terça-feira, 17 de abril de 2018

HEGEMONIKÓN – DA RECENTE MODERNIDADE DA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA


José Paulo


É um truísmo a ideia de que a cultura cristã articula o imaginário político ocidental. Assim, nos encontramos diante de uma circunferência (ou periferia lacaniana) com um centro que é o logos divino. Nesta periferia, os seres contingentes (vida, a semelhança essencial, o laço social e outras realidades) são efeitos participados da ação criativa de Deus. Em suma, o sujeito é um efeito do logos divino. Na teoria do discurso de Lacan, Deus é S2 no lugar do agente, pois, Deus é causa. Trata-se do discurso da universidade que faz pendant com o discurso do burocrata que não é saber-de-tudo, e sim tudo saber. (Lacan. 1991: 34).   

A cultura metafísica cristã deduz uma hierarquia dos seres em relação à distância que eles se encontram do centro-logos divino: mais próximos de Deus, os anjos são os mais espirituais, os mais unos, inteligentes e perfeitos, os mais próximos de tudo saber; os anjos são seguidos pela alma do burocrata em todas tais perfeições.

A Igreja é o modelo da forma de governo autoritário piramidal. A pirâmide é a imagem de uma gramática da política de uma estrutura governamental cuja fonte de autoridade jaz externa a si mesma (no logos divino), porém cuja sede de poder se localiza em seu topo, do qual a autoridade e o poder político se filtram para a base de maneira tal que cada camada consecutiva possua alguma “autoridade”, embora menos que a imediatamente superior, e onde, exatamente por causa desse cuidadoso processo de filtragem, todos os níveis, do topo à base, se encontram firmemente integrados no todo e se inter-relacionam como raios convergentes cujo ponto  focal comum é o topo da pirâmide, bem como o fundamento transcendente de “autoridade” acima dela. (Arendt. 1988: 135).

A gramática em tela é aquela do tipo cristão de governo autoritário fazendo pendant com o discurso do burocrata. Trata-se da republique prêtre (Marx. 1982: 359) desenvolvida na Idade Média. Tal gramática fornecia o necessário ponto de referência de um imaginário político celestial cristão de igualdade entre os fiéis, não obstante a estrutura de vida estritamente hierárquica na terra. Como filosofia da política angelical, tal gramática eleva ao céu do governo autoritário o credo quia absurdum:
“De qualquer modo, uma forma autoritária de governo, com sua estrutura hierárquica, é a menos igualitária de todas as formas; ela incorpora a desigualdade e a distinção com princípios ubíquos”. (Arendt. 1988: 136).       

O imaginário da cultura cristã divide o sujeito em anjo e homem. Na teologia metafísica cristã, o logos divino é causa da formosura e da bondade. Nada há nada na natureza que não participe da formosura e bondade. A formosura de Deus (neste imaginário teocêntrico) é exaltada como origem de toda causalidade. Quanto à alma do burocrata, ela deve ser impessoal, seguidor das normas do direito e movida pela razão instrumental. Trata-se do imaginário político weberiano da junção sociedade moderna e Estado moderno. Nesta junção, não há distinção entre a burocracia e a empresa capitalista. Trata-se da forma moderna do discurso do senhor ou maître.  

Na teoria lacaniana do discurso, Deus é o campo simbólico (Grande Outro, S2, campo dos saberes). Deus não é a causa do imaginário político ocidental. A causa encontra-se no lugar do agente ocupado por S1 (significante-mestre). O S1 moderno pode ser a sociedade dos significantes capitalista - que tem como motor o capital da modernidade. Deus encontra-se no lugar do Outro.

Na cultura metafísica cristã, o sujeito é um efeito do logos divino no lugar do Outro. Em Lacan, o sujeito é efeito do significante no lugar do agente do discurso do capitalista. O agente é a causa do efeito sujeito capitalista. Com a teoria dos discursos lacaniana, o imaginário político do sujeito liga-se a causalidade do significante-mestre. Só para refrescar a memória do leitor, o significante-mestre não é um logos-divino.

Como o significante-mestre é o motor da causalidade do laço social, a junção do real (o S1 capital advém do Real) com o imaginário produz um sujeito não-cristão, um sujeito que pode ser o sujeito da cultura da antiguidade, ou grega, ou romana, ou moderna com o capitalista. Lacan diz algo do Ocidente que não é articulado como imaginário político da cultura metafísica cristã. O R.S.I. (Real, Simbólico e Imaginário) é as periferias que não se articulam a partir de um centro ou logos. Elas se articulam fazendo junção até chegar a junção R.S.I. Na modernidade, a junção é a sociedade dos significantes capitalista.

