domingo, 31 de maio de 2020

GRAMÁTICAS DO BRASIL CONTEMPORÂNEO


José Paulo


No ponto-de-partida teórico dessa nova leitura da história do Brasil contemporâneo encontramos a ideia de <gramática>, de Gramsci:
“Poder-se-ia esboçar um quadro da <gramática normativa> que opera espontaneamente em toda sociedade determinada na medida em que ela tende a unificar-se seja como território, seja como cultura. Ou seja, na medida em que nela existe uma camada dirigente cuja função seja reconhecida e seguida. O número das <gramáticas espontâneas> ou ‘imanentes’ é incalculável; pode-se dizer, teoricamente que cada pessoa tem sua própria gramática. Não obstante, ao lado desta desagregação de fato, deve-se sublinhar os movimentos unificadores, de maior ou menor amplitude, seja como área territorial, seja como ‘volume linguístico’. As ‘gramáticas normativas’ escritas tendem a abarcar todo um território nacional e todo o ‘volume linguístico’, a fim de criar um conformismo linguístico nacional unitário que, outrossim, coloca num plano mais elevado o ‘individualismo’ expressivo, já que cria um esqueleto mais robusto e homogêneo para o organismo linguístico nacional, do qual cada indivíduo é o reflexo e o intérprete. (Gramsci: v. 3: 2343).  
A história é uma plurivocidade de gramática, que dá a ela, história, uma aparência anarcogramatical. Ao contrário, a gramática hegemônica é o laço social contrário ao anarcogramaticalismo desagregador do significante sociedade nacional.   
A hegemonia gramatical faz pendant com uma classe dirigente que surge nos momentos de transformação da história nacional associada à história internacional. Identificar o ponto de não retorno da gramática hegemônica é o método mais seguro no estudo da história nacional.
O ponto-de-partida histórico da gramática do Brasil contemporâneo é a revolução econômica da corporação capitalista multinacional?
Na política, a Constituição 1988 é o ponto-de-partida da nossa contemporaneidade gramatical de uma ordem corporativa?
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Para falar da gramática constitucional é preciso dizer que ela é um plurivocidade de gramática. Assim, as gramáticas necessitam do STF para interpretar as frases e orações constitucionais, atualizando-as. 
Para atualizar a gramática constitucional 1988, falo do Artigo 142 objeto de uma luta gramatical entre o STF e o presidente da República, Jair Bolsonaro. Este usa a leitura do jurista Ives Gandra de que as Forças Armadas podem agir, constitucionalmente, como o velho <poder moderador> monárquico.   
Artigo 142. As Forças Armadas constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
A oração fala da garantia dos poderes constitucionais. Na realidade empírica natural, garantia pode ser atribuição do Estado de polícia. Os constituintes fizeram um texto conservador de viés autoritário ao militarizar a garantia do funcionamento dos poderes republicanos.  Trata-se de uma excrecência da gramática da ditadura militar na Constituição democrática 1988.  Na própria Constituição não acontece uma ruptura clara, evidente e devastadora com a ditadura militar.  
Por iniciativa de qualquer dos poderes republicanos, as F.A. podem funcionar como <poder moderador> na garantia da lei e da ordem. Na atual conjuntura política, Bolsonaro quer usar o Artigo 42 no seu discurso <transição ao regime autoritário> por via pacífica.  Como os juristas dizem, Bolsonaro quer constitucionalizar a ruptura autoritária na democracia 1988. 
Bolsonaro usa a leitura jurídica do artigo 42 para desenvolver a sua gramática política pessoal. Como diz Gramsci, a realidade é feita de uma plurivocidade de gramática, incluindo as gramáticas dos indivíduos.
A ambiguidade gramatical do Artigo 42 encontra-se no palco principal do conflito aberto entre Bolsonaro e o STF e o mundo jurídico da sociedade civil. Como há ambiguidade, cabe ao pleno da Corte interpretar a Constituição e pôr um fim na ambiguidade. Se Bolsonaro usar ao artigo 142 para um agir político, envolvendo a cúpula das F. A. como poder moderador, ele faz das F.A. um poder aconstitucional. Ele põe estas forças republicanas na ilegalidade gramatical constitucional.
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Escrever sobre a gramática do Brasil não é uma tarefa fácil, se se é leigo no estudo teórico e empírico das gramáticas. A essa minha leitura do Brasil se realiza após várias interpretações, minhas, da história do Brasil moderno. 
A revolução econômica da corporação capitalista multinacional é o signo da gramática econômica do Brasil da contemporaneidade.  Trata-se de um novo começo de leitura do Brasil.
No livro “Subdesenvolvimento hoje”, estabeleci um princípio de funcionamento da gramática da história:
“Fatos estão fora da interpretação da realidade histórica. A realidade não é feita de fatos, e sim de artefatos. Há que dizer um fato para que ele exista como artefato. (Lacan. S. 18:15). A gramática da história trabalha com a realidade definida como conjunto de artefatos”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 257).
Leitura de uma determinada camada de significações do Brasil da contemporaneidade pode ser dita, assim:
“Uma república rural, oligárquica, capitalista foi hegemônica até o surgimento da república urbana, industrial paulista do capitalismo subdesenvolvido industrializado. A Constituição 1988 é a gramática da burguesia industrial, urbana, paulista. A gramática econômica da burguesia rural, industrial de hoje está destruindo a Constituição 1988. Hoje, temos um Congresso que é um efeito da gramática econômica da burguesia rural, industrial, amazônica, que avança sem controles do Estado-cientista sobre a Amazônia”. (Bandeira da Silveira. 2019: 263).
Esta leitura da gramática do Brasil contemporânea é incompleta. Outros artefatos precisam ser acrescentados por uma nova leitura:
“Os campos de poderes/saberes (econômico, político, cultural) constituem os artefatos por onde começar a interpretação da história. Os sujeitos individuais e institucionais existindo no campo de poderes/saberes são os artefatos que atualizam a gramática da história, gramática que articula as formações sociais”.  (Bandeira da Silveira. 2019b: 257-258).
O campo de poderes/saberes da contemporaneidade tem como artefatos, além dos já mencionados, a corporação capitalista multinacional, o capitalismo burocrático de Estado, a corporação científica dos cientistas e instituições de ciência e a universidade estatal nacional ou local, corporativas. Corporações de juízes e militares se integram à ordem corporativista das multinacionais constitucionalizadas pela Constituição 1988. O mundo do trabalho das corporações multinacionais foi a base econômica de governos de esquerda que entram em colapso com a crise do modelo corporativo capitalista das multinacionais, cujo signo é a desindustrialização urbana do país.
Um artefato do modelo da contemporaneidade é o capital corporativo da sociedade de comunicação cibernética. Trata-se de uma ruptura com o modelo multinacional que tem no Príncipe eletrônico seu grande fenômeno de cultura política nacional.
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A nacionalização do Príncipe cibernético se faz na junção da economia com a política. Falo dessa realidade.
A pré-condição para a existência do Príncipe cibernético infame é o país ser parte da acumulação ampliada mundial de capital do departamento 4, departamento do capitalismo corporativo cibernético da sociedade de comunicação. É o caso do Brasil.
O Príncipe infame é a capacidade para produzir o mal na política. A insídia e a intriga são parte da narrativa digital na política infame O Príncipe é <amari aliquid>, sinistro, impiedoso, virulento, imoral no mundo cibernético.
Em 2019, surgiu o Príncipe cibernético amari aliquid no Brasil. Trata-se do discurso político <transição ao regime autoritário>. A família de Bolsonaro pilota o Príncipe infame.
As notícias falsas (Fake News) são a parte substancial da gramática cibernética do nosso Príncipe. As Fake News bolsonaristas foram usadas para eleger Bolsonaro presidente da República. A oposição oficial acreditava que era só um fenômeno eleitoral. E não é! Trata-se de um fenômeno político cibernético tout court.
O Príncipe infame virou o “gabinete do ódio” digital no Palácio da Alvorada. As manifestações de rua da massa bolsonarista aparecem com uma espécie de simulacro de simulação de populismo de direita do Príncipe. Ele passou a descarregar todas as suas baterias no STF. O Príncipe é uma máquina de guerra política cibernética cujo objetivo é aterrorizar as altas cúpulas do aparelho de Estado e da sociedade civil, como o jornalista W. Bonner e o apresentador conservador da televisão Datena, por exemplo.
A presença do Príncipe infame cria e recria a atmosfera pestilenta de que o país vive uma crise política natural. De fato, o país vive uma crise política cibernética. Nesta crise, a luta entre os ramos do aparelho (de Estado e dentro do aparelho de Estado) significa que a governabilidade existe como governo em colapso. Há uma suspensão do governo como direção intelectual, moral e política da nação.
O Brasil vive uma época de prodigalidade infame na política. Bolsonaro ombreia com Trump na ocupação do lugar do Príncipe infame na política mundial. De fato, a capacidade de produção do mal político (e econômico) de Bolsonaro é infinitamente maior do que o de Trump.
Na linguagem real da política mundial, o Príncipe cibernético e o discurso político cibernético são parte da hegemonia do capitalismo corporativo cibernético mundial.
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“Todo hecho es ya teoría, dice Goethe. (Hegel: 23).
Todo fato é já gramática da história. O fato histórico é artefato, pois, a realidade dos fatos só existe em um dizer de um discurso e como fato de um outro discurso como espelho da realidade. 
O Príncipe do século XXI é um artefato cibernético na realidade dos fatos. Tal artefato é parte das gramáticas da história econômica do capitalismo corporativo cibernético mundial. Para evitar o anarcoempirismo na leitura da política da contemporaneidade se faz necessário trabalhar com artefatos cibernéticos: discurso político cibernético, Estado-Cientista cibernético etc.  
A sociedade de comunicação cibernética abre a porta para o Príncipe cibernético, que substitui a hegemonia política do Príncipe eletrônico. A sociedade em tela é o lugar da acumulação ampliada capitalista mundial de capital cibernético (ou digital na linguagem vulgar). Então, a questão da hegemonia deve ser vista a partir do campo de poderes/saberes cibernético.
No campo em tela, a nova ordem mundial faz a junção do Ocidente com o Oriente, do país desenvolvido com o país subdesenvolvido, da sociedade moderna ou tradicional com a sociedade cibernética.
A covid-19 fez nascer o Príncipe cibernético mundial como Estado-cientista cibernético, natural. A forma acabada do Estado-cientista encontra-se na China em aliança com a OMS. Por isso, Donald Trump fala de uma OMS chinesa.
Como já vimos o Príncipe cibernético tem suas formas nacionais. Nas Américas, ele existe como Príncipe infame capaz de praticar o genocídio covidiano, com um  Donald Trump envergonhado e, especialmente, com um Bolsonaro.
A gramática cibernética regula um campo de poderes/saberes cibernético mundial e, em certos casos, nacional. Não há como fazer a leitura da história da contemporaneidade sem a presença, em determinados países, da gramática da política cibernética.
Um país pode ser um atraso por sua história econômica subdesenvolvida e avançado pela simples existência em seu território da gramática do capitalismo corporativo cibernético da comunicação:
“O essencial é o entrelaçamento da sociedade do conhecimento com a sociedade industrial. Baseada no trabalho simbólico, a sociedade do conhecimento é antiprodução na produção que gerou o capitalismo globalizado e a sociedade industrial cyber. Trata-se de uma revolução no capitalismo que fez do Ocidente o centro de uma sociedade pós-capitalista e do Oriente asiático o espaço de uma nova formação social capitalista industrial cyber”. (Bandeira da Silveira. 2019a: 150).
O Estado-cientista surge como antiprodução; ele conduz o subdesenvolvimento chinês para a sociedade industrial corporativa cibernética desenvolvida sob a hegemonia do capitalismo corporativo de Estado; o modelo chinês aparece como a via de desenvolvimento para os grandes países subdesenvolvidos com indústria corporativa cibernética da sociedade de comunicação.
O Príncipe infame cibernético é um uso estratégico de uma coalizão reacionária do campo da direita para tomar o poder político e conservá-lo. Esse Príncipe unifica o campo da direita que desenvolve fenômenos como o <capitalismo criminoso> (Platt)  e o  <kriminostat> (Virílio). Ele tem na sua retaguarda o Príncipe eletrônico que existe como representante do capitalismo subdesenvolvido neoliberal.
O campo da esquerda e o campo progressista ainda não tomaram consciência que o inimigo é a aliança espúria do Príncipe cibernético com o Príncipe eletrônico:
“Na atualidade, o campo de poderes econômico tem duas redes-centros que atravessam países capitalistas subdesenvolvidos e tentam invadir as fronteiras econômicas dos países desenvolvidos. São eles: o <Kriminostat>, (Virilio: 54-55) e o <capitalismo criminoso>, especialmente da lavagem de dinheiro. (Platt: 45). 
No Brasil, uma burguesia tribal (Maffesoli: 147) africanizada neoliberal (Bandeira da Silveira. 2019a: 191-202) se tornou o centro social do campo de poderes econômico neoliberal. Ela conduz o país direto para o desenvolvimento (aprofundamento) do capitalismo subdesenvolvido neoliberal caboclo”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 235).
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A transição ao regime autoritário é a estratégia de Bolsonaro e seus generais agora com reforço do Centrão (coalizão de partidos reacionários oligárquicos) e maioria do empresariado nacional e local, rural e urbano.  Contra essa coalizão reacionária do capitalismo subdesenvolvido neoliberal se levanta a corporação jurídica da sociedade civil. Esta ocupa o proscênio do palco da oposição oficial.
Aa contradição agônica na política recebe um involucro jurídico. O mundo jurídico passa a agir como uma força prática da política nacional contra a estratégia transição ao regime autoritário via golpe de Estado, ou tutela militar do poder civil pelo poder dos generais e quejandos! 
As contradições do regime 1988 exigem uma solução democrática em sua solução. O campo da direita no poder político com Bolsonaro (ou bolsonarismo sem Bolsonaro) se define como a única alternativa de poder à esquerda petista.
O país se encontra e um beco sem saída, pois, a derrota do bolsanarismo sem Bolsonaro (efeito do impeachment) depende da esquerda e progressistas pensarem um modelo econômico utópico para retirar o Brasil do subdesenvolvimento neoliberal.
A esquerda não se define como teoria em posse de uma gramática do Brasil da contemporaneidade. Assim, ela é não-contemporânea do presente e do futuro.
A formação de uma frente política requer uma gramática que cimente essa política como força prática da história do presente e do futuro pós-covid-19.
Então, a maioria do Brasil espera por essa força prática gramaticalizada.  
      
  
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo. Lisboa: Chiado Books, 2019a
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje. Lisboa: Chiado Books, 2019b
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino: Einaudi, 1977
HEGEL. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Madrid: Alianza Editoria, 1980
LACAN, Jaques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político. A tribalização do mundo. Porto Alegre: Sulina, 1997
PLATT, Stephen, Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique, 1977   
    

    

  

      



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