governo da sociedade, acabaria logo por deixar de lado a
ciência, ocupando-se de outro assunto; e este assunto, o de todos os poderes
estabelecidos, seria sua eternização, tornando a sociedade confiada a seus
cuidados cada vez mais estúpida e, por consequência, mais necessitada de seu
governo e de sua direção.
Mas o que é verdade para as
academias científicas, o é igualmente para todas as assembleias constituintes e
legislativas, mesmo quando emanadas do sufrágio universal. Este último pode
renovar sua composição, é verdade, o que não impede que se forme, em alguns
anos, um corpo de políticos, privilegiados de fato, não de direito, que,
dedicando-se exclusivamente à direção dos assuntos públicos de um país, acabem
por formar um tipo de aristocracia ou de oligarquia política. Vejam os Estados
Unidos e a Suíça”. (Bakunin: 33).
O Brasil não cabe como luva na
profecia racional de Bakunin?
Como aristocracia intelectual
autotélica, ela oferece o modelo orgânico para a classe política autotélica
oligárquica. Trata-se de uma certa espécie de estado de violência política
autotélico objetivo, pois o processo eleitoral da democracia liberal não é
capaz de transformar democraticamente tal estado de coisas da economia política
libidinal oligárquica do capital. (Lyotard. 1974: 241-278).
É a escravatura política do povo
pelo discurso da servidão voluntária. (La Boétie: 45-54). O efeito gramatical
mais espetacular é a subtração do significante legitimação via soberania
popular para a oligarquia política que, por isso, se torna autotélica sem
necessidade de legitimação na vida real da política parlamentar ou
governamental. Na política não cabe legitimação por paralogia. (Lyotard. 1986:
111-120).
A escravatura política faz
pendant com o discurso do maître como efeito da revolução do capitalismo
neocolonial do terceiro-mundo.
Ainda podemos falar um pouco mais
da relação da violência com a história:
"É, portanto, claro o papel
desempenhado na história pela violência, relativamente à evolução econômica. Em
primeiro lugar, toda a violência política assenta primitivamente numa função
econômica de caráter social e aumentada na medida em que a dissolução das
comunidades primitivas transforma os membros da sociedade em produtores
privados, isto é, torna-os ainda mais estranhos aos administradores das funções
sociais comuns. Em segundo lugar, depois de se tornar independente em relação à
sociedade, depois de se converter de serva em senhora, a violência política
pode agir em duas direções: ou atua no sentido e na direção da evolução
econômica normal, e neste caso não só não se verifica o conflito entre ambas
como também se acelera a evolução econômica; ou a violência atua contra a
evolução econômica e neste caso, com algumas exceções recentes, sucumbe
regularmente perante o desenvolvimento econômico”. (Engels. 1950).
NO caso brasileiro, a violência atua
contra o sistema industrial, uma economia industrial que, além disso, entrou em
decadência; a violência atua contra o comércio (setor de serviço) levando à
falência a pequena burguesia das grandes, médias e pequenas cidades; atua
inclusive contra o Banco. A violência atua, em certo, grau contra a evolução
econômica e não há perspectiva dela sucumbi perante o desenvolvimento econômico
do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo.
Será que a violência atual pode
ser a parteira da história como violência da revolução do capitalismo profundo
neocolonial do terceiro-mundo? Nesta situação, a violência desempenharia um
papel revolucionário positivo até como teologia materialista racional:
“Para o Sr. Dühring, a violência
é o mal absoluto; para ele o primeiro ato de violência é o pecado original;
toda a sua argumentação não passa de uma choradeira sobre a forma como até aqui
toda a História tem sido contaminada pelo pecado original, sobre a infame
corrupção de todas as leis naturais e sociais por esse poder diabólico: a
violência. Mas que a violência ainda desempenha na História outro papel, um
papel revolucionário; que segundo as palavras de Marx, seja a parteira de toda
a velha sociedade que traz no ventre outra nova; que seja o instrumento graças
ao qual o movimento social leva de vencida e despedaça formas políticas caducas
e mortas – a tal respeito o Sr. Dühring não tuge nem muge”. (Engels. 1950:
215-216)
Os estados de violência do regime
1988 foi o parteiro de uma nova forma política que para a consciência do país
letrado é o real como impossível de ser suportado. A democracia liberal é a
aparência de semblância de uma outra forma política RSI
(Real/Simbólica/Imaginário). Trata-se de uma democracia representativa
lumpesinal como sucedâneo da democracia direta lumpesinal da Grécia antiga.
