terça-feira, 17 de outubro de 2017

AVESSO DA DEMOCRACIA - ITÁLIA

José Paulo

Subtítulo: TEORIA E PRÁTICA DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA.

O subtítulo do texto é um problema prático oportuno?

A democracia representativa é uma escola de política que como sujeito gramatical suporta a verdade da razão política. Todas as instituições da democracia em tela ou são racionais ou não são instituições democráticas. Ou os sujeitos gramaticais são racionais e razoáveis, ou não são sujeitos da democracia representativa. Tais teses podem ser tomadas como do campo da ideologia ou como do campo da cultura política pública. De qualquer modo, isto tudo nos remete para o problema teoria e prática.

Popper diz que o problema da teoria versus prática começa na era da modernidade com Marx. Marx é a spaltung, isto é, a quebra da metafísica milenar da questão teoria/prática aplicada à ciência da política:
“Contrairement aux hégéliens de droite, Marx s’est esforcé de résoudre par des méthodes rationelles les problèmes sociaux les plus aigus de son temps. Que ses efforts aient été, comme je me propose de le montrer, infructueux n’en réduit pas le mérite. La science ne progresse que grâce à l’expérience: les échecs étant aussi instructifs que les succès. Em dépit des erreurs que contient sa doctrine, son apport a été d’une telle importance que tout retour aux théories sociales antérieures est inconcevable. Notre dette envers lui est considérable, même si nous sommes em désaccord avec ses idées, et j’admets volontiers l’influence qu’il a exercée sur l’opinion que j’ai de Platon et de Hegel”. (Popper. 1979: 59-60).      

A Tese 11 do As Teses contra Feuerbacch diz: Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo. (Marx. 1974: 59). Transformá-lo como? A Tese 8 diz: Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução racional na praxis humana e no compreender dessa praxis.

Nas Teses, Marx não diz o que é a teoria que vai substituir a filosofia como ideologia:
“Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o conduzem até o fim”. (Marx. 1974: 136).

No O Capital, Marx diz qual é o aspecto teoria. Trata-se da física da economia moderna ou crítica da economia política:
Le physicien, pour se rendre compte des procédés de la nature, ou bien étudie les phénomènes lorsqu’ils se présentent sous la forme la plus accusée, et la moins obscurcie par des influences perturbatrices, ou bien il expériment dans des conditions qui assurent autant que possible la régularité de leur marche. J’étudie dans cette ouvrage le mode de production capitaliste et les rapports de production et d’échange qui lui correspondente”. (Marx. 1977: 12).   

A física da economia moderna substitui a interpretação metafísica por um poder interpretativo gramatical. Trata-se do poder de interpretar com vontade de potência de transformar o mundo. Mas ainda nos encontramos no domínio da crítica da economia política tout court. Deslizando para o domínio da sociedade dos significantes capitalista, outra ciência aí age. Trata-se da ciência da política cujo modelo encontra-se no O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Aí, a física da economia capitalista faz pendant com a ciência marxista da política. Porém Marx não deixou o desenvolvimento completo da teoria/episteme de tal ciência.

A interpretação capaz de transformar o mundo é a interpretação gramatical (que se realiza também como explicação científica). Tal interpretação científica é um poder gramatical (link). Ela é uma teoria com uma prática que revoluciona o mundo. A física de Marx é a teoria da revolução capitalista (praxis) do modo de produção especificamente capitalista da mais-valia relativa.

A teoria de Marx é um poder gramatical de uma praxis que revoluciona o capitalismo. Transforma o capitalismo em socialismo, mas esquece da tecnologia social. A praxis só advém com o Manifesto do Partido Comunista 1948, que, na Rússia, se materializa como partido bolchevique leninista. O partido é a sintetização de teoria e prática.

No entanto, Popper tem razão em dizer que na teoria de Marx falta a tecnologia social da prática como instituições socialistas (Popper. 1979: 62-63; 1974: 94). Este vazio fez da revolução russa um campo experimental da unidade teoria e prática transdialética gramatical. A revolução russa mostrou que a teoria era um poder gramatical em unidade transdialética gramatical com a prática capaz de criar uma prática institucional: Estado soviético integral! Infelizmente o resultado foi a geração de uma prática marxista totalitária (com Stalin), que suporta a verdade do totalitarismo em Marx.  

