terça-feira, 27 de novembro de 2018

IDEOLOGIA: FREUD, LACAN, MARX



José Paulo


A psicanálise em gramática marxista mergulha no objeto ideologia em uma profundidade que precisa de cilindro de respiração.  Trata-se de estabelecer laço gramatical entre a ideologia  e o “supereu cultural” em Freud. (Freud. V. XXI: 166). Qualquer pessoa interessada no domínio ideológico desconfia que existem vários caminhos para a exploração dessa mina de cobre na Europa.

O supereu cultural é o supereu de uma época de civilização. A ideologia está associada à uma época civilizacional como a ideologia cristã (ideologia tradicional) e a ideologia moderna. A ideologia cristã serve ao mandamento “amar ao próximo, seu inimigo” (Freud. V. XXI: 167); o supereu funciona a partir de mandamentos que ele envia às massas gramaticais.; massas gramaticalizadas como cristã ou moderna.

Amar seu inimigo significa a renúncia à realização do instinto de morte; significa a renúncia ao “narcisismo das pequenas diferenças” por onde a agressividade realizada (violência simbólica contra o outro) define povos (classes sociais, formações políticas, formações ideológicas) em relação a outros povos etc. (Freud. V. XXI: 136).

O amar ao inimigo como a ti mesmo de São Paulo funda a ideologia cristã. Freud diz que a ideologia cristã funciona pelo mecanismo credo quia absurdum (creio porque é absurdo) :
“Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum”. (Freud. V. XXI: 132).
Freud diz:
“O supereu de uma época de civilização tem origem semelhante ao supereu de um indivíduo. Ele se baseia na impressão deixada atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes – homens de esmagadora força de espírito ou homens em quem um dos impulsos humanos encontrou a sua expressão mais forte e mais pura e, portanto, quase sempre, mais unilateral”. (Freud. V. XXI: 166).

Como o Cristo-homem é um mito cristão, a narrativa do Evangelho é o fato real da ideologia cristã; artefato ideológico. Na narrativa, Jesus Cristo é apresentado como o grande homem, ou melhor, como líder carismático místico, homem deificado.

A narrativa do Evangelho é aquela de um fato que realmente aconteceu; não se trata da ideia verdadeira como aquela que nos mostra a coisa como ela é em si. (Faye: 85). Ela é a narrativa ideológica do ora penso o eu sou, e não ora eu penso o eu duvido. (Faye: 93). Trocando em miúdos, na narrativa ideológica, o “pensar” não duvida da existência do sujeito gramaticalizado como eu sou amigo dos amigos e “penso” o inimigo nas pequenas diferenças narcísicas estabelecidas pelo supereu cultural de uma época civilizatória.

Falando mais exatamente, se se duvida que há um inimigo, então se pensa; se eu me engano, eu sou um sujeito ideológico.  Pensar implica duvidar se há um inimigo. O eu sou do texto ideológico é o autoengano existencial da certeza de que há um inimigo. Todo o pensamento moderno representativo diz que não há inimigo, e sim concorrente, competidor ou adversário. Por isso, Lacan vai buscar a ideologia moderna no supereu cultural que produz a massa social (como um fenômeno da pólemos na sociedade por outros meios) como corpo despedaçado molecularmente. No domínio ideológico, o eu (sujeito) não duvida do supereu!

São Paulo não duvida que romanos e judeus são inimigos. (Bíblia: 2136).         

Lacan pensou a ideologia moderna de um modo brilhante, maravilhoso e terrível, pois a pensou através da relação dos indivíduos com a pólemos. (Lacan. 1988: 125; Derrida.1994:110-111):
“Nenhuma forma de supereu, portanto, é passível de ser inferida do indivíduo para uma dada sociedade. E o único supereu coletivo que se pode conceber exigiria uma desagregação molecular integral da sociedade. É verdade que o entusiasmo em que vimos toda uma juventude sacrificar-se por ideais de nada faz-nos entrever sua realização possível no horizonte de fenômenos sociais de massa que assim suporiam uma escala universal”. (Lacan. 1988:138-139).

