José Paulo
A psicanálise em gramática
marxista mergulha no objeto ideologia em uma profundidade que precisa de
cilindro de respiração. Trata-se de
estabelecer laço gramatical entre a ideologia
e o “supereu cultural” em Freud. (Freud. V. XXI: 166). Qualquer pessoa interessada
no domínio ideológico desconfia que existem vários caminhos para a exploração
dessa mina de cobre na Europa.
O supereu cultural é o supereu de
uma época de civilização. A ideologia está associada à uma época civilizacional
como a ideologia cristã (ideologia tradicional) e a ideologia moderna. A ideologia cristã serve ao
mandamento “amar ao próximo, seu inimigo” (Freud. V. XXI: 167); o supereu
funciona a partir de mandamentos que ele envia às massas gramaticais.; massas gramaticalizadas
como cristã ou moderna.
Amar seu inimigo significa a
renúncia à realização do instinto de morte; significa a renúncia ao “narcisismo
das pequenas diferenças” por onde a agressividade realizada (violência simbólica
contra o outro) define povos (classes sociais, formações políticas, formações
ideológicas) em relação a outros povos etc. (Freud. V. XXI: 136).
O amar ao inimigo como a ti mesmo
de São Paulo funda a ideologia cristã. Freud diz que a ideologia cristã funciona
pelo mecanismo credo quia absurdum (creio
porque é absurdo) :
“Acho que agora posso ouvir uma
voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de
amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’.
Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum”. (Freud. V. XXI: 132).
Freud diz:
“O supereu de uma época de
civilização tem origem semelhante ao supereu de um indivíduo. Ele se baseia na
impressão deixada atrás de si pelas personalidades dos grandes líderes – homens
de esmagadora força de espírito ou homens em quem um dos impulsos humanos
encontrou a sua expressão mais forte e mais pura e, portanto, quase sempre,
mais unilateral”. (Freud. V. XXI: 166).
Como o Cristo-homem é um mito
cristão, a narrativa do Evangelho é o fato real da ideologia cristã; artefato
ideológico. Na narrativa, Jesus Cristo é apresentado como o grande homem, ou
melhor, como líder carismático místico, homem deificado.
A narrativa do Evangelho é aquela
de um fato que realmente aconteceu; não se trata da ideia verdadeira como
aquela que nos mostra a coisa como ela é em si. (Faye: 85). Ela é a narrativa
ideológica do ora penso o eu sou, e
não ora eu penso o eu duvido. (Faye:
93). Trocando em miúdos, na narrativa ideológica, o “pensar” não duvida da
existência do sujeito gramaticalizado como eu sou amigo dos amigos e “penso” o inimigo
nas pequenas diferenças narcísicas
estabelecidas pelo supereu cultural de uma época civilizatória.
Falando mais exatamente, se se
duvida que há um inimigo, então se pensa; se eu me engano, eu sou um sujeito
ideológico. Pensar implica duvidar se há
um inimigo. O eu sou do texto ideológico é o autoengano existencial da certeza
de que há um inimigo. Todo o pensamento moderno representativo diz que não há
inimigo, e sim concorrente, competidor ou adversário. Por isso, Lacan vai
buscar a ideologia moderna no supereu cultural que produz a massa social (como
um fenômeno da pólemos na sociedade por outros meios) como corpo despedaçado
molecularmente. No domínio ideológico, o eu (sujeito) não duvida do supereu!
São Paulo não duvida que romanos
e judeus são inimigos. (Bíblia: 2136).
Lacan pensou a ideologia moderna
de um modo brilhante, maravilhoso e terrível, pois a pensou através da relação dos
indivíduos com a pólemos. (Lacan. 1988: 125; Derrida.1994:110-111):
“Nenhuma forma de supereu, portanto, é passível de ser
inferida do indivíduo para uma dada sociedade. E o único supereu coletivo que se pode conceber exigiria uma desagregação
molecular integral da sociedade. É verdade que o entusiasmo em que vimos toda
uma juventude sacrificar-se por ideais de nada faz-nos entrever sua realização
possível no horizonte de fenômenos sociais de massa que assim suporiam uma
escala universal”. (Lacan. 1988:138-139).
O relato político não é uma
ideologia com a transformação: relatório narrativo em dúvida. (Faye: 92). O
eleitor pode duvidar da narrativa ideológica, dos espectros ideológicos que
pilotam o supereu cultural.