Fala-se tanto em classe política perigosa, pois, organização criminosa, e se
esquece que o modelo político vigente, o filho, é feito à imagem do Pai, ou melhor,
é personificação da classe política perigosa. Trata-se da subclasse gramatical dos
de cima!
A revolução violenta do
capitalismo profundo neocolonial pode ser uma conquista comparável à relação
entre povos:
“ Qualquer conquista efetuada por
um povo mais atrasado perturba profundamente o desenvolvimento econômico e
aniquila numerosas forças produtivas. Mas na enorme maioria dos casos de
conquistas perduráveis, o conquistador mais atrasado é forçado a adaptar-se ao ˂estado
econômico> mais desenvolvido, visto depender da conquista; acaba mesmo por
ser assimilado pelo povo conquistado e até por ser obrigado, quase sempre, a
adotar a língua dele. Não obstante, nos países em que (excetuando os casos de
conquista) a violência interna do Estado entra em conflito com a sua evolução
econômica (como até aqui se tem verificado em determinado estágio relativamente
a quase todo o poder político), a luta salda-se sempre pelo derrube do poder
político”. (Engels. 1950: 215).
O Brasil é um caso no qual a
violência interna do Estado entra em conflito com a sua evolução econômica em
direção ao capitalismo profundo neocolonial. A perspectiva da luta signifique,
talvez, a ruína do poder político como tal.
HOBBES
Para não dizerem que não falei de
Hobbes.
A violência é um fundamento do
discurso hobbesiano (Lupus est homo
homini lupus): “Portanto tudo aquilo que é valido para um tempo de guerra,
em que todo homem é inimigo de todo homem”. (Hobbes: 80).
Hobbes diz:
“Com isto se torna manifesto que,
durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a
todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e
uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não
consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de
travar batalhas é suficientemente conhecida. (Hobbes: 79).
Os estados de violência Lupus est homo
homini lupus se constituem nos espaços objetivo e subjetivo
do trans-sujeito gramatical. Eles são o que não para de não se inscrever no
domínio simbólico. Só um poder comum gramatical faz cessar os estados de
violência Lupus est homo
homini lupus.
O poder gramatical comum é um
fenômeno teológico, pois, o Estado é o Deus mortal. (Hobbes: 110).
Hobbes diz:
“A única maneira de instituir tal
poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros e das injúrias
uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que,
mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e
viver satisfeito, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a uma
assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade
de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma
assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e
reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa
sua pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e
segurança comum”. (Hobbes: 109).
O Leviatã se define pelos estados
de violência do homem não para de não se
inscrever como gramático teológico, ou seja, Deus mortal. Quanto ao
problema da relação entre violência e história, o texto mais seguro para tratar
disso é o de Philonenko.
Partindo do gramático da guerra:
l’on saisisse comme langage toute conduite porteuse de significations
susceptibles d’être comprises par un autrui quelconque”. (Philonenko: 183).
A relação entre guerra e história
define a gramática de estados de violência do homem: “La guerre n’est pas lutte. Le propre de la guerre est d’être une action violente
s’inscrivant dans une histoire. Le terme qui doit retenir l’attention dans
cette définition est le mot histoire.
La guerre ne se sépare pas de l’histoire et toutes les actions violentes ne
sont pour autant des actions des actions de guerre: c’est seulement quand une
action violente s’inscrit dans l’histoire, lorsqu’elle s’écrit en s’inscrivant, qu’elle atteint la dimension de la
guerre”. (Philonenko: 184).
Os estados de violência do homem
podem ser àquele da luta ou da guerra. Eles podem ser estados de violência da
política ou da guerra (estados de violência inscritos na história). Em relação
aos estados de violência do homem na política, estes não se inscrevem na
história. A rigor, não há história política da ciência do homem. Marx pensou a
inscrição da política na história através das lutas de classes que podem
assumir a forma da guerra entre as classes: ciência da história!
No século XXI, os estados de
violência permanecem como pólemos e não
mais como violência política na guerra ou stásis.
(Derrida: 110). DA luta política foi subtraído a luta de classe e, portanto, a
guerra entre as classes sociais. Todavia, os estados de violência políticos se
referem a subclasse como stásis, como
violência inscrita na história.
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