Lacan diz: O que significa essa regra é que, precisamente, a verdade não é dita por um sujeito, mas suportada. (Seminário 16: 67). Como fenômeno da prática (pois a prática se define na relação instituição versus massas), as massas russas suportaram a verdade do marxismo totalitário. Esta verdade foi suportada pelos intelectuais marxista e as massas revolucionárias no Ocidente, no extremo-Ocidente e no Oriente.

Bobbio trata do problema da crise do poder gramatical da modernidade do socialismo à democracia representativa. Começo pela URSS. A interrogação que define a crise do totalitarismo marxista é: a URSS é um país socialista?
                                                                                      II

Durante décadas, a esquerda dialogou e se confrontou em torno da questão supracitada e não chegou a um consenso. Para os comunistas stalinistas (marxismo-leninismo), a URSS era uma pais socialista, pois, a propriedade dos meios de produção era coletivista. Para a esquerda do liberalismo político, a URSS não era um país socialista, por ser desprovido de liberdade política. Na China comunista neoliberal atual, os intelectuais podem fazer qualquer debate menos questionar o monopólio do poder de Estado pelo PCC (Partido Comunista Chinês).

Para resolver o impasse, surgiu a ideia do socialismo realmente existente. Trata-se, com efeito, de socialismo econômico marxista em junção com a sociedade dos significantes stalinista totalitária. Nesta sociedade, o marxismo torna-se uma ideologia como religião de Estado, como o islã político ou o budismo ideológico.

Bobbio diz que a única ideologia capaz de não se tornar uma religião é o liberalismo político. (Bobbio. 1988: 78). O liberalismo pode ser uma doutrina fazendo pendant com a cultura política pública liberalismo político. Há aí séculos de modernidade para se alcançar tal fato e artefato políticos.

Na URSS, o liberalismo político se constitui como uma cultura política pública na era da NEP (Nova Política Econômica). Bujarin foi o pensador da NEP e líder do comunismo de esquerda. A NEP se concebia como uma economia mista que combinava um setor público limitado com outro privado amplo. (Cohen: 104). No domínio político, Bujarin desejava:
“En particular, la revolución prometia la destrucción del monstruoso Estado Leviatán y todo lo que representaba en la sociedad moderna. Fuera cual fuera la perspectiva de otros bolcheviques, Bujarin tomó en serio la idea de un ˂Estado comunal> revolucionario, un Estado ˂sin policía, sin ejército permanente, sin burocracia>, como había esbozado Lenin (con el aplauso entusiasta de Bujarin) em El Estado y la revolución. El aspecto decisivo del ˂Estado comunal> había de ser su repudio de la autoridad burocrática política y económica. Sería un Estado sin burócratas, ˂es decir, gente privilegiada, alienada de las masas y situada por encima de las masas>. En resumen, sería un Estado sin élite, en el que las masas se convertirían em administradoras de la sociedade, del suerte que ˂todos serán ‘burocratas’ durante algún tiempo a fin de que nadie pueda convertirse en ‘burócrata’...> ”. (Cohen: 109).   

Se o liberalismo político tem como significante gramatical-mestre a liberdade, Bujarin é aquele que defende uma unidade gramatical teoria e prática, na política estrito senso, fundada na liberdade de um poder gramatical das massas grau zero sujeito sgrammaticatura socialista. Trata-se de um passo além da cultura do liberalismo político da sociedade capitalista. Trata-se do liberalismo democrático de massas socialistas. Neste, as massas recebem o direito de exercer o poder gramatical no campo de poderes estatizados socialista. Bujarin foi derrotado e fuzilado por seu amigo Stalin.   
                                                                         III

A cultura política liberal pública diz que a política não pode absorver o crime. O stalinismo faz do crime político seu instrumento para se manter no poder e dobrar as massas. A destruição da sociedade do significante camponesa foi o grande crime político de Stalin na instauração de sua sociedade totalitária sem classes sociais, sociedade do povo soviético sem contradições de classe.

Para a democracia representativa, o crime é metabolizado como um problema político (impeachment) ou como um problema criminal da elite política. No entanto, uma liberdade demasiada para o agir da elite política (garantida na Constituição estrito senso) pode transformá-la em uma elite do poder. A elite do poder é uma elite que se constituiu na sociedade técnica industrial e que se define pelo uso da violência industrializada sem limite para definir o curso da história mundial (Mills: 22). Criada na sociedade do americanismo pós II Guerra Mundial, a elite do poder é o sujeito gramatical de uma sociedade totalitária ocidental fazendo pendant com a democracia representativa. Marcuse fala de uma democracia de senhores onde a liberdade, sob um jugo totalitário, é transformada em poderoso instrumento de dominação. (Marcuse: 28).
                                                                      IV

No capítulo A política não pode absolver o crime, Bobbio trata da crise catastrófica da política italiana.