Não há propriamente um logos (o R.S.I. não é um logos) e sim hegemonikón. Este não é uma causalidade de formosura ou bondade. Ele pode ser, inclusive, a causa do mal-estar da civilização ocidental.

O que é o hegemonikón? Qual é sua relação com a autoridade?  

Hegemonikón é um significante que faz pendant com a ideia estoica eloquência perfeita. Ele se articula na relação rhetor percipio/regido. Trata-se de uma certa unidade gramatical teoria/prática de elementos contínuos e descontínuos. Em Sêneca está claro que o hegemonikón é o princípio diretor que fornece a unidade a todos os membros e impede a autonomia anárquica das diversas partes, que irremediavelmente conduziria a uma conformação monstruosa (Elorduy, S. J.: 111) ou um corpo político sem alma, sem forma.

Na sociedade moderna em um sentido amplo, o hegemonikón é a junção de três periferias: economia, política e cultura. As duas últimas são providas de autonomia relativa em relação à economia por onde advém o capital como significante do real. No entanto, o capital não é o centro das periferias supracitadas. Ele é a causa do hegemonikón da sociedade dos significantes capitalista que é a junção das periferias em tela.    
                                                                    II

Na política da modernidade, o corpo político com alma exige um rhetor percipio ou gramático (hegemonikón em sentido estrito) que exclui a gramática pessoal no comando da política. Trata-se do choque entre o rhetor percipio república democrática moderna e a gramática pessoal de Luís Bonaparte no O 18 Brumário de Luís Bonaparte. A gramática pessoal de Luís destruiu o rhetor percipio ou hegemonikón da política francesa e pôs no lugar dele o Segundo Império que é um corpo político sem alma, pois provido por uma gramática pessoal. 

O Segundo Império abole o hegemonikón como autoridade moderna da política ou eloquência perfeita. Trata-se de dominação com hegemonia. A hegemonia existe em função da coerção política. Ao contrário, o hegemonikón não está submetido a coerção alguma, pois responde a heimarméne. (Idem: 141). Obedecer ao rhetor percipio não significa um ato de coerção. Porém o sujeito homem (ou mulher) pode ir mais ou menos contente no carro da heimarméne (obediência política sem coerção), porém não pode dispor de sua liberdade para fazer o contrário.

Na República democrática moderna, a heimarméne faz pendant com o hegemonikón como gramática constitucional da política que excluiu a gramática pessoal anarquista (corpo político fático sem alma da modernidade dos de baixo) como elemento da vida política. A vida anárquica é a república das mil gramáticas pessoais.

Hegemonikón e heimarméne não nos remete para a reflexão da autoridade em Hannah Arendt?

Para cortar qualquer tentativa de uma interpretação da república democrática moderna pelo pensamento conservador, recorro a Marx:
“Enquanto o domínio da classe burguesa não se tivesse organizado completamente, enquanto não tivesse adquirido sua pura expressão política, o antagonismo das outras classes não podia, igualmente, mostrar-se em sua forma pura, e onde aparecia não podia assumir o aspecto perigoso que converte toda luta contra o poder do Estado em uma luta contra o capital. Se em cada vibração de vida na sociedade ela via a ‘tranquilidade’ ameaçada, como podia aspirar a manter à frente da sociedade um regime de desassossego, seu próprio regime, o regime parlamentar, esse regime que, segundo a expressão de um de seus porta-vozes, vive em luta e pela luta? O regime parlamentar vive do debate; como pode proibir os debates? Cada interesse, cada instituição social, é transformado aqui em ideias gerais, debatido como ideias; como pode qualquer interesse, qualquer instituição, afirmar-se acima do pensamento e impor-se como artigo de fé? A luta dos oradores na tribuna evoca a luta dos escribas na imprensa; o clube de debates do Parlamento é necessariamente suplementado pelos clubes de debates dos salões e das tabernas; os representantes, que apelam constantemente para a opinião pública, dão à opinião pública o direito de expressar sua verdadeira opinião nas petições. O regime parlamentar deixa tudo à decisão das maiorias, como, então, as grandes maiorias fora do Parlamento não hão de querer decidir? Quando se toca música nas altas esferas do Estado, que se pode esperar dos que estão embaixo, senão que dancem? (Marx. 1974: 366).

Sobre a modernidade da república democrática no século XXI, talvez, seja mais prudente seguir o pensamento de Heidegger:
Por lo demás, no es una cuestión meramente externa de denominación si se considera la era actual como el fin de la edad moderna, o si se reconece que hoy por hoy el proceso tal vez largo y difícil del perfeccionamiento de la edad moderna está recién iniciándose. (Heidegger. 1972: 154).
                                                                       III

No livro Entre o passado e o futuro, Hannah Arendt começa a discussão sobre autoridade falando da desarticulação do discurso do senhor em regiões pré-políticas como a relação adulto-filho e mestre-aluno, modelos para grandes variedades de formas autoritárias de governos. Aqui, o discurso do senhor faz pendant com a teoria/prática da autoridade tradicional dos grandes impérios absolutistas patrimonialistas da aurora da idade moderna.