O relato político não é uma ideologia com a transformação: relatório narrativo em dúvida. (Faye: 92). O eleitor pode duvidar da narrativa ideológica, dos espectros ideológicos que pilotam o supereu cultural.

A gramática da ideologia cristã se define pela renúncia à realização geral do instinto de morte?
O supereu cristão é a fonte da ideologia cristã:
“Quando, outrora, o Apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como fundamento de sua comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se uma consequência inevitável (...) Tampouco constitui uma possibilidade inexequível que o sonho de um domínio mundial germânico exigisse o antissemitismo como seu complemento”. (Freud. V. XXI: 136-137).

A gramática da ideologia faz do inimigo de sua imaginação seu “suplemento”, algo como o suplemento da fala. (Derrida. 1973: 177).  

Na “Epístola aos Romanos”, Paulo diz:
Amor para com todos os homens, mesmo para com os inimigos. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”.  (Bíblia: 2140; 2141). A propósito, o amor pelos fracos faz pendant com o amor pelo poder político romano:
“Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus (...) É também por isso que pagais impostos, pois os que governam são servidores de Deus, que se desincumbem com zelo do seu ofício”. (Bíblia: 2141).  

A estratégia de Paulo é fabricar uma narrativa para neutralizar a intolerância cristã em relação ao o poder político secular, ou seja, ao Estado romano, evitando assim o choque do Império com a cristandade:
“Para os romanos, que não fundaram no amor sua visa comunal como Estado, a intolerância religiosa era algo estranho, embora, entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e este se achasse impregnada dela”. (Freud. V. XXI: 137). 

A narrativa ideológica cristã é o modelo de narrativa religiosa em uma época na qual o Estado secular domina a política. Frente ao processo  de secularização, o Estado  cristão fundado na comunidade do amor é uma impossibilidade lógica gramatical do século XXI.       
                                                                       
Julgar na narrativa ideológica é uma rua de mão única. Só Deus julga; Deus é a própria narrativa em ação na parúsia:
“Assim, cada um de nós prestará contas a Deus de si próprio.
Deixemos, portanto, de nos julgar uns aos outros”. (Bíblia: 2142).

                                                                            II
   
A gramática da ideologia clássica tem como mecanismo gramatical um sujeito (fora do espaço ideológico) como o inimigo a ser punido.

A gramática da ideologia da modernidade exige a desintegração da pessoa na massa. Trata-se de um novo momento na história universal. Na pólemos, a pessoa vive o estado de liberdade freudiano absoluto de realização do instinto de morte: desejo de matar. (Freud. V. XXI: 116). A ideologia da civilização significa a renuncia ao estado de liberdade freudiano. (Feud. V. XXI: 116).
A propósito, a vida civilizada europeia associa ideologia e sublimação:
“a sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel importante na vida civilizada”. (Freud. V. XXI; 118).  

                                                                         A IDEOLOGIA ALEMÃ

Althusser fez uma teoria da ideologia. A ideologia é ligada ao Estado; ela aparece como um artefato dos parelhos ideológicos de Estado. O Estado é dominação (aparelho repressivo de Estado) e articulação da hegemonia (aparelhos ideológicos de Estado):
“Ao que sabemos, nenhuma classe pode, de forma duradoura, deter o poder de Estado, sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos Aparelhos ideológicos de Estado”. (Althusser. 1983: 71).
Aparelho ideológico é: Igrejas, escola, família, aparelho jurídico, sistema político e partidos políticos, sindicato, imprensa e mass media (rádio, televisão), aparelho cultural (Letras, Belas Artes, esportes).
Segundo Althusser, a ideologia em Marx é um sistema de ideias, de representações que domina o espírito de um homem ou de um grupo social. Ele não fala como Lacan da ideologia moderna que produz as massas despedaçadas molecularmente.

No Marx do livro “A ideologia alemã”, a ideologia não tem história. A ideologia é concebida como pura ilusão, puro sonho ou seja, nada. Toda a sua realidade está fora dela. A ideologia é uma construção imaginária cujo estatuto é o mesmo estatuto teórico do sonho anterior a Freud. O estatuto em tela é o da filosofia e da ideologia (uma vez que a filosofia é a ideologia por excelência):
“A ideologia é então para Marx um bricolagem imaginário, puro sonho, vazio e vão, constituído pelos ‘resíduos diurnos’ da única realidade plena e positiva, a da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente sua existência”. (Althusser. 1983:83).

Althusser diz que as ideologias têm história; a ideologia em geral como estrutural não tem história. A estrutura da ideologia em geral se define como uma “representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência. A ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência.
Não são as suas condições reais de existência, seu mundo real que os “homens” “se representam” na ideologia, e sim a sua representação da relação imaginária com as condições reais de existência.

A ideologia de Althusser usa a terminologia lacaniana da configuração R.S.I. (Real/Simbólico/Imaginário). A inscrição do sujeito na ideologia se faz por via lacaniana. Na configuração ideológica temos o Imaginário no comando do R.S.I.

A ideologia não é aquela de um sujeito dotado de consciência e crendo nas ideias que sua consciência lhe inspira, aceitando-as livremente, que deve agir segundo suas ideias, imprimindo nos atos de sua prática material as suas próprias ideias enquanto sujeito livre. Se ele não o faz, algo vai mal. (Althusser. 1983: 90). Esta é a concepção da ideologia da vulgata do texto ideológico que circula na cultura brasileira através do jornalismo e da velha ciência política do texto universitário.

Em Althusser, a ideologia existe em atos inscritos em práticas. Pascal diz: “Ajoelhai-vos, orai e acreditareis”. A ideologia não tem a ver com ideias, e sim com práticas, rituais, aparelho ideológico:
“a ideologia existente em um aparelho ideológico material, que prescreve práticas materiais reguladas por um ritual material, práticas estas que existem nos atos materiais de um sujeito, que age conscientemente segundo a crença”. (Althusser. 1983: 92).

A ideologia tem uma função especial: ela constitui indivíduos concretos em sujeitos. A ideologia é o texto das evidências como evidências que o sujeito não pode deixar de reconhecer: “é evidente”, é exatamente isso! É a verdade! A dúvida é excluída do texto ideológico, como já apontamos. Trata-se do mecanismo do reconhecimento ideológico e do desconhecimento como mecanismo inverso.
Em Althusser, o texto ideológico existe (Evangelho, Testamento), como no caso da ideologia cristã, em suas práticas, rituais, cerimonias, sacramentos. A ideologia cristã diz que existe um Sujeito (Deus) diferente dos sujeitos concretos; os sujeitos existem como sujeitos submetidos ao Sujeito. Trata-se de uma ideologia que é o avesso do pensamento que diz que o sujeito é livre e caminha com as próprias pernas. Na ideologia cristã, o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto, (livremente) sua submissão, para que ele realize por sim mesmo os gestos e atos de sua submissão. Por isso é que caminham por si mesmos.

Cabe aos aparelhos ideológicos inculcar a ideologia dominante; isto significa que há resistência. (Althusser. 1983: 112). Lenin diz que a política é o domínio das lutas ideológicas do partido em filosofia materialista com o partido em filosofia idealista. (Lenin: 267, 268). 

Qual é o lugar da política na história das ideologias modernas?

A ideologia política moderna é um artefato vital para a constituição da unidade da classe dominante, e, portanto, da sociedade civil cum sociedade política. Os partidos políticos legais servem à ideologia dominante no fenômeno aparelho ideológico de Estado político. Este realiza a ideologia política da classe dominante em seu regime constitucional (as leis fundamentais durante a monarquia do Antigo regime, o Parlamento, o regime representativo parlamentar da burguesia em seus períodos liberais).

O aparelho político de Estado (inclui chefe de Estado, o governo que ele dirige diretamente) não se confunde com a administração (que executa a política do governo). No entanto, o aparelho político de Estado (chefe do estado, governo, administração) é uma parte do aparelho de dominação de Estado.

O que se deve entender por aparelho ideológico de Estado político? O sistema político da representação parlamentar, por exemplo. O AIE da política define-se como um modo de representação (eleitoral) da vontade popular ou soberania popular por meios dos deputados eleitos:
“Mas o que permite, em última instância, falar do sistema político como de um aparelho ideológico de Estado  é a ficção, que corresponde a uma certa realidade , de que as peças desse sistema, assim como seu princípio de funcionamento, apoiam-se na ideologia da liberdade e da igualdade do indivíduo eleitor, na livre escolha dos representantes do povo pelos indivíduos que compõem esse povo, em função da ideia  que cada qual faz da política que deve seguir o Estado. Foi sobre a base dessa ficção (ficção porque a política do estado está determinada, em última instancia, pelos interesses da classe dominante na luta de classes) que se criaram os partidos políticos, aos quais cabe expressar e representar as grandes opções divergentes (ou convergentes) da política nacional. Cada indivíduo pode, então, livremente expressar sua opinião, votando no partido político de sua escolha) se é que este não tenha sido condenado à ilegalidade)”. (Althusser.1983: 116).  

No parágrafo acima o que Althusser designa como ideologia é ersatz de ideologia tout court.   

O partido político pode representar os interesses das classes. Aqui, ele possui uma realidade material que o põe e repõe na política como algo que é não é simplesmente um aparelho ideológico político de Estado. Contudo, o regime representativo liberal tende a fazer da política uma atividade autotélica com autonomia absoluta institucional dos representantes  em relação à sociedade de classes. 

Na teoria da ideologia de Althusser, falta a gramática da ideologia presente em Freud, Lacan e Marx. Na gramática da ideologia alemã, a linguagem ideológica tem como centro de seu funcionamento o espectro, fantasma, fantasia, imaginação dos indivíduos e das massas. O fantasma pode ser aquele do texto utópico do “Manifesto do Partido Comunista” (espectro do futuro ou tempo futuro dos que ainda não nasceram) ou espectros do passado no “A ideologia Alemã” (Derrida. 1993:227-234).  e no “O 18 do Brumário de Luís Bonaparte”: “o passado pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos”.  

São  espectros  ideológicos: o ser supremo, o ser ou  a essência, a vaidade do mundo, os seres bons e maus, o ser e seu reino, os seres, o homem-Deus, o homem, o espírito do povo (Volksgeist), o Todo  ou totalidade real, o “Espírito Santo”, a verdade, o direito, a lei, a boa causa. (Marx. 1974: 178-180).

A gramática da ideologia remete para pensamentos “corporificados” -os fantasmas-, objetivados, que dominam o mundo, quando a história tem sido a história da teologia, portanto, uma história de fantasmas. Em Marx, a teologia é o falar de espectros ideológicos:
“Todos los ‘fantasmas’ a que hemos pasado revista eran representaciones. Estas representaciones, prescindiendo  de su fundamento real (del que prescinde también, por los démas, Stirner), concebidas como representaciones dentro de la conciencia, como pensamientos en la cabeza del hoimbre, arrancadas de su objetividad para retrotraerlas al sujeto, elevadas de la susrtancia a la autoconciencia, no son otra cosa que manias o ideas fijas”. (Marx. 1974: 181).     
Relendo Marx com Freud e Lacan, o espectro ideológico pilota como mandamento a narrativa do supereu cultural no campo da psicanálise em gramática marxista.  

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Nota sobre os Aparelhos ideológicos de Estado. RJ: Graal, 1983
BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. SP: Edições paulinas, Sem data
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. SP: Perspectiva, 1973
DERRIDA, Jacques. Spectres de Marx. Paris; Galilée, 1993
DERRIDA, Jacques. Politiques de l’amitié. Paris: Galilée, 1994
FAYE, Jean-Pierre. A razão narrativa. SP: Editora 34, 1990
FREUD. Obras Completas. V. XXI. RJ: Imago,1974
LACAN, Jacques. Escritos. RJ: Jorge Zahar Editor, 1998
Lenin. Materialismo y empiriocriticismo. Barcelona: Grijalbo, 1975
MARX & ENGELS. La ideologia alemana. Barcelona: Grijalbo, 1974
     
  
   


     



   




Nenhum comentário:

Postar um comentário