quinta-feira, 15 de junho de 2017

DO CONTO A CARTOMANTE, de MACHADO DE ASSIS


José Paulo

GRAMÁTICA DIALÉTICA DA TECEDURA NARRATIVA FICCIONAL

De formação jesuítica, um historiador de uma universidade do interior de São Paulo apresenta um programa de formato inédito na TV. Sem um fio de cabelo na testa, ele diz ao espectador coisas que ele costuma dizer em sala de aula de um modo mais simples, talvez, simplificado.

Hoje, quinta-feira, no meio de junho, ele narrou no tempo eletrônico sobre alguém no Brasil que de tanto acertar o ritmo e os efeitos imediatos dos fatos políticos, havia se tornado a personagem machadiano A CARTOMANTE. Já gramaticalizei alguns textos de Machado de Assis, mas a referência ao conto A Cartomante me trouxe saudades e um desejo verdadeiro machadianos de gramaticalizar o conto contado, com sérios desvios da narrativa original, pelo nosso jesuíta historiador eletrônico do sul do país.

A Cartomante é uma narrativa (que o leitor deve buscar e sonhar com ela) de uma psicanálise gramatical machadiano? O narrador conta uma história trágico-cômica, um drama moderno, como nos ensinam nossos competentes e brilhantes professores de literatura e formas da estética. O conto é uma comédia de almour (amor + alma) envolvendo três personagens: Vilela, Camilo e Rita.
Camilo e Vilela são possuídos por um almour (que nossos psicanalistas vulgares freudianos chamam de amor homossexual):
“- É o senhor? exclamou Rita, entendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava-lhe sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa”. (Machado: 478-479).

O freudiano diz que a amizade homossexual levou Vilela a cavar no real de Camilo o desejo sexual à distância por sua própria mulher, mulher sagrada de Vilela. Desejar a mulher de Vilela significava para este, indiretamente, ter o desejo sexual de Camilo para si, sem nenhum custo ou perigo real ou imaginário.

Todo fenômeno psicótico tem por causa um acontecimento traumático. E eis que morre a mãe de Camilo. E o choque leva à tristeza e ao luto do filho que precisa de cuidados dos amigos. Então, Vilela deixa a Rita (como é mulher conhece melhor estes sortilégios e plasmas universais ou o remédio universal (panaceia psicanalítica) de curar a dor da perda da MÃE do amigo do marido.

Então, urge mostrar, ao leitor, o texto machadiano:
“Como daí chegaram ao amor, não o soube, ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente uma mulher bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-los em si próprio”. (Idem: 579).

A mistura fatal sexual psicótica é o quase incesto com a bela dona. Tal fato nos remete para o amor cortês das preliminares conjugal do inferno psicótico:
“Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; - ela mal, - ele para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muitas vezes os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com o vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeastes com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam”. (Machado: 479).       

Os sujeitos da psicanálise machadiano são a Cartomante e o Anônimo. Os dois tem a ver com cartas jogadas sobre a mesa para adivinhação ou cartas anônimas enviadas misteriosamente do remetente para o receptor para dar o mal a este último como acontece a quem tem um inimigo pessoal fazendo justiça sofística: fazer o bem ao amigo, e o mal ao inimigo! Aqui a justiça sofística voa, de mão em mão, através do discurso pedestre epistolar. A justiça sofística é um sujeito gramatical do inconsciente do discurso do inimigo anônimo epistolar:
“Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava de imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e para desviar suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela (...) As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente”. (Machado: 479).

A carta sofística traz a tragédia para a comédia de amor sexual romântico triangular. Mas antes de chegar ao fim da profecia da narrativa, pois, o leitor já sabe o que vai acontecer pelo narrador do conto que dá as cartas, vejamos a psicanálise gramatical machadiana.

A imaginação da personagem Camilo (e da Rita) tem uma função determinante na narrativa. A imaginação shakespeariana de Rita leva Camilo a cartomante.  

Narrador: “Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”. Narrador: “ Foi então que ela (Rita), sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo”. (Machado: 478).  

O narrador ainda põe na boca de Camilo diante do drama trágico moderno: “A voz da mãe repetia-lhe uma porção de caos extraordinários; e a mesma frase do príncipe da Dinamarca reboava-lhe dentro: ‘Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia...’ ”. (Machado: 481).