A gramática da ideologia cristã
se define pela renúncia à realização geral do instinto de morte?
O supereu cristão é a fonte da
ideologia cristã:
“Quando, outrora, o Apóstolo
Paulo postulou o amor universal entre os homens como fundamento de sua
comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com
os que permaneceram fora dela tornou-se uma consequência inevitável (...)
Tampouco constitui uma possibilidade inexequível que o sonho de um domínio
mundial germânico exigisse o antissemitismo como seu complemento”. (Freud. V.
XXI: 136-137).
A gramática da ideologia faz do
inimigo de sua imaginação seu “suplemento”, algo como o suplemento da fala.
(Derrida. 1973: 177).
Na “Epístola aos Romanos”, Paulo
diz:
Amor para com todos os homens,
mesmo para com os inimigos. “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. (Bíblia: 2140; 2141). A propósito, o amor
pelos fracos faz pendant com o amor pelo poder político romano:
“Todo homem se submeta às
autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as
que existem foram estabelecidas por Deus (...) É também por isso que pagais
impostos, pois os que governam são servidores de Deus, que se desincumbem com
zelo do seu ofício”. (Bíblia: 2141).
A estratégia de Paulo é fabricar
uma narrativa para neutralizar a intolerância cristã em relação ao o poder
político secular, ou seja, ao Estado romano, evitando assim o choque do Império
com a cristandade:
“Para os romanos, que não
fundaram no amor sua visa comunal como Estado, a intolerância religiosa era
algo estranho, embora, entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e
este se achasse impregnada dela”. (Freud. V. XXI: 137).
A narrativa ideológica cristã é o
modelo de narrativa religiosa em uma época na qual o Estado secular domina a
política. Frente ao processo de
secularização, o Estado cristão fundado
na comunidade do amor é uma impossibilidade lógica gramatical do século
XXI.
Julgar na narrativa ideológica é
uma rua de mão única. Só Deus julga; Deus é a própria narrativa em ação na
parúsia:
“Assim, cada um de nós prestará
contas a Deus de si próprio.
Deixemos, portanto, de nos julgar
uns aos outros”. (Bíblia: 2142).
II
A gramática da ideologia clássica
tem como mecanismo gramatical um sujeito (fora do espaço ideológico) como o
inimigo a ser punido.
A gramática da ideologia da
modernidade exige a desintegração da pessoa na massa. Trata-se de um novo
momento na história universal. Na pólemos,
a pessoa vive o estado de liberdade freudiano absoluto de realização do
instinto de morte: desejo de matar. (Freud. V. XXI: 116). A ideologia da
civilização significa a renuncia ao estado de liberdade freudiano. (Feud. V.
XXI: 116).
A propósito, a vida civilizada europeia
associa ideologia e sublimação:
“a sublimação do instinto
constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural; é
ela que torna possível às atividades psíquicas superiores, científicas,
artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel importante na vida
civilizada”. (Freud. V. XXI; 118).
A
IDEOLOGIA ALEMÃ
Althusser fez uma teoria da
ideologia. A ideologia é ligada ao Estado; ela aparece como um artefato dos
parelhos ideológicos de Estado. O Estado é dominação (aparelho repressivo de
Estado) e articulação da hegemonia (aparelhos ideológicos de Estado):
“Ao que sabemos, nenhuma classe
pode, de forma duradoura, deter o poder de Estado, sem exercer ao mesmo tempo
sua hegemonia sobre e nos Aparelhos ideológicos de Estado”. (Althusser. 1983:
71).
Aparelho ideológico é: Igrejas,
escola, família, aparelho jurídico, sistema político e partidos políticos,
sindicato, imprensa e mass media
(rádio, televisão), aparelho cultural (Letras, Belas Artes, esportes).
Segundo Althusser, a ideologia em
Marx é um sistema de ideias, de representações que domina o espírito de um homem
ou de um grupo social. Ele não fala como Lacan da ideologia moderna que produz
as massas despedaçadas molecularmente.
