José Paulo
O PCC (“Primeiro Comando da Capital” é considerado, pelos
especialistas em máfia, como uma organização criminoso privada mafiosa. A
milícia é considerada uma organização criminosa público/privada. O narcotráfico
uma organização criminosa privada.
Neste texto, penso, no Brasil, um <modelo político mafioso> público/privado que passa a dominar
a política no lugar do modelo político oligárquico público/privado. E vou além
do Brasil, ao mostrar os vínculos gramaticais do modelo político mafioso com o
capitalismo subdesenvolvido da atualidade.
A máfia surge em uma região da Itália, a Sicília
centro-ocidental (Lupo: 67). O contexto histórico do surgimento do fenômeno faz
pendant com o aparecimento pela primeira vez de uma ideia moderna de Estado
(Lupo: 64). A estatização do campo de poderes social e político moderno é parte
da formação da unidade política italiana.
No Sul, determinados grupos sociais exercem sobre a população
uma função de ordem e controle que é parte da fundação de um <campo de poderes social> mafioso:
“O arrendatário desempenha uma função de ordem e de controle
social que vai além dos âmbitos da grande propriedade de cultura extensiva: o
seu aparato de campeiros e supervisores substitui as milícias feudais
setecentista, acompanha as milícias comunais oitocentistas, cobre os espaços
deixados vazio pelo controle primeiro do Estado borbônico e depois liberal”.
(Lupo: 67).
O campo de poderes social mafioso surge no vazio da
estatização do campo de poderes social e político:
“Já Emilio Sereni, há muitos anos, via a Máfia não tanto como
resíduo feudal quanto como instrumento de uma burguesia ‘abortada’, justamente
a dos rendeiros, que no curso da longa desagregação da economia e dos poderes
feudais desenvolve uma capacidade de intimidação que é exercida tanto para cima
como para baixo na hierarquia social. Enquanto se desagregam os patrimônios da
velha aristocracia, as frações da comunidade local tentam interceptar os fluxos
dessa riqueza, definindo até com violência, voltada para dentro ou para fora, a
concorrência para o aluguel ou a aquisição de terrenos. Das comunas, por meio
de impostos, os novos grupos dirigentes voltam a influenciar âmbitos
geográficos mais amplos. Trata-se de um elemento que encontra suas
características típicas na Sicília centro-ocidental”. (Lupo: 6 7).
O campo de poderes social mafioso nasce em junção com uma
economia mafiosa.
A versão de um campo de poderes social mafioso surge na
cidade do Rio de Janeiro na segunda década do século XXI. No Brasil, a ciência
social não detém recursos intelectuais para desenvolver a percepção e a
reflexão sobre o fenômeno em tela. ou não quer. Neste ensaio, anúncio, apenas,
o abc do fenômeno mafioso carioca.
Qual o contexto histórico do surgimento do fenômeno mafioso
carioca? Ao contrário da Sicília, não é o surgimento da ideia de Estado moderno
ou estatização do campo de poderes social e político.
No Rio, a desintegração da estatização do campo de poderes
local fornece o contexto para o surgimento da máfia carioca que vem ocupar o
vazio deixado pelo fenômeno supracitado. O narcotráfico é o pretexto para a
constituição do campo de poderes mafioso das <mil repúblicas do crime>.
O campo de poderes mafioso se faz e refaz a partir da lógica
do <poder territorial animal>. Poder que exerce a função de ordem
e controle social da população que habita o campo de poderes mafioso.
Como na Sicília, o campo de poderes mafioso ancora em uma
economia conhecida como miliciana. Tal fenômeno é produção de uma nova
sociedade, pois, é preciso sublinhar o surgimento de uma classe média que nasce
como efeito da economia do campo de poderes mafioso. Trata-se de uma classe
média provida de uma moralidade criminosa, que não é parte da estatização do
campo de poderes local da ordem jurídica da Constituição 1988.
O campo de poderes mafioso tem como alavanca a história
neoliberal nacional do governo Michel Temer e do parlamento que derruba a
presidente Dilma Rousseff em 2016. Em 2013, um movimento de massas carioca
denunciou a desagregação do Estado local e foi duramente combatido pelo governo
de Sérgio Cabral, que se constitui em uma organização criminosa política. É o
início da desestatização do campo de poderes social e político local. O MDB
noir é o partido político que prepara o surgimento do campo de poderes mafioso
pelo alto.