A política italiana entrou em um ciclo de decadência quando o Papa Pio XII fez um conluio com a CIA e a máfia italiana e ítalo-americana para tomar o poder nacional italiano nas eleições pós II Guerra Mundial. Tal fenômeno desfez a cultura política pública italiana como junção de moral e política. O crime político se tornou um elemento orgânico ao Estado italiano. O sistema partidário foi possuído por uma moral criminosa questionada pelas armas do terrorismo de esquerda. Bobbio parte deste ponto da crise italiana: o assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas e serviço secreto italiano. (Sanguinetti: 12, 9, 11, 13, 23, 63, 64).

Bobbio fala da influência de Maquiavel na cultura política pública italiana. Tal influência faz do juízo político o soberano da política com autonomia absoluta em relação à moral de uma época. (Bobbio. 1988: 125-126). O capitão da política deve ser julgado pelo êxito ou fracasso de seu agir político. O exemplo de Agátocles Siciliano (que se tornou rei de Siracusa “sendo não só de impura, mas também de condição abjeta”) é translúcido para mostrar como a política é um domínio absolutamente separado da moral.

Filho de um oleiro, sempre teve vida criminosa na sua mocidade. Suas maldades eram vigorosas em animus e de corpo. Na milícia, tais qualidades o levaram a ser pretor de Siracusa:
“Neste posto, deliberou tornar-se príncipe e manter, pela violência e sem favor dos outros, aquele poder que lhe fora concedido por acordo entre todos”. (Maquiavel: 41). Para obter sucesso, entendeu-se com Amílcar, cartaginês, que estava com seus exércitos na Sicília. Certa manhã, reuniu o povo e o Senado de Siracusa a pretexto de consultá-los sobre os negócios públicos. E a um sinal combinado fez com que seus soldados promovessem um banho de sangue, matando todos os senadores e os homens mais ricos da cidade. Assim, tomou posse do governo da cidade sem resistência dos cidadãos.

Em breve tempo liberou Siracusa do assédio dos cartagineses e reduziu-os a uma condição miserável. Agátocles não obteve o poder pela fortuna ou pelo favor de quem quer que fosse, mas passando por todos os cargos conquistados (graças a sua maldade e esforço) tornou-se um Príncipe maquiavélico:
“Ainda que não se possa considerar ação meritória a matança de seus concidadãos, trair os amigos, não ter fé, não ter piedade nem religião, com isso pode-se conquistar o mando, mas não a glória. Mas, considerada a habilidade de Agátocles no entrar e sair dos perigos, e sua fortaleza de ânimo no suportar e superar as coisas adversas, não há por que se deva julgá-lo inferior a qualquer dos mais ilustres capitães. Todavia, a sua bárbara crueldade e desumanidade e os seus inúmeros crimes não permitem que seja celebrado entre os mais ilustres homens da história. Não se pode, pois, atribuir à fortuna ou ao valor aquilo que ele conseguiu sem uma e sem outro”. (Maquiavel: 41-42).

O efeito sobre a cultura política pública italiana moderna da separação entre valor moral e política estrito senso é o indiferentismo moral. (Bobbio. 1988: 125-126). O indiferentismo moral abre as comportas para a invasão do crime na política, e a alienação das massas pouco gramaticalizadas. A política é feita de múltiplas causas, mas a separação entre o campo dos valores morais (da memória gramatical do político ilustre na história universal) e a política como astúcia e força (Maquiavel: 21) gera a corrupção na política como um fato gramatical maquiavélico legítimo. A gramática de Maquiavel é objeto de uma plurivocida de leitura. O livro Le travail de l’oeuvre Machiavel faz um panorama da (s) gramática (s) maquiavélica (s). No entanto, para mim, é muito difícil não ser levado por este elemento da gramática de Maquiavel, ao falar ele da cultura política pública dos romanos da antiguidade:
“Não lhes agradava fiar-se no tempo para resolver as questões, como os sábios da nossa época, mas só se louvavam na própria virtude e prudência, porque o tempo leva por diante todas as coisas, e pode mudar o bem em mal e transformar o mal em bem”. (Maquiavel: 19).