No Marx do livro “A ideologia
alemã”, a ideologia não tem história. A ideologia é concebida como pura ilusão,
puro sonho ou seja, nada. Toda a sua realidade está fora dela. A ideologia é
uma construção imaginária cujo estatuto é o mesmo estatuto teórico do sonho
anterior a Freud. O estatuto em tela é o da filosofia e da ideologia (uma vez
que a filosofia é a ideologia por excelência):
“A ideologia é então para Marx um
bricolagem imaginário, puro sonho, vazio e vão, constituído pelos ‘resíduos
diurnos’ da única realidade plena e positiva, a da história concreta dos
indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente sua existência”.
(Althusser. 1983:83).
Althusser diz que as ideologias têm
história; a ideologia em geral como estrutural não tem história. A estrutura da
ideologia em geral se define como uma “representação” da relação imaginária dos
indivíduos com suas condições reais de existência. A ideologia representa a
relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência.
Não são as suas condições reais
de existência, seu mundo real que os “homens” “se representam” na ideologia, e
sim a sua representação da relação imaginária com as condições reais de
existência.
A ideologia de Althusser usa a
terminologia lacaniana da configuração R.S.I. (Real/Simbólico/Imaginário). A
inscrição do sujeito na ideologia se faz por via lacaniana. Na configuração
ideológica temos o Imaginário no comando do R.S.I.
A ideologia não é aquela de um
sujeito dotado de consciência e crendo nas ideias que sua consciência lhe
inspira, aceitando-as livremente, que deve agir segundo suas ideias, imprimindo
nos atos de sua prática material as suas próprias ideias enquanto sujeito
livre. Se ele não o faz, algo vai mal. (Althusser. 1983: 90). Esta é a
concepção da ideologia da vulgata do texto ideológico que circula na cultura
brasileira através do jornalismo e da velha ciência política do texto
universitário.
Em Althusser, a ideologia existe
em atos inscritos em práticas. Pascal diz: “Ajoelhai-vos, orai e acreditareis”.
A ideologia não tem a ver com ideias, e sim com práticas, rituais, aparelho
ideológico:
“a ideologia existente em um aparelho
ideológico material, que prescreve práticas materiais reguladas por um ritual
material, práticas estas que existem nos atos materiais de um sujeito, que age
conscientemente segundo a crença”. (Althusser. 1983: 92).
A ideologia tem uma função especial:
ela constitui indivíduos concretos em sujeitos. A ideologia é o texto das
evidências como evidências que o sujeito não pode deixar de reconhecer: “é
evidente”, é exatamente isso! É a verdade! A dúvida é excluída do texto
ideológico, como já apontamos. Trata-se do mecanismo do reconhecimento
ideológico e do desconhecimento como mecanismo inverso.
Em Althusser, o texto ideológico
existe (Evangelho, Testamento), como no caso da ideologia cristã, em suas
práticas, rituais, cerimonias, sacramentos. A ideologia cristã diz que existe
um Sujeito (Deus) diferente dos sujeitos concretos; os sujeitos existem como
sujeitos submetidos ao Sujeito. Trata-se de uma ideologia que é o avesso do
pensamento que diz que o sujeito é livre e caminha com as próprias pernas. Na
ideologia cristã, o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para
livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto,
(livremente) sua submissão, para que ele realize por sim mesmo os gestos e atos
de sua submissão. Por isso é que caminham por si mesmos.
Cabe aos aparelhos ideológicos
inculcar a ideologia dominante; isto significa que há resistência. (Althusser.
1983: 112). Lenin diz que a política é o domínio das lutas ideológicas do
partido em filosofia materialista com o partido em filosofia idealista. (Lenin:
267, 268).
Qual é o lugar da política na história das ideologias modernas?
A ideologia política moderna é um artefato vital para a constituição da unidade da classe dominante, e, portanto, da sociedade civil cum sociedade política. Os partidos políticos legais servem à ideologia dominante no fenômeno aparelho ideológico de Estado político. Este realiza a ideologia política da classe dominante em seu regime constitucional (as leis fundamentais durante a monarquia do Antigo regime, o Parlamento, o regime representativo parlamentar da burguesia em seus períodos liberais).
O aparelho político de Estado (inclui chefe de Estado, o governo que ele dirige diretamente) não se confunde com a administração (que executa a política do governo). No entanto, o aparelho político de Estado (chefe do estado, governo, administração) é uma parte do aparelho de dominação de Estado.
