José Paulo
No a Filosofia da alcova, O Marquês de Sade se interroga, para além da
libertinagem narrativa livresca, sobre um objeto, a revolução?
Se a revolução é Ding (uma coisa no sentido da língua
alemã [Heidegger: 16] que é debate jurídico ou debate em geral, ainda mais
duelo, combate, coisa como luta em outras línguas), Ding pode ser a coisa-combate do espaço público procedural
hegeliano: Ding e diálogo. Na
revolução, o diálogo costuma ser excluído do agir revolucionário contra a ordem
vigente ou ancien régime. A revolução é apenas Ding, a Coisa em questão.
A revolução permanente
republicana de Sade é a lei do gozo para todos. Uma captura do Imperativo moral
kantiano (para os distraídos) no sentido da ética sadiana de abrir todas as
comportas do desejo humano? A ética sadiana tem das Ding (o objeto-em-luta) no lugar de um agir universal e infinito?
Em Sade, das Ding é a lei universal
do direito ao gozo para todos? O discurso de Sade faz do gozo de Ding uma subversão da Lei que limita o
desejo de prazer em relação ao Ding?
Não gozar com das Ding é a definição da Lei em geral. Gozar remete para a relação de
prazer do bebê com a Mãe-objeto de desejo do bebê? Não transformar prazer em
gozo é a lei universal da passagem da natureza para a cultura que constitui o
homem! Pois, das Ding é a Mãe (Lacan.
S.7: 90).
Lacan diz:
“la mère reste interdite. Notre
verdict est confirmé sur la soumission de Sade à la Loi. (Lacan. 1966: 790). É
possível ir mais longe e dizer que a função do mal leva-o ao reconhecimento
indireto da Lei na cultura: L’apologie du crime ne le pousse qu’à l’aveu détourné de la Loi. L’Étre suprême est
restauré dans le Maléfice”. (Lacan. 1966:
790).
Submissão à Lei de Ding não significa submissão à lei
jurídica! Ding é combate, luta,
revolução republicana permanente em Sade. Trata-se da submissão à lei de Ding ou ˂tirer les choses au clair> ou
que ˂Bonne chose a besoin de temps> revolucionários!
Sade se submete à Lei moral de
interdição do incesto que não é um dos 10 mandamentos nomeados da narrativa
judaica. Este mandamento é a falta de um significante na cadeia dos
significantes da moral judia-cristã, significante que articula, de modo latente
e ausente, aos 10 mandamentos à passagem da natureza à cultura. A moral em tela
já é um puro artefato cultural, fato da cultura moral que trabalha fazendo
pendant com o natural recalque (fato comum recalcado na cultura) do gozo de Ding.
A revolução permanente
republicana tem uma Lei: não gozar com o objeto revolução como objeto
substituto da mãe-Ding. A revolução
republicana não é o direito ao gozo integral e infinito! A ética da revolução
republicana é abrir muitas comportas do desejo, mas não todas.
De qualquer modo o panfleto Franceses, mais um esforço para serem
republicanos faz o pacato Lacan falar de política revolucionária francesa,
europeia:
“Após esse apelo, suposto ser
colhido por um movimento de folhetos que se agitam nesse momento na Paris
revolucionária, o marquês de Sade nos propõe como máxima universal de nossa
conduta, visto o que, nas premissas desse livro, consiste a ruína das
autoridades, o advento de uma verdadeira república, o contrário do que pôde ser
até então considerado como o mínimo vital de uma vida viável e coerente.
E, na verdade, ele não sustenta
nada mal isso. Não é absolutamente por acaso que encontramos inicialmente na
Filosofia na alcova um elogio da calúnia. A calúnia, diz-nos ele, não poderia,
em nenhum caso ser nociva – se ela imputa o nosso próximo algo muito pior do
que se pode com razão atribuir-lhe, ela tem por mérito alertar-nos contra suas
empreitadas. E prossegue deste modo, justificando ponto por ponto o
derrubamento dos imperativos fundamentais da lei moral, e preconizando o
incesto, o adultério, o roubo e tudo o que vocês podem acrescentar. Peguem o
contrário de todas a leis do Decálogo e terão a exposição coerente de algo cujo
móvel final articula-se em suma assim – Tomemos como máxima universal de nossa
ação o direito de gozar de outrem, quem quer que seja, como instrumento de
nosso prazer! ”. (Lacan. S. 7: 100). Claro que Lacan já disse que excetuando a
mãe!
Com efeito, a revolução
republicana permanente trata do gozo entre homens revolucionários libertinos e
belas mulheres:
“Sade demonstra, com muita
coerência, que uma vez universalizada essa lei, se ela confere aos libertinos a
livre disposição de todas as mulheres indistintamente, consentido elas ou não,
libera-as inversamente de todos os deveres que uma sociedade civilizada lhes
impõe em suas relações conjugais, matrimoniais e outras. Essa concepção abre as
comportas que ele propõe imaginariamente no horizonte do desejo, cada um sendo
solicitado a levar a seu extremo as exigências de sua cobiça e de realizá-las”.
(Lacan. S. 7: 100-101).
Contra a revolução republicana
permanente sadiana imaginária ou real, as feministas se levantam como um só
homem. Toda a articulação de uma sociedade de polícia e seu aparelho de Estado
feminista se ergue contra o libertino, consciente ou inconsciente, que
considera que pode dispor das mulheres sem o consentimento delas. Trata-se da
transdialética gramatical sadiana às avessas que põe de um lado a forma homem
animal despótico vocal e de outro o conjunto mulheres.
Uma comporta a ser aberta na gramática
transdialética em tela é a da apologia da CALÚNIA. Transdialética entre a cultura de massa
moderna (vigilância da calúnia) e da cultura de massas sadiana na Internet:
realização do desejo-liberdade de caluniar. Tal desejo nos remete para o Jesus Cristo de
Renan!
O crime de Jesus não foi a poderosa
e divina eloquência satírica com a qual ele ataca a classe sacerdotal judaica ultrajando-a na zombaria e no ridículo, como frisa Lacan:
“Mais s’il vous faut um coeur bien
accroché pour suivre Sade quando il prône la calomnie, premier article de la
moralité à instituer dans sa republique, on préférerait qu’il mit le piquant
d’un Renan. ˂Félicitons-nous, écrit ce dernier, que Jésus n’ait rencontré
aucune loi qui punît l’outrage envers une classe de citoyens. Les Pharisiens
eussent été inviolables> et il continue: ˂ Ses exquises moqueries, ses
magiques provocations frappaient toujours ao coeur. Cette tunique de Nessus du
ridicule que le Juif, fils des Pharisiens, traîne en lambeaux aprés lui depuis
dix-huit siècles, c’est Jésus qui l’a tissée par un artífice divin.
Chef-d’ouvre de haute raillerie, ses traits se sont inscrits en ligne de feu
sur la chair de l’hypocrite et du faux dévot. Traits incomparables, traits
dignes d’un Fils de Dieu! Un Dieu seul sait tuer de la sorte. Socrate et
Molière ne font qu’efflereur la peau. Celui-ci porte juaqu’au fond des os le
feu et la rage>”. (Lacan. 1966: 788).
A eloquência dialética de Jesus
era feita de calúnias que jogava na lata de lixo teológica a própria narrativa judaica como um todo:
“ Coitados de vós, escribas e
fariseus hipócritas. Pois vós limpais o exterior da taça e do prato, mas o
interior, que está cheio de rapina e cupidez, vós nem reparais. Fariseu cego,
primeiro lava o interior, para depois pensar na limpeza do exterior.
Coitados de vós, escribas e
fariseus hipócritas! Pois vós pareceis sepulcros caiados, que por fora parecem
bonitos, mas que, por dentro, estão cheios de ossos de mortos e de toda espécie
de podridão. Aparentemente, vós sois os justos; mas no fundo, estais cheios de
fingimento e pecado.
Coitados de vós, escribas e
fariseus hipócritas, que ergueis os túmulos dos profetas, e enfeitais os
monumentos dos justos, e que dizeis: ‘ Se nós tivéssemos vivido no tempo de
nossos pais não teríamos sido cúmplices nas mortes dos profetas’. Ah! Vós
pretendeis ser filhos dos que mataram os profetas. Pois bem, acabai de acumular
a medida de vossos pais. A sabedoria de Deus bem teve razão em dizer: ‘Eu vos
enviarei profetas, sábios, doutos; vós matareis uns, perseguireis outros de
cidade em cidade, para que um dia caia sobre vós todo o sangue inocente que foi
espalhado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo, até o sangue de
Zacarias, filho de Baraquias, que vós matastes entre o templo e o altar. Eu vos
digo: é nesta presente geração que todo esse sangue será cobrado”. (Renan:
328-329)
O crime que condena Jesus é o artigo
jurídico sedução:
“O procedimento adotado pelos
sacerdotes contra Jesus estava de acordo com o direito estabelecido. O processo
contra o ‘sedutor’ (mesith), que
busca atentar contra a pureza da religião, é explicado no Talmude com detalhes
cuja ingênua impudência faz rir. A cilada judiciária ali é tomada como parte
essencial da instrução criminal. Quando um homem é acusado de ‘sedução’,
instalam-se duas testemunhas por detrás de uma parede; arruma-se um jeito de
atrair o acusado para um quarto contíguo, onde possa ser ouvido pelas
testemunhas, sem que as percebas. Acendem-se dois candeeiros perto dele, para
que fique bem constatado que as testemunhas ‘o veem”. Em seguida, faz-se o
acusado repetir sua blasfêmia. Ele é levado a se retratar. Se ele persistir, as
testemunhas que o ouviram levam-no ao tribunal e ele é apedrejado. O Talmude
acrescenta que foi dessa forma que procederam com Jesus, que ele foi condenado
sobre o depoimento de duas testemunhas, e que o crime de ‘sedução’ é, em suma,
o único para o qual se preparam testemunhas dessa forma”. (Renan: 358-359).
Trata-se da política do partido
sacerdotal que usa uma artimanha jurídica teológica menor, quase pessoal, para
condenar e crucificar. Renan diz que essa é a política de todos os tempos
ocidentais para tratar com os revolucionários espiritualistas ou materialistas:
“Certamente, as causas que
deveriam levar Jerusalém à ruína, 37 anos mais tarde, estavam fora do
cristianismo nascente. Contudo, não se pode dizer que o motivo alegado nessa
circunstância pelos sacerdotes estivesse completamente fora de propósito para
que se veja nele má-fé. Num sentido geral, Jesus, se triunfasse, realmente
levaria a nação judaica à ruína. Partindo de princípios admitidos de improviso
por toda a antiga política, Hanan e Caifás tinham então, o direito de dizer:
‘Mais vale a morte de um homem que a ruína de um povo’. Esse é um raciocínio,
para nós, detestável. Mas este raciocínio foi o dos partidos conservadores desde
a origem das sociedades humanas. O ‘partido da ordem’ (tomo essa expressão no
sentido estrito e mesquinho) foi sempre o mesmo. Pensando que a última palavra
do governo é impedir as comoções populares, ele crê praticar um ato de
patriotismo ao prevenir com um homicídio jurídico a efusão tumultuosa do
sangue. Pouco preocupado com o futuro, ele não imagina que, ao declarar guerra
a qualquer iniciativa, ele corre o risco de frustrar uma ideia destinada a um promissor
triunfo. A morte de Jesus foi uma das mil aplicações dessa política. O
movimento que ele dirigia era apenas espiritual; mas era um movimento, desde
então os homens da ordem, persuadidos de que o essencial para a humanidade era
não se agitar, deviam impedir a expansão do novo espírito. Jamais se viu, por
meio de um exemplo mais chocante, como tal conduta vai contra seu objetivo. Se
deixado livre, Jesus ter-se-ia esgotado numa luta desesperada contra
impossível. O ódio ininteligível de seus inimigos decidiu o sucesso de sua obra
e selou sua divindade”. (Renan: 338-339).
Hoje, nos encontramos longe do
direito sacerdotal judaico arcaico? Certamente, o presidente Temer nada tem de
comum com Jesus. Mas não foi preparada uma cilada farisaica e hipócrita para
ele na situação de ‘sedução’ da empresa Fri
boi que pode ser uma semblância ou algo real? Qual a distância do nosso
direito do direito judaico arcaico, direito do Urstaat judaico? Qual a
distância da política brasileira em relação à política do ‘partido da ordem’
(Renan) desde os tempos arcaicos?
A política do partido da ordem
não faz pendant com a revolução permanente republicana do Marquês de Sade? Tal
evolução não avança sobre os corpos das mulheres através de libertinos arcaicos
republicanos?
REVOLUÇÃO
REPUBLICANA PERMANENTE
Sade começa o panfleto Français, encore un effort si vous voulez
être républicains com uma fantasia do futuro (Marx):
“Je viens offrir de grandes
idées: on les écoutera , elles seron réfléchies; si toutes ne plaisent pas, au
moins en restera-t-il quelques-unes; j’aurai contribué em quelque chose au
progrès des lumières, et j’en serai contente”. (Sade: 187).
A liberdade é o
significante-mestre da revolução permanente do republicanismo. A liberdade liga
o republicanismo ao Esclarecimento. Sade expõe um conjunto de ideias, mas sua
revolução republicana estará em curso permanente se algumas dessas ideais se
tornarem a prática política no real da sociedade moderna ou pior no século
XXI...
A primeira ideia do republicanismo
é aniquilar o cristianismo na cultura Europeia, pois, a revolução é europeia:
Si, malheureusement pour lui, le Français s’ensevelissait encore dans les
ténèbres du christianisme, d’um côte l’orgueil, la tyrannie, le despotisme des
pêtres, vice toujours renaissants dans cette horde impure, de l’autre la
bassesse, les petis vues, les platitudes des dogmes et des mystères de cette
indigne et fabuleuse religion, en émoussant la fierté de l’âme republicaine,
l’auraint bientôt ramenée sous le joug que son énergie vient de briser”. (Sade:
188)
A religião faz pendant com a
tirania civil em todas as épocas:
Ne perdons pas de vue que cette
puérile religion était une des meilleures armes aux mains de nos tyrans: un de
ses premier dogmes était de rendre à
César ce qui appartient à César; mais nous avons détrôné César et nous ne
voulons plus rien lui rendre”. (Sade: 188).
A religião invade o real da
sociedade política dos significantes (Lacan. S. 18: 18); ela não é uma
ideologia política simples qualquer constituída por juízos de opinião para a
vida do senso comum do homem; mas sim uma ideologia sem objeto que, no entanto,
subjetivam os significantes reais, peixes que voam na superfície do oceano da
tradição (camponeses); ela é um sucedâneo de ideologia gramatical. O
republicanismo deve ser também uma ideologia gramatical para as massas:
“; les paysans n’ont-ils pas
senti la nécessité de l’anéantissiment du culte catholique, si contraditoire
aux vrais príncipes de la liberte? N’ont-ils pas vu sans effroi, comme sans douleur,
culbuter leus autels et leurs presbytères? Ah! Croyez qu’ils renonceront de
même à leur ridicule dieu. Les statues de Mars, de Minerve et de la Liberté
seront mises aux endroits le plus remarquables de leurs habitaions; une fête
annuelle s’y célébrera tout ans; la couronne civique y sera décernée au citoyen qui aura le mieux mérité
de la patrie”. (Sade: 196).
O republicanismo deve ser uma correlato pagão de cristianismo?
A felicidade é o sujeito
gramatical do republicanismo revolucionário permanente:
“faites-leur sentir que ce bonheur
consiste à rendre les autres aussi fortunés que noud désirons l’être nous-mêmes”.
(Sade: 199).
A felicidade faz pendant com a
felicidade de Freud?
A felicidade faz pendant com a
moral kantiana-sadiana:
“Disons que le nerf du factum est
donné dans la maxime à proposer sa règle à la jouissance, insolite à s’y faire
droit à la mode de Kant, de se poser comme règle universelle. Énonçons la maxime:
˂ J’ai le droit de jouir de ton corps, peut me dire quiconque, et ce droit, je
l’exercerai, sans qu’aucune limite m’arrête dans la caprice des exactions que
j’aie le goût d’y assouvir > ”. (Lacan. 1966: 768-769).
Freud diz: “O que chamamos de
felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência,
repentina) de necessidades representadas em alto grau, sendo por sua natureza,
possível apenas como uma manifestação episódica”. (Freud. XXI: 95).
Uma comunidade intelectual
atravessa épocas e faz a ligação neurônica-significante ente Sade-Kant-Freud?
A arte é insuficiente para a
obtenção da felicidade. A sublimação da realização da satisfação dos desejos
necessita fazer pendant com a sociedade narcose para evitar o progresso e a
expansão do republicanismo revolucionário permanente? Freud diz:
“As pessoas receptivas à
influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de
prazer e consolação da vida. Não obstante, a suave narcose a que arte nos
induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento passageiro das pressões das
necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer
a aflição real”. (Freud. XXI: 100).
A aflição real é aquela que se
constitue como motor moral do republicanismo revolucionário. Temos aí a
substituição da ideologia gramatical pela moral de gramaticalização das
aflições reais.
Das Ding é o objeto supremo da aflição moral real. A religião
(Deus) pode dar conta desse objeto? Para Sade, a religião é uma ideologia sem
objeto, uma ideologia da representação onde o objeto escapa de ser
representado, a não ser como ficção:
Toutes nos idées sont des
représentations des objets qui nous frappent; qu’est-ce qui peut nous représenter
l’idée de Dieu, qui est évidemment une idée sans objet”. (Sade: 200). Trata-se
de um fantasma (Sade: 195).
O fantasma é o sujeito
gramatical, por excelência, da ideologia:
“Gespenst Nr. 1 (Fantôme n°
1: l’être suprême (dans höchste Wesen), Dieu. On ne perd
pas une minute à parler de cette ˂ incroyable croyance >, note Marx. Ni
Stirner ni Marx ne s’arrêtent d’ailleurs sur l’essence du croire, ici de la foi
par excellence, qui ne peut jamais croire qu’à l’incroyable, et ne serait pas
ce qu’elle est sans cela, au-delà de toute ˂preuve de l’existence de Dieu >
”. (Derrida. 1993: 227).
Em Marx, a ideologia econômica põe a
mercadoria no lugar de Deus. Trata-se de uma ideologia materialista sem objeto:
“O esquema fantasmal parece,
desde então, indispensável. A mercadoria é uma ‘coisa’ sem fenômeno, uma coisa
em fuga que passa os sentidos (ela é invisível, intangível, inaudível e sem
odor); mas essa transcendência não é toda espiritual, ela conserva esse corpo
sem corpo de que havíamos reconhecido que ele fazia a diferença do espectro
para o espírito. O que passa os sentidos passa ainda diante de nós, na silhueta
do corpo sensível que, no entanto, lhe falta ou nos permanece inacessível. Marx
não diz sensível e insensível, sensível
mas insensível, diz: sensível
insensível, sensivelmente supra-sensível. A transcendência, o movimento em supra,
o passo além (über, epekeina) se faz sensível no excesso
mesmo. Torna o insensível sensível (...) A mercadoria obsidia assim a coisa,
seu espectro trabalha o valor de uso”. (Derrida. 1994: 202).
A transdialética da ideologia
materialista gramaticaliza o mundo do valor de uso no real como
coisa-fantasmal. Passagem do idealismo do mundo para o materialismo da coisa
sem fenômeno. Trata-se da moral capitalista capaz de pôr um freio no
republicanismo revolucionário? Marx viu na moral socialista exposta no Crítica ao Programa de Gotha um meio de
desviar o republicanismo revolucionário? O fracasso tanto do socialismo da URSS
como do capitalismo americano permitiu à moral do republicanismo sadiano
retomar seu desenvolvimento e expansão na física gramatical?
SADE, MEU PRÓXIMO MORAL
A moral sadiana dos costumes é um
passo além da ideologia gramatical materialista de Marx. Passemos a ela.
Deus é o objeto fictício ou oco
de uma ideologia religiosa; Deus é esse ridículo fantasma da imaginação das
massas. Em Ding (duelo com Deus) não se
deve usar a cólera, e sim a brincadeira gozosa:
“Français, plus de dieux, si vous
voulez pas que leur funeste empire vous replonge bientôt dans tout les horreurs
du depotisme; mais ce n’est qu’en vous en moquant que vous les détruirez; tout
les dangers qu’ils traînent à leurs suíte renaîtront aussitôt en foule si vous
y mettez del’humeur ou de l’importance. Ne revenserz point leurs idoles en
colère: pulvérisez-les em jouant, et l’opinion tombera d’elle-même”. (Sade:
206).
Espanto liberal! A lei do Estado
revolucionário republicano não dobra aquele que não se submete à lei:
Or, quel sera le comble de votre
injustice si vous frappez de la loi celui auquel il est impossible de se plier
à la loi!”. (Sade: 208).
Aquele que não se dobra à lei é o
revolucionário do republicanismo. Curioso que Jesus poderia ser considerado um
revolucionário do republicanismo se sua revolução fosse materialista. Hegel diz
sobre o indivíduo revolucionário de todos os tempos ocidentais:
“uma modificação pela qual o
indivíduo, como efetividade especial e como conteúdo peculiar, se opõe àquela
efetividade universal. Essa oposição vem a tornar-se crime quando o indivíduo
suprassume essa efetividade de uma maneira apenas singular; ou vem a tornar-se
um outro mundo – outro direito, outra lei e outros costumes, produzidos em
lugar dos presentes – quando o indivíduo o faz de maneira universal e,
portanto, para todos”. (Hegel. 1992: 194).
Freud trata como gramática moral
ilógica o credo quia absurdum, do
primeiro padre da Igreja atribuído a Tertuliano, que sustenta que as ideologias
religiosas estão fora da jurisdição da razão (Freud. XXI: 40-41). Quanto ao
amar o próximo como a ti mesmo, eis o credo
cria absurdum fazendo pendant com Sade:
“Acho que agora posso ouvir uma
voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de
amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’.
Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quis absurdum”. (Freud. v. XXI: 132).
Sade desmonta o Credo quia absurdum com uma grande
simplicidade argumentativa:
Il ne s’agit pas d’aimer ses
semblables commme soi-même, puisque cela est contre toutes les lois de la
nature, et que son seul organe doit diriger tout les actions de notre vie; il
n’est question que d’aimer nos semblables comme des freres, comme des amis que
la nature nous donne, et avec lesquels nous devons vivre d’autant mieux dans un
État republicain que la disparition des distances doit nécessairaiment
resserrer les liens”. (Sade: 207).
Não tem descanso! Sobre o conceito
delito criminoso: “Le législateur, dont toutes les idées doivent être grandes
comme l’ouvrage auquel il s’applique, ne doit jamais étudier l’effet du délit
qui ne frappé qu’individuellement; c’est son effet en masse qu’il doit
examiner”. (Sade: 212).
A burocracia republicana
revolucionária é a Bürokratie de Marx
no lugar do significante burguês liberal administração de Hegel. (Marx. 1982:
357). No Brasil, uma Bürokratie
revolucionária republicana se põe e repõe como freio à revolução da moral
republicana dos costumes:
Quoi qu’il en soit enfin, les
forfaits que nous pouvons commettre envers nos frères se réduisent à quatre
principaux: la colomnie, le vol, les délits qui, causés par l’impureté, peuvent atteindre
désagréablement les autres, e le meurtre.
Toutes ces actions, considérées como capitales dans un gouvernements
monarchique, sont-elles aussi graves dans un État républicain? (Sade: 210)
Encerro! E convido o leitor a
continuar a gramaticalização do inconsciente do discurso do político do marquês
de Sade!
DERRIDA, Jacques. Spectres de
Marx. Paris: Galilée, 1993
DERRIDA, Jacques. Espectros de
Marx. RJ: Relume-Dumará, 1994
FREUD. Obras Completas. v. XXI.
RJ: Imago, 1974
HEGEL. Fenomenologia do Espírito.
Parte I. Petrópolis: VOZES, 1992
HEIDEGGER. Qu’est-ce qu’une
chose? Paris: Gallimard, 1962
LACAN, Jacques. Écrits. Paris:
Seuil, 1996
-------------------- O Seminário.
Livro 7. A ética da psicanálise. RJ: Jorge Zahar Editor, 1991
------------------- O Seminário.
Livro 18. De um discurso que não fosse semblante. RJ: Zahar, 2009
MARX e Engels, Carlos e Federico.
v. 1. Marx. Escritos de Juventud. México: Fondo de Cultura Económica, 1982
RENAN, Ernest. Vida de Jesus. SP:
Martin Claret, Sem Data
SADE. Marquês. La philosophie
dans le boudoir. Paris: Gallimard, 1976