A história do campo de poderes mafioso carioca ainda precisa
ser escrita. Todavia, a soberania popular 2018 foi um motor que pôs o campo de
poderes mafioso local nas estruturas do Estado nacional, com a vitória do
outrora capitão do Exército e deputado federal Jair Messias Bolsonaro e de uma
força prática parlamentar mafio-neoliberal. Aí começa a aceleração da desestatização do campo de poderes legal 1988 e, pari passu, a privatização neoliberal desse campo por um campo de poderes mafioso.
Há que se pensar, acuradamente, a hegemonia do modelo político mafioso no
lugar do modelo político oligárquico a partir da produção da política
brasileira pela soberania popular 2018.
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A desagregação da estatização 1988 do campo de poderes social
e político tem como motor a trânsfuga en masse de membros do aparelho de segurança
pública (aparelho do Estado de polícia) para o campo de poderes mafioso,
vulgarmente, e erradamente, conhecido como miliciano. Assim, o campo de poderes
das mil repúblicas do crime inscreve no aparelho repressivo de Estado uma
lógica que subverte o funcionamento essencial dele.
O que é o <aparelho repressivo de Estado>?
O aparelho repressivo de Estado significa: “Repressivo indica
que o aparelho de Estado em questão ‘funciona através da violência’ – ao menos
em situações limites (pois a repressão administrativa, por exemplo, pode
revestir-se de formas não físicas”. (Althusser:82). Em Marx, o Estado é uma
unidade política de poder de Estado e aparelho de Estado. (Balibar: 94).
Poulantzas esclarece bem o tema do Estado no marxismo
francês:
“Toda forma estatal, mesmo a mais sanguinária, edificou-se
sempre como organização jurídica, representou-se no direito e funcionou sob
forma jurídica: sabe-se muito bem que assim foi com Stálin e sua Constituição
1937, reputada como a ‘mais democrática do mundo”. Portanto nada mais falso que
uma presumível oposição entre arbítrio, os abusos, a boa vontade do príncipe e
o reino da lei”> (Poulantzas: 83)
Desconstruído a ideologia jurídico-legalista do Estado,
Poulantzas acrescenta:
“A lei é parte integrante da ordem repressiva e da
organização da violência exercida por todo o Estado. O Estado edita a regra,
pronuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo de injunções, de
interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da
violência. E mais, a lei organiza as leis de funcionamento da repressão física,
designa e gradua as modalidades, enquadra os dispositivos que a exercem. A lei é,
assim, o código da violência pública organizada”. (Poulantzas: 84).
Uma lista de citações nos porá na linha de argumentação
gramatical sobre o Estado na terceira década do século XXI:
“A monopolização pelo Estado da violência legítima permanece
o elemento dominante do poder, mesmo quando essa violência não é exercida
direta e abertamente”. (Poulantzas: 89).
Em algum momento da história do Estado capitalista, o
monopólio legitimo da violência real deixou de se determinante na realidade
desse Estado:
“Todas as organizações têm perfis políticos, mas apenas no
caso de Estados é que envolve a consolidação de um poder militar em associação
ao controle dos meios de violência dentro de uma extensão territorial. Um
Estado pode ser definido como uma organização política cujo domínio é
territorialmente organizado e capaz de acionar os meios de violência para
sustentar esse domínio. Tal definição é próxima daquela de Weber, mas não
destaca uma reivindicação ao monopólio dos meios de violência ou fator de
legitimidade”. (Giddens: 45).
Na sociologia londrina, o Estado passa a ser uma força
prática utópica que busca o monopólio da violência real legitima ao lado de um
Estado que não busca a legitimidade, no seu agir, nem pretende deter o
monopólio da violência, legal ou ilegalmente. Assim se desintegra a ideia de
Estado moderno na história do Estado que vai deixar de se definir como Estado
de direito capitalista.
Prosseguindo:
“Essa monopolização está na base das novas de lutas sob o
capitalismo, às quais corresponde o papel dos dispositivos de organização do
consentimento, pois poder e lutas se atraem e se condicionam mutuamente. A
concentração da força armada pelo Estado, o desarmamento e a desmilitarização
dos setores privados – condição para estabelecimento da exploração capitalista
– contribuem para deslocar a luta de classes, de uma guerra civil permanente de
conflitos armados periódicos e regulares, para as novas formas de organização
política e sindical das massas populares, contra as quais a violência física
aberta é, sabe-se, de eficiência relativa”. (Poulantzas:89-90).
O modelo político mafioso se instala com o desaparecimento da
sociedade classes e da luta de classes, entre nós. Outras lutas de um campo de
poderes mafioso toma o lugar da luta de classes, e confrontam o Estado moderno,
como as lutas do cristão político, da classe média mafiosa, da imprensa e mass
media mafiosos, que vem a transformar a natureza do Estado nacional em um
Estado do capitalismo subdesenvolvido com indústria rural e sem sociedade industrial
urbana.
Sigo:
“Um povo ‘privado’ da força ‘pública” já é um povo que não
vive mais o domínio político sob a forma de fatalidade natural e sagrada, um
povo para o qual o monopólio da violência pelo Estado só é legítimo na medida
em que a regulamentação jurídica e a legalidade lhe permite esperar, e mesmo
permite formalmente e em princípio, o acesso ao poder. Enfim, o Estado
concentra a violência em seus corpos especializados, enquanto ela cada vez é
insuficiente para a reprodução do domínio. Às guerras privadas e aos conflitos
armados sob forma de teodiceias repetitivas – incansavelmente colocadas na
ordem do dia, catarse da fatalidade do poder, guerras pacificadas pela
concentração da força armada no Estado – sucede a permanente contestação
política do poder, consequência da monopolização da força física pelo Estado”.
(Poulantzas:90).
O modelo político mafioso pelo alto foi importado da história
carioca do neoliberalismo, sendo neoliberalismo a porta de entrada para o
capitalismo subdesenvolvido de hoje na América Latina.
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O <capitalismo criminoso> (Platt:19, 45, 101) e o <criminostat> (Virilo: 57) são formas do desenvolvimento do
subdesenvolvimento nas Américas, ao menos. Ambos transformam o campo de poderes
mafioso, no Brasil, em um fenômeno nacional, pois, temos governo central,
parlamento, poder judicial, Forças Armadas, Estado de segurança pública, Estado
de polícia, mass media como poderes/saberes sob uma articulatória direta ou
indireta do campo de poderes das mil repúblicas mafiosas.
A classe média mafiosa é um fenômeno da história italiana do
século XIX:
“Nessa situação, o controle agrícola da hintelândia urbana
vem representar um veículo importante de promoção social, em particular para os
mafiosos que se interessam pela vigilância, pelo arrendamento, pela mediação
comercial. Já foi visto o caso Giammona. Os já lembrados irmãos Amoroso são
definidos com certo exagero como ‘pessoas de bem, filhos de proprietários”; os
Licatas são chamados de ‘abastados’. Em todos eles podemos identificar
facilmente os ‘facínoras da classe média” aos quais se refere Franchetti para
representar o modelo típico do chefe mafioso”. (Lupo; 133).
No Brasil, ela é constituída por um movimento econômico de ascensão
de massas das classes baixas, que vivem do lado de fora da ordem constitucional
1988.
A classe média em tela é um caminho de ascensão social de
massas das classes baixas, que deixaram de acreditar no capitalismo legal e na
política social do Estado 1988 como formas de ascensão social. Nos governos do
PT, a ascensão social legal das massas da classes baixas aparece como uma força
prática regulada pelo princípio esperança lulista. Tal fenômeno foi destruído
pelo modelo político mafioso.
O desenvolvimento do subdesenvolvimento sem indústria urbana
desfaz o vínculo da classe média emergente com a ordem do capitalismo legal
1988. Esta classe média mafiosa é a revolta contra o fracasso da ordem
capitalista legal 1988. O caso do capitão Adriano é luminar. Policial estadual,
ele é expulso do aparelho repressivo e se torna um homem do campo de poderes mafioso, e aí se tornar o condottiere do aparelho
de matadores de aluguel conhecido como “Escritório do Crime”. Perseguido pela
polícia do Rio, se refugia na Bahia e se apresenta como um comprador de terras.
Uma operação da polícia baiana o mata em uma situação pouco clara. O presidente
da República e o senador Flávio Bolsonaro cobram explicações do governador
petista da Bahia, que diz que não é responsável pela ação policial. Assim, a
ordem fática do novo coronelismo urbano noir de esquerda mostra sua face para
todo o país.