Nesta gramática encontra-se o princípio da gramática transdialética sacramentada por Nietzsche:
“˂Comment une chose pourrait-elle procéder de son contraire, par exemple la vérité de l’erreur? Ou la volonté du vrai de la volonté tromper? Ou le désintéressement de l’égoisme? Ou la purê et radieuse contemplation du sage de la convoitise? Une telle genèse est impossible; qui fait ce rêve est un insensé, ou pis encore; les choses de plus haute valeur ne peuvent qu’avoir une autre origene, un fondement propre. Elles ne sauraient dériver de ce monde éphémere, tromper, illusiore et vil, de ce tourbillon de vanités et d’appétites. C’est bien plutôt au sein de l’être, dans l’impérrissable, dans le secret de Dieu, dans ‘la chose en soi’ que droit résider leur fondement, et nulle part ailleurs >. Ce genre de jugement constitue le préjugé typique auquel on reconnaît les métaphysiciens de tout les temps”. (Nietzsche: 22).           

Como a gramática em narrativa lógica da democracia representativa pode tratar o crime na política (terrorismo, corrupção privatista, por exemplo) ou o crime comum do político profissional? Os crimes em tela não concorrem para a corrupção do ciclo exitoso da democracia representativa? Ele não abre as comportas para a substituição da democracia representativa pela autocracia representativa no século XXI?      
                                                                                            V

A ciência política brasileira vê a crise brasileira como um problema singular. Já as ciências gramaticais da política gramaticalizam a crise como um problema ocidental. Qual é o meu ponto de partida?

A crise é a crise da gramática em narrativa lógica do Estado ocidental moderno fazendo pendant com a crise da democracia representativa. Na Europa ocidental há um passado de correntes de pensamento à esquerda e à direita que permanecem como fantasmas e caricaturas do passado. Tais correntes viraram vapor com a mudança do significante Estado moderno. Trata-se da gramática gramsciano do Estado integral:
“Na realidade de todos os Estados, o ‘chefe do Estado’, isto é, o elemento equilibrador dos diversos interesses em luta contra o interesse predominante, mas não exclusivo num sentido absoluto, é exatamente o ‘partido político’; ele, porém, ao contrário do que se verifica no direito constitucional tradicional, nem reina nem governa juridicamente: tem o ‘poder de fato’, exerce a função hegemônica e, portanto, equilibradora dos interesses diversos, na ‘sociedade civil’; mas de tal modo esta se entrelaça de fato com a sociedade política, que todos os cidadãos sentem que ele reina e governa. Sobre esta realidade, que se movimenta continuamente, não se pode criar um direito constitucional do tipo tradicional, mas só um sistema de princípios que afirma como objetivo do Estado o seu próprio fim, o seu desaparecimento, a reabsorção da sociedade política pela sociedade civil”. (Gramsci. 1980: 102).

A gramática de Gramsci estabelece o partido político no comando do Estado integral moderno com a função de equilibrar interesses em luta. Gramsci já havia integrado em sua gramática a classe política da teoria das elites, as elites de poder, a organização burocrática do poder de Estado e mais ainda. O partido político é uma organização burocrática correlata ao exército nacional. A democracia representativa do século XIX teria sofrido uma spaltung (quebra de mundo da política), e no século XX ela tem no comando o partido político burocrático. Esta é a gramatica da realidade política de um século XX com revoluções socialistas, guerras mundiais, descolonização do terceiro mundo, sistema partidário com partido comunista, socialista, socialdemocrata, católico na segunda metade do século XX. Tal gramática ocidental moderna quebrou, aos poucos, na evolução política do século XX para o século XXI.

Norbert Bobbio é o mais sagaz cientista político gramatical da crise europeia ocidental na sua Itália: caso italiano. A crise é vivida como uma transdialética gramatical entre a democracia representativa e a autocracia representativa que a linguagem dos políticos e dos cientistas políticos (e grandes marxistas universitários) não transforma em linguagem da cultura política pública ocidental.