O que se deve entender por aparelho ideológico de Estado político? O sistema político da representação parlamentar, por exemplo. O AIE da política define-se como um modo de representação (eleitoral) da vontade popular ou soberania popular por meios dos deputados eleitos:
“Mas o que permite, em última
instância, falar do sistema político
como de um aparelho ideológico de Estado
é a ficção,
que corresponde a uma certa realidade
, de que as peças desse sistema, assim como seu princípio de funcionamento,
apoiam-se na ideologia da liberdade e
da igualdade do indivíduo eleitor, na
livre escolha dos representantes do
povo pelos indivíduos que compõem
esse povo, em função da ideia que cada qual faz da política que deve seguir
o Estado. Foi sobre a base dessa ficção (ficção porque a política do estado
está determinada, em última instancia, pelos interesses da classe dominante na
luta de classes) que se criaram os partidos
políticos, aos quais cabe expressar e representar as grandes opções
divergentes (ou convergentes) da política nacional. Cada indivíduo pode, então,
livremente expressar sua opinião,
votando no partido político de sua escolha) se é que este não tenha sido
condenado à ilegalidade)”. (Althusser.1983: 116).
No parágrafo acima o que Althusser designa como ideologia é ersatz de ideologia tout court.
No parágrafo acima o que Althusser designa como ideologia é ersatz de ideologia tout court.
O partido político pode
representar os interesses das classes. Aqui, ele possui uma realidade material
que o põe e repõe na política como algo que é não é simplesmente um aparelho
ideológico político de Estado. Contudo, o regime representativo liberal tende a
fazer da política uma atividade autotélica com autonomia absoluta institucional
dos representantes em relação à
sociedade de classes.
Na teoria da ideologia de
Althusser, falta a gramática da ideologia presente em Freud, Lacan e Marx. Na
gramática da ideologia alemã, a linguagem ideológica tem como centro de seu
funcionamento o espectro, fantasma, fantasia, imaginação dos indivíduos e das
massas. O fantasma pode ser aquele do texto utópico do “Manifesto do Partido
Comunista” (espectro do futuro ou tempo futuro dos que ainda não nasceram) ou
espectros do passado no “A ideologia Alemã” (Derrida. 1993:227-234). e no “O 18 do Brumário de Luís Bonaparte”: “o
passado pesa como um pesadelo no cérebro dos vivos”.
São espectros
ideológicos: o ser supremo, o ser ou
a essência, a vaidade do mundo, os seres bons e maus, o ser e seu reino,
os seres, o homem-Deus, o homem, o espírito do povo (Volksgeist), o Todo ou
totalidade real, o “Espírito Santo”, a verdade, o direito, a lei, a boa causa. (Marx.
1974: 178-180).
A gramática da ideologia remete
para pensamentos “corporificados” -os fantasmas-, objetivados, que dominam o
mundo, quando a história tem sido a história da teologia, portanto, uma
história de fantasmas. Em Marx, a teologia é o falar de espectros ideológicos:
“Todos los ‘fantasmas’ a que
hemos pasado revista eran representaciones. Estas representaciones,
prescindiendo de su fundamento real (del
que prescinde también, por los démas, Stirner), concebidas como
representaciones dentro de la conciencia, como pensamientos en la cabeza del
hoimbre, arrancadas de su objetividad para retrotraerlas al sujeto, elevadas de
la susrtancia a la autoconciencia, no son otra cosa que manias o ideas fijas”. (Marx. 1974: 181).
Relendo Marx com Freud e Lacan, o
espectro ideológico pilota como mandamento a narrativa do supereu cultural no campo da
psicanálise em gramática marxista.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos
ideológicos de Estado. Nota sobre os Aparelhos ideológicos de Estado. RJ:
Graal, 1983
BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém.
SP: Edições paulinas, Sem data
DERRIDA, Jacques. Gramatologia.
SP: Perspectiva, 1973
DERRIDA, Jacques. Spectres de
Marx. Paris; Galilée, 1993
DERRIDA, Jacques. Politiques de
l’amitié. Paris: Galilée, 1994
FAYE, Jean-Pierre. A razão
narrativa. SP: Editora 34, 1990
FREUD. Obras Completas. V. XXI.
RJ: Imago,1974
LACAN, Jacques. Escritos. RJ:
Jorge Zahar Editor, 1998
Lenin. Materialismo y
empiriocriticismo. Barcelona: Grijalbo, 1975
MARX & ENGELS. La ideologia
alemana. Barcelona: Grijalbo, 1974
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