O caso da morte do capitão Adriano mostra para o Brasil que
não existe mais ordem legal, entre nós. O campo de poderes mafioso carioca
assassinou a vereadora de esquerda e LGBT Marielle Franco. Depois de mais de um
ano a polícia do Rio não consegue descobrir quem foi o mandante desse crime
político macabro.
O discurso mafioso dos mass media se esforçam para ocultar ou
enterrar a percepção sensível da realidade do subdesenvolvimento e de seu
modelo político mafioso contra todas as evidências e fatos da existência dessa
história econômica do subdesenvolvimento e sua superestrutura mafiosa.
O Rio deixou de ser
uma <civitas>, pois, existe agora como um vasto
campo territorial de guerras privadas moleculares do subdesenvolvimento
capitalista. O modelo político mafioso é a forma política que vai se
nacionalizando como consequência do aprofundamento do capitalismo
subdesenvolvido com indústria rural de commodities, mas sem sociedade
industrial urbana.
A classe média mafiosa se submete, inclusive economicamente,
à ordem fática do campo de poderes mafioso. E só, depois, se integra em
baixíssima intensidade à ordem constitucional 1988.
O campo de poderes social mafioso se inscreve na política:
“Como se verá, tanto o general como o chefe de polícia têm
algo a ser perdoado, dando assim a sua contribuição para um escândalo
‘demasiado amplo e indefinido’ que, observam preocupados Pelloux e Sonnino, põe
em discussão o próprio equilíbrio político. No palco de Milão, os atores
recitam um texto tão subversivo que leva o comando militar local a proibir os
oficiais de frequentar as sessões do processo; mas para todos, presentes e
ausentes, os enviados especiais restituem o quadro dos advogados que acusam as
instituições de cumplicidade, políticos e policiais que se acusam reciprocamente,
para a vergonha dos bem-pensantes e a alegria dos subversivos. Os primeiros
devem admitir a presença de ‘um veneno misterioso, sutil...floresce sob a capa
da Máfia a força da política, sob a capa da política a força da Máfia; os segundos
podem constatar a miséria do Estado que pretende julgá-los”. (Lupo:159).
O campo de poderes mafioso brasileiro pelo alto significa que
o Estado constitucional 1988 não tem mais forças para enfrentá-lo. Assistimos
uma adaptação darwinista dos membros dos poderes constitucionais à ordem fática
do funcionamento do campo de poderes político mafioso nacional. A fórmula de
Bolsonaro “mais Brasil, menos Brasília, significa, de fato, mais Rio. menos
Brasil.
Acabo com uma citação que arremata a hipótese desse ensaio da
diferença entre o subdesenvolvimento de outrora e o subdesenvolvimento de hoje
“O Estado aparece como o suplemento necessário ao
desenvolvimento capitalista (ou do subdesenvolvimento na periferia
capitalista). O Estado é uma instituição pública, ou melhor um centro de poderes
voltado para a solução de conflitos e para manter a ordem capitalista. Trata-se
de uma instituição especial que usa o monopólio da força real necessária para a
manutenção do conjunto de relações de propriedade. O Estado deveria exercer a
soberania sobre todos os que estão sob sua jurisdição. Ele é identificado como
avalista de um determinado conjunto de relações de propriedade. O monopólio do
poder de Estado é dominante.
No capitalismo subdesenvolvido pós-moderno, o Estado deixa de
deter o monopólio da força real sobre a população e o território”. (Bandeira da
Silveira: 39).
O modelo político mafioso brasileiro é a formação da política
no capitalismo subdesenvolvido sem sociedade industrial urbana.
ALTHUSSER, Louis. Positions. Idéologie et appareils idéologique
d’Etat. Paris: Editions Sociales, 1976
BALIBAR, Ètienne. Cinq études du matérialisme historique.
Paris: Maspero, 1974
Bandeira da Silveira, José Paulo. Subdesenvolvimento hoje.
Lisboa: Chiado Books, 2019.
GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a violência. SP: EDUSP,
2001
LUPO, Salvatore. História da máfia. Das origens aos nossos
dias. SP: UNESP, 2002
PLATT, Stephen. Capitalismo criminoso. SP: Cultrix, 2017
POULANTZAS, Nicos. L’État, le pouvoir, le socialisme. Paris:
PUF, 1978
VIRILO, Paul. Velocidade e política. SP: Estação Liberdade,
1996