Bobbio trata sinteticamente da gramática autocrática em relação à gramática democrática. A primeira se define como realidade do governo invisível. (Bobbio. 1988: 208-211). Trata-se de um poder exercido de modo a ser subtraído o mais possível aos olhos do súdito. As decisões são um segredo de Estado que devem permanecer na escuridão dos palácios:
“À imagem e semelhança do ‘Deus oculto’, o soberano absoluto, o autocrata, será tanto mais poderoso quanto melhor conseguir ver o que fazem seus súditos sem fazer-se ver ele mesmo. O ideal do soberano equiparado a Deus na Terra é ser como Deus no céu, o onividente invisível”. (Bobbio. 1988: 208).

O poder autocrático se subtrai do controle público de dois modos:
“ocultando-se, ou seja, tomando suas próprias decisões no ‘conselho secreto’ e ocultando, ou seja, através do exercício da simulação ou da mentira considerada como instrumento lícito do governo”. (Idem: 208).

Em Paris, o sociólogo gramatical Baudrillard fez a teoria da política como simulacro de simulação adotada na era do globalismo neoliberal do século XXI. A cultura política do simulacro de simulação sustentou o sistema político em crise terminal até o momento em muitos países europeus ocidentais. 

Fazendo pendant com Baudrillard, Habermas fez a teoria do agir estratégico (simulação, dissimulação, manipulação, mentira) do partido político que já não é o partido político gramsciano. Não pode ser o Príncipe moderno que não mente para as massas gramaticais.  

A gramática da democracia representativa pressupõe a publicidade do agir político. Kant diz: todas as ações relativas ao direito dos outros homens, cuja máxima não seja suscetível de publicidade, são injustas. Em uma era generalizada de subgoverno e criptogoverno, que age no claro/escuro e na penumbra como poder do invisível (máfias, serviços secretos, terrorismo, organizações criminosas lumpesinais do de cima e dos de baixo) que governa ao lado do governo visível, a gramática do Estado integral gramsciano se dissolve na atmosfera do século XXI.

A invasão da democracia representativa pela autocracia significa a transformação do Estado gramsciano em uma estatização do campo de poderes vicários vicejo. (Deleuze: 82). Trata-se de poderes substitutos do Príncipe moderno gramsciano, poderes gramaticais e sgrammaticatura. Como poder substituto da classe dirigente, a elite do poder de C. Wright Mills já não é a elite de poder da gramática gramsciano. Como uma organização criminosa sociológica, a classe política não é mais a classe política ou classe dirigente gramsciano. 

Prossigo!

Bobbio classifica o governo do invisível como um poder invisível (sabemos que este se mostra quando o equilíbrio de força entre Estado e AntiEstado permite) como um poder que significa taticamente a invasão dos centros estatizados dos poderes gramaticais que   representam a aparência de semblância do Estado democrático representativo. Bobbio diz:
“Em segundo lugar, o poder invisível forma-se e organiza-se não apenas para combater o poder público, mas também para tirar benefícios ilícitos e buscar vantagens que uma ação feita à luz do sol não conseguiria”. (Bobbio. 1988: 210).

E em seguida, ele diz:
“Existe, finalmente, o poder invisível como instituição do Estado: os serviços secretos, cuja degeneração pode dar vida a uma verdadeira forma de governo oculto”. (Idem: 210).
Na América Latina, há uma opinião pública, cada vez mais influente e agressiva, que põe toda a culpa da realidade em tela no regime da democracia representativa. Tal opinião pública toma gato por lebre, pois, ela ignora que já vive em um regime de autocracia representativa (link México). Que o AntiEstado é o Criminostat. (Virilio: 54-55).

O que é a aparência de semblância (difundida pela ciência política universitária e jornalistas políticos)?

Recorro a Bobbio mais uma vez:
“Durante séculos, o Estado, a começar pelas cidades gregas até ao grande Estado territorial moderno, foi representado e concebido como um conjunto de partes ligadas entre si formando um corpo unitário. Não existe Estado sem um princípio unificador”. (Bobbio. 1988: 200).

O Estado é um sistema jurídico-político formado por um conjunto de partes interdependentes em sua trans-subjetividade, e, funcionalmente, um conjunto de partes das quais umas têm a função de gerar interrogações e outras a de converter tais interrogações em respostas práticas públicas. Por exemplo, sindicatos e partidos políticos articulam perguntas, selecionando-as e unificando-as, convertidas em respostas pelas instituições públicas competentes as quais compete tomar decisões válidas e razoáveis para toda a sociedade (poder legislativo) ou colocá-las em prática (poder executivo) e fazê-las respeitar (poder judiciário):
“Um sistema político funciona quando é respeitada a divisão do trabalho e dos papéis entre as diversas partes do todo, e, particularmente, quando é clara a distinção entre aqueles a quem compete dar as respostas; e, no âmbito dos que dão as respostas, aqueles que aplicam as decisões e aqueles que julgam quando e como elas estão sendo observadas ou não”. (Idem: 201).

Na crise do Estado democrático nota-se a falta de um centro de poder gramatical unificador: “os centros de poder se multiplicam. E, multiplicando-se, contribuem para criar um estado de confusão permanente que caracteriza a vida pública italiana. Surgem os centros de poder vicários (...) Várias vezes e com maior evidência nestes dias nos encontramos diante de iniciativas pessoais de magistrados que têm como meta autênticas decisões políticas”. (Idem: 202). Sabemos que o poder judiciário se transformou em um tribunal constitucional em uma luta agônica com as máfias italianas!

Termino com uma citação mais longa de Bobbio sobre o caso italiano, no final da década de 1970:
“Quando falta um centro unificador, o sistema vai se desmantelando, como um relógio desmontado ou um corpo desmembrado. As várias partes do todo não conseguem mais fazer um conjunto. E quando deixa de ter conexão com o conjunto, cada pedaço termina por ficar fora de lugar. E não estando cada peça em seu lugar, o sistema fica desequilibrado, descentrado, e, consequentemente, funcionando mal. Não consegue dar respostas adequadas às questões e, quando consegue dá-las, chega atrasado ou com margem de erro”. (Idem: 202).

O resultado mais óbvio é a desvinculação entre governante e governado, uma convivência mais desordenada e mais obstruída na comunicação entre os que mandam e os que obedecem, se tiverem juízo, se forem razoáveis. A desobediência civil pode se tornar uma regra do jogo vicário da Constituição em um sentido amplo e, inclusive, se tornar usual na relação entre as instituições estatais e entre as instituições público e privado.

O Partido político tem a função (de articulação da hegemonia) de pôr os interesses privados fazendo pendant com o interesse nacional. Se o sistema partidário se torna um sistema de facções políticas (articuladas pela gramática em narrativa lógica do privatismo da riqueza pública e privada, ou do jogo do poder pelo poder), este é o sinal mais forte da catástrofe que nos ameaça como sociedade de significantes nacional. Como a classe política italiana criminosa, a nossa classe política é idêntica a situação “que a maior parte da classe italiana possui em escassa medida as duas virtudes que Max Weber achava que o grande político devia ter: sentido de responsabilidade e largueza de vista. Todo aquele que sente a preocupação da democracia italiana não pode deixar de pronunciar, perante uma crise prolongada, palavras duras e fortes. Há muitos políticos que demonstram não ter o necessário sentido de responsabilidade para enfrentar os terríveis problemas do país, dando provas de uma miopia muito próxima da cegueira”. (Idem: 193).

As ciências gramaticais da política é um campo de saber gramatical situado na cidade do Rio. A cidade do Rio é um laboratório de sintetização da crise política ocidental em tela. Oremos?

BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Brasília/SP: Editora da Universidade de Brasília/Polis, 1988
COHEN, Stephen F. Bujarin y la revolución bolchevique. España: Siglo XXI, 1976
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Les Éditions de Minuit. 1986
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. RJ: Civilização Brasileira, 1980     
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 16. De um Outro ao outro. RJ: Zahar, 2008
LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre Machiavel. Paris: Gallimard: 1972
MARX. Karl. Le capital. Livre premier. Texte intégral. Paris: Éditions Sociales, 1977  
MARX. Os Pensadores. SP: abril Cultural, 1974
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. RJ: Zahar Editores, 1973
MAQUIAVEL. Os Pensadores. O Príncipe. SP: Abril Cultural, 1973
NIETZSCHE. Par-delá bien et mal. Paris: Gallimard, 1971   
POPPER. Karl. La société ouverte et ses ennemis. Tomo 2. Hegel e Marx. Paris: Seuil, 1979
POPPER, Sir Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. SP/Belorizonte: EDUSP/Itatiaia
SANGUINETTI, Gianfranco. Do terrorismo e do Estado. A teoria e a prática do terrorismo divulgadas pela primeira vez. Lisboa: Antígona, 1981
VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Paris: Galilée, 1977            
    
  
 
                   

    

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