Há esse tronco comum gramatical da psicanálise freudiana com a psicanálise machadiana: a dramaturgia shakespeariana. Só que em Freud trata-se do Shakespeare da cultura do sério e da cultura witz. E em Machado? Trata-se da paródia do grotesco shakespeariano. Afinal, o drama Hamlet tem muito do grotesco barroco.

Contando shakespearianamente para Camilo a ida a Cartomante, Rita trás do fundo latente do inconsciente do discurso da Mãe de Camilo para o enfant Camilo toda a narrativa lendária da cidade carioca. Não se trata de uma qualquer, trata-se da capital do império, da polis e do lugar onde habita a política. Assim, a psicanálise machadiana faz pendant com a subjetividade da Mãe, com a polis e a política no sentido de Platão. Nos aproximamos verdadeiramente da ideia de Platão de uma gramática dialética da tecedura da polis e da política. (Platão: 241-242).

Na polis, na política e no conto machadiano o que conta é a narrativa como tecido de todos os três e de tudo o que acontece da subjetividade territorial virtual e real do território cidade-Estado. A narrativa machadiana é a gramática dialética da tecedura da polis carioca e do Império carioca shakespeariano.

Na subjetividade do conto machadiana tem a imaginação, o imaginário em interseção com o real alucinatório do trotar do cavalo (Machado: 481) e ainda outros fenômenos alucinatórios que definem o REAL machadiano. Tem o SIMBÓLICO do discurso epistolar e do jogar de cartas da Cartomante e muito mais, pois, várias espécies de ilusões reais, como o anônimo, e ilusões imaginárias (Idem: 480) povoam a narrativa da gramática dialética psicanalítica machadiana.   

O final já esperado pelo leitor é mesmo o fim esperado de Camilo e ENCORE. Depois de se dirigir por um acaso (armado pelo narrador) à cartomante, esta altera a atmosfera subjetiva de medo e suspeita de tragédia, em Camilo, que o bilhete que recebera de Vilela lhe impregnara na alma:
“ – As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita...Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta”. (Machado: 482). Esta gaveta corresponde ao vasilhame onde se guardam as torsões (maquinação do entrelaçamento da pessoa-cliente com o senhor absoluto hegeliano) da urdidura na trama do tecido narrativo. A gaveta é o sujeito gramatical violência gramatical simbólica sem limite como metáfora do tumba de Camilo no cemitério do grotesco gramatical da cartomante.    

A modernidade de Camilo se diluiu na atmosfera da velha, feia e suja, e inconfiável tradicionalíssima cultura da casa da cartomante:
- A senhora restitui-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão para cima da mesa e apertando a da cartomante”. (Idem: 482).

Agora a cartomante com um riso grotesco de quem envia inocentemente, inconscientemente, o cliente para seu destino funesto:
“Esta levantou-se, rindo:
- Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... (Idem: 482).

A cartomante tem o poder de mover (remover) o RECALQUE em Camilo sobre as velhas lendas cariocas da Mãe e sobre a retomada no cotidiano de seu desejo sexual por Rita, na página 483:
“ - Vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado (ria de si mesmo: é um fenômeno estético do grotesco); mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação:
“ – Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz”, e produziam o efeito de realidade de que o discurso da polis da cartomante era a única verdade.
E mais ainda:
“A verdade é que o coração ia alegre e impaciente (para aquele funcionário público Camilo, o moderno), pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória (eis a cidade real), Camilo olhou para ao mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável”.

E então narra-se o fim trágico antecipado na breve narrativa (anteriormente Machado diz: "mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos"):
  “ – Desculpa, não pude vir mais cedo; o que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e forma para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: - ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão”. (Idem: 483).

Claro que a narrativa continua na polis, pois, aí o poder policial e o judicial, também, entram em cena. E o leitor não saberá qual o destino de Vilela, pois, nada sabe sobre o modo como se comporta o Estado monárquico na sua capital carioca em pleno 1869.  

MACHADO DE ASSIS. Obra Completa. v. 2. RJ: Nova Aguilar, 1979
PLATÃO. Político. Os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1972          
               

   
  

     

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