Hannah diz que movimentos políticos buscando substituir o sistema partidário e o desenvolvimento de uma nova forma totalitária de governo contribuíram para a dissolução da forma de autoridade tradicional. Como já vimos, o discurso do senhor retorna na forma moderna do discurso da burocracia fazendo pendant com o discurso capitalista. (Lacan. 1991: 34). Trata-se de uma nova forma de autoridade baseada no hegemonikón da sociedade capitalista da modernidade: autoridade moderna.

A autoridade faz pendant com a obediência. Aí ela é confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui o uso de meios externos de coerção; onde há coerção, a autoridade fracassou. A autoridade não é a persuasão no espaço público da argumentação, lugar que pressupõe igualdade, ou seja, o contrário da ordem autoritária hierárquica. Se há argumentos, a autoridade é suspensa. A autoridade se contrapõe à coerção como a persuasão pelo argumento.

Hannah Arendt pensa a relação entre religião, tradição e passado como elementos essenciais para se definir a perda de autoridade na idade moderna. Com a perda da tradição e crise da religião cristã, rompe o fio que ligava o homem ao passado como profundidade: “Pois memória e profundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação”. (Arendt. 1988: 131).

A moderna perda de autoridade retira a profundidade da aparência das semblâncias do domínio político. Quanto ao cristianismo, ele é reduzido à profundidade da semblância do credo quia absurdum. (Idem: 131). Assim, o domínio político se livra da religião e da profundidade da essência. Ele passa a ser efeitos que produzem efeitos sem jamais chegar a conhecer a causa.

A perda de autoridade significa também perda de fundamento do mundo. Ao perder profundidade, a política passa a mudar, se modificar e transformar com rapidez sempre crescente de uma forma para outra, sem ser a história cíclica da antiguidade grega. É: “como se estivéssemos vivendo e lutando com um universo proteico, onde todas as coisas, a qualquer momento, podem se tornar praticamente outra coisa”. (Idem: 132). Esta formulação supracitada tem um axioma em Marx: tudo que é sólido desmancha no ar!

Como perda de autoridade, o tudo que é sólido desmancha no ar faz pendant com o hegemonikón, pois o desmanche no ar não instala o caos, a paralisia do mundo na economia, na cultura e na política:
“Mas a perda de permanência e segurança do mundo – que politicamente é idêntica à perda de autoridade – não acarreta, pelo menos não necessariamente, a perda de capacidade humana de construir, preservar e cuidar de um mundo que nos pode sobreviver e permanecer um lugar adequado à vida para os que vêm depois”. (Idem: 132).

Obviamente, Hannah se refere à sociedade capitalista com hegemonikón. Se refere a idade do capitalismo moderno tout court. Da década de 1950 até hoje, o capitalismo passou por transformações radicais. Assim: “preservar e cuidar de um mundo que nos pode sobreviver e permanecer um lugar adequado à vida para os que vêm depois” não é mais tão óbvio.

Hannah escreve em um momento no qual a democracia liberal ocidental não havia ainda sido corroída em seus fundamentos, mesmo sendo alvo de uma cultura que iria abolir a profundidade da aparência da semblância da profundidade. Com o capitalismo do globalismo neoliberal, a democracia é destituída de sua ontologia, e seu ser não persiste mais como axiologia de valores políticos que a contrapõem as inúmeras formas autoritárias: despotismo oligárquico, tirania, regime autoritário, ditadura.

O campo das relações internacionais tem o utilitarismo (significante interesse) no comando da percepção cultural política. E trata-se de um domínio sem valores políticos que tracem o sulco que estabeleça uma fronteira clara, nítida, entre Ocidente e Oriente asiático, entre democracia ocidental e totalitarismo asiático. Sem profundidade e, por conseguinte, memória de cultura política, a democracia se vê reduzida a uma mera semblância em um contraponto com a semblância ditatorial. 

A democracia liberal não é a semblância autêntica e sim inautêntica: "Estas últimas, miragens como a de alguma fada Morgana, dissolvem-se espontaneamente ou desaparecem com uma inspeção mais cuidadosa; as primeiras, como o movimento do Sol levantando-se pela manhã para pôr-se ao entardecer, ao contrário, não cederão a qualquer volume de informação científica, porque esta é a maneira pela qual a aparência do Sol e da Terra parece inevitável a qualquