José Paulo
No ponto-de-partida teórico dessa nova leitura da história do
Brasil contemporâneo encontramos a ideia de <gramática>, de Gramsci:
“Poder-se-ia esboçar um quadro da <gramática normativa> que opera espontaneamente em toda
sociedade determinada na medida em que ela tende a unificar-se seja como
território, seja como cultura. Ou seja, na medida em que nela existe uma camada
dirigente cuja função seja reconhecida e seguida. O número das <gramáticas espontâneas> ou ‘imanentes’ é incalculável;
pode-se dizer, teoricamente que cada pessoa tem sua própria gramática. Não
obstante, ao lado desta desagregação de fato, deve-se sublinhar os movimentos
unificadores, de maior ou menor amplitude, seja como área territorial, seja
como ‘volume linguístico’. As ‘gramáticas normativas’ escritas tendem a abarcar
todo um território nacional e todo o ‘volume linguístico’, a fim de criar um
conformismo linguístico nacional unitário que, outrossim, coloca num plano mais
elevado o ‘individualismo’ expressivo, já que cria um esqueleto mais robusto e
homogêneo para o organismo linguístico nacional, do qual cada indivíduo é o
reflexo e o intérprete. (Gramsci: v. 3: 2343).
A história é uma plurivocidade de gramática, que dá a ela,
história, uma aparência anarcogramatical. Ao contrário, a gramática hegemônica
é o laço social contrário ao anarcogramaticalismo desagregador do significante sociedade
nacional.
A hegemonia gramatical faz pendant com uma classe dirigente
que surge nos momentos de transformação da história nacional associada à
história internacional. Identificar o ponto de não retorno da gramática
hegemônica é o método mais seguro no estudo da história nacional.
O ponto-de-partida histórico da gramática do Brasil
contemporâneo é a revolução econômica da corporação capitalista multinacional?
Na política, a Constituição 1988 é o ponto-de-partida da
nossa contemporaneidade gramatical de uma ordem corporativa?
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Para falar da gramática constitucional é preciso dizer que
ela é um plurivocidade de gramática. Assim, as gramáticas necessitam do STF
para interpretar as frases e orações constitucionais, atualizando-as.
Para atualizar a gramática constitucional 1988, falo do
Artigo 142 objeto de uma luta gramatical entre o STF e o presidente da República,
Jair Bolsonaro. Este usa a leitura do jurista Ives Gandra de que as Forças
Armadas podem agir, constitucionalmente, como o velho <poder moderador> monárquico.
Artigo 142. As Forças Armadas constituídas pela Marinha, pelo
Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares
organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do
Presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos
poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da
ordem.
A oração fala da garantia dos poderes constitucionais. Na
realidade empírica natural, garantia pode ser atribuição do Estado de polícia.
Os constituintes fizeram um texto conservador de viés autoritário ao
militarizar a garantia do funcionamento dos poderes republicanos. Trata-se de uma excrecência da gramática da
ditadura militar na Constituição democrática 1988. Na própria Constituição não acontece uma
ruptura clara, evidente e devastadora com a ditadura militar.
Por iniciativa de qualquer dos poderes republicanos, as F.A.
podem funcionar como <poder moderador> na garantia da lei e da ordem. Na atual conjuntura política,
Bolsonaro quer usar o Artigo 42 no seu discurso <transição ao regime autoritário> por via pacífica.
Como os juristas dizem, Bolsonaro quer constitucionalizar a ruptura
autoritária na democracia 1988.
Bolsonaro usa a leitura jurídica do artigo 42 para
desenvolver a sua gramática política pessoal. Como diz Gramsci, a realidade é
feita de uma plurivocidade de gramática, incluindo as gramáticas dos
indivíduos.
A ambiguidade gramatical do Artigo 42 encontra-se no palco
principal do conflito aberto entre Bolsonaro e o STF e o mundo jurídico da
sociedade civil. Como há ambiguidade, cabe ao pleno da Corte interpretar a
Constituição e pôr um fim na ambiguidade. Se Bolsonaro usar ao artigo 142 para
um agir político, envolvendo a cúpula das F. A. como poder moderador, ele faz
das F.A. um poder aconstitucional. Ele põe estas forças republicanas na
ilegalidade gramatical constitucional.
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Escrever sobre a gramática do Brasil não é uma tarefa fácil,
se se é leigo no estudo teórico e empírico das gramáticas. A essa minha leitura
do Brasil se realiza após várias interpretações, minhas, da história do Brasil
moderno.
A revolução econômica da corporação capitalista multinacional
é o signo da gramática econômica do Brasil da contemporaneidade. Trata-se de um novo começo de leitura do
Brasil.
No livro “Subdesenvolvimento hoje”, estabeleci um princípio
de funcionamento da gramática da história:
“Fatos estão fora da interpretação da realidade histórica. A
realidade não é feita de fatos, e sim de artefatos. Há que dizer um fato para
que ele exista como artefato. (Lacan. S. 18:15). A gramática da história
trabalha com a realidade definida como conjunto de artefatos”. (Bandeira da
Silveira. 2019b: 257).
Leitura de uma determinada camada de significações do Brasil
da contemporaneidade pode ser dita, assim:
“Uma república rural, oligárquica, capitalista foi hegemônica
até o surgimento da república urbana, industrial paulista do capitalismo
subdesenvolvido industrializado. A Constituição 1988 é a gramática da burguesia
industrial, urbana, paulista. A gramática econômica da burguesia rural,
industrial de hoje está destruindo a Constituição 1988. Hoje, temos um
Congresso que é um efeito da gramática econômica da burguesia rural,
industrial, amazônica, que avança sem controles do Estado-cientista sobre a
Amazônia”. (Bandeira da Silveira. 2019: 263).
Esta leitura da gramática do Brasil contemporânea é
incompleta. Outros artefatos precisam ser acrescentados por uma nova leitura:
“Os campos de poderes/saberes (econômico, político, cultural)
constituem os artefatos por onde começar a interpretação da história. Os
sujeitos individuais e institucionais existindo no campo de poderes/saberes são
os artefatos que atualizam a gramática da história, gramática que articula as
formações sociais”. (Bandeira da
Silveira. 2019b: 257-258).
O campo de poderes/saberes da contemporaneidade tem como
artefatos, além dos já mencionados, a corporação capitalista multinacional, o
capitalismo burocrático de Estado, a corporação científica dos cientistas e
instituições de ciência e a universidade estatal nacional ou local,
corporativas. Corporações de juízes e militares se integram à ordem
corporativista das multinacionais constitucionalizadas pela Constituição 1988.
O mundo do trabalho das corporações multinacionais foi a base econômica de
governos de esquerda que entram em colapso com a crise do modelo corporativo
capitalista das multinacionais, cujo signo é a desindustrialização urbana do
país.
Um artefato do modelo da contemporaneidade é o capital
corporativo da sociedade de comunicação cibernética. Trata-se de uma ruptura
com o modelo multinacional que tem no Príncipe eletrônico seu grande fenômeno
de cultura política nacional.
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A nacionalização do Príncipe cibernético se faz na junção da
economia com a política. Falo dessa realidade.
A pré-condição para a existência do Príncipe cibernético
infame é o país ser parte da acumulação ampliada mundial de capital do
departamento 4, departamento do capitalismo corporativo cibernético da sociedade
de comunicação. É o caso do Brasil.
O Príncipe infame é a capacidade para produzir o mal na
política. A insídia e a intriga são parte da narrativa digital na política
infame O Príncipe é <amari aliquid>, sinistro, impiedoso, virulento,
imoral no mundo cibernético.
Em 2019, surgiu o Príncipe cibernético amari aliquid no
Brasil. Trata-se do discurso político <transição ao regime autoritário>.
A família de Bolsonaro pilota o Príncipe infame.
As notícias falsas (Fake News) são a parte substancial da gramática
cibernética do nosso Príncipe. As Fake News bolsonaristas foram usadas para
eleger Bolsonaro presidente da República. A oposição oficial acreditava que era
só um fenômeno eleitoral. E não é! Trata-se de um fenômeno político cibernético
tout court.
O Príncipe infame virou o “gabinete do ódio” digital no
Palácio da Alvorada. As manifestações de rua da massa bolsonarista aparecem com
uma espécie de simulacro de simulação de populismo de direita do Príncipe. Ele
passou a descarregar todas as suas baterias no STF. O Príncipe é uma máquina de
guerra política cibernética cujo objetivo é aterrorizar as altas cúpulas do
aparelho de Estado e da sociedade civil, como o jornalista W. Bonner e o
apresentador conservador da televisão Datena, por exemplo.
A presença do Príncipe infame cria e recria a atmosfera
pestilenta de que o país vive uma crise política natural. De fato, o país vive
uma crise política cibernética. Nesta crise, a luta entre os ramos do aparelho
(de Estado e dentro do aparelho de Estado) significa que a governabilidade
existe como governo em colapso. Há uma suspensão do governo como direção
intelectual, moral e política da nação.
O Brasil vive uma época de prodigalidade infame na política.
Bolsonaro ombreia com Trump na ocupação do lugar do Príncipe infame na política
mundial. De fato, a capacidade de produção do mal político (e econômico) de
Bolsonaro é infinitamente maior do que o de Trump.
Na linguagem real da política mundial, o Príncipe cibernético
e o discurso político cibernético são parte da hegemonia do capitalismo
corporativo cibernético mundial.
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“Todo hecho es ya teoría, dice Goethe. (Hegel: 23).
Todo fato é já gramática da história. O fato histórico é
artefato, pois, a realidade dos fatos só existe em um dizer de um discurso e
como fato de um outro discurso como espelho da realidade.
O Príncipe do século XXI é um artefato cibernético na
realidade dos fatos. Tal artefato é parte das gramáticas da história econômica do
capitalismo corporativo cibernético mundial. Para evitar o anarcoempirismo na
leitura da política da contemporaneidade se faz necessário trabalhar com
artefatos cibernéticos: discurso político cibernético, Estado-Cientista
cibernético etc.
A sociedade de comunicação cibernética abre a porta para o
Príncipe cibernético, que substitui a hegemonia política do Príncipe
eletrônico. A sociedade em tela é o lugar da acumulação ampliada capitalista
mundial de capital cibernético (ou digital na linguagem vulgar). Então, a
questão da hegemonia deve ser vista a partir do campo de poderes/saberes
cibernético.
No campo em tela, a nova ordem mundial faz a junção do
Ocidente com o Oriente, do país desenvolvido com o país subdesenvolvido, da
sociedade moderna ou tradicional com a sociedade cibernética.
A covid-19 fez nascer o Príncipe cibernético mundial como
Estado-cientista cibernético, natural. A forma acabada do Estado-cientista
encontra-se na China em aliança com a OMS. Por isso, Donald Trump fala de uma
OMS chinesa.
Como já vimos o Príncipe cibernético tem suas formas
nacionais. Nas Américas, ele existe como Príncipe infame capaz de praticar o
genocídio covidiano, com um Donald Trump
envergonhado e, especialmente, com um Bolsonaro.
A gramática cibernética regula um campo de poderes/saberes
cibernético mundial e, em certos casos, nacional. Não há como fazer a leitura
da história da contemporaneidade sem a presença, em determinados países, da
gramática da política cibernética.
Um país pode ser um atraso por sua história econômica
subdesenvolvida e avançado pela simples existência em seu território da
gramática do capitalismo corporativo cibernético da comunicação:
“O essencial é o entrelaçamento da sociedade do conhecimento
com a sociedade industrial. Baseada no trabalho simbólico, a sociedade do
conhecimento é antiprodução na produção que gerou o capitalismo globalizado e a
sociedade industrial cyber. Trata-se de uma revolução no capitalismo que fez do
Ocidente o centro de uma sociedade pós-capitalista e do Oriente asiático o
espaço de uma nova formação social capitalista industrial cyber”. (Bandeira da
Silveira. 2019a: 150).
O Estado-cientista surge como antiprodução; ele conduz o
subdesenvolvimento chinês para a sociedade industrial corporativa cibernética
desenvolvida sob a hegemonia do capitalismo corporativo de Estado; o modelo
chinês aparece como a via de desenvolvimento para os grandes países
subdesenvolvidos com indústria corporativa cibernética da sociedade de
comunicação.
O Príncipe infame cibernético é um uso estratégico de uma
coalizão reacionária do campo da direita para tomar o poder político e conservá-lo.
Esse Príncipe unifica o campo da direita que desenvolve fenômenos como o <capitalismo criminoso> (Platt) e o <kriminostat> (Virílio). Ele tem na sua retaguarda
o Príncipe eletrônico que existe como representante do capitalismo
subdesenvolvido neoliberal.
O campo da esquerda e o campo progressista ainda não tomaram
consciência que o inimigo é a aliança espúria do Príncipe cibernético com o
Príncipe eletrônico:
“Na atualidade, o campo de poderes econômico tem duas
redes-centros que atravessam países capitalistas subdesenvolvidos e tentam
invadir as fronteiras econômicas dos países desenvolvidos. São eles: o <Kriminostat>, (Virilio: 54-55) e o <capitalismo criminoso>, especialmente da lavagem de
dinheiro. (Platt: 45).
No Brasil, uma burguesia tribal (Maffesoli: 147) africanizada
neoliberal (Bandeira da Silveira. 2019a: 191-202) se tornou o centro social do
campo de poderes econômico neoliberal. Ela conduz o país direto para o
desenvolvimento (aprofundamento) do capitalismo subdesenvolvido neoliberal
caboclo”. (Bandeira da Silveira. 2019b: 235).
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A transição ao regime autoritário é a estratégia de Bolsonaro
e seus generais agora com reforço do Centrão (coalizão de partidos reacionários
oligárquicos) e maioria do empresariado nacional e local, rural e urbano. Contra essa coalizão reacionária do
capitalismo subdesenvolvido neoliberal se levanta a corporação jurídica da
sociedade civil. Esta ocupa o proscênio do palco da oposição oficial.
Aa contradição agônica na política recebe um involucro
jurídico. O mundo jurídico passa a agir como uma força prática da política nacional
contra a estratégia transição ao regime autoritário via golpe de Estado, ou tutela militar do poder civil pelo poder dos generais e quejandos!
As contradições do regime 1988 exigem uma solução democrática
em sua solução. O campo da direita no poder político com Bolsonaro (ou
bolsonarismo sem Bolsonaro) se define como a única alternativa de poder à
esquerda petista.
O país se encontra e um beco sem saída, pois, a derrota do
bolsanarismo sem Bolsonaro (efeito do impeachment) depende da esquerda e
progressistas pensarem um modelo econômico utópico para retirar o Brasil do
subdesenvolvimento neoliberal.
A esquerda não se define como teoria em posse de uma
gramática do Brasil da contemporaneidade. Assim, ela é não-contemporânea do
presente e do futuro.
A formação de uma frente política requer uma gramática que
cimente essa política como força prática da história do presente e do futuro pós-covid-19.
Então, a maioria do Brasil espera por essa força prática
gramaticalizada.
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Gramáticas do capitalismo.
Lisboa: Chiado Books, 2019a
BANDEIRA DA SILVEIRA, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje.
Lisboa: Chiado Books, 2019b
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Carcere. V. 3. Torino:
Einaudi, 1977
HEGEL. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal.
Madrid: Alianza Editoria, 1980
LACAN, Jaques. O Seminário. Livro 18. De um discurso que não
fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político. A tribalização
do mundo. Porto Alegre: Sulina, 1997
PLATT, Stephen, Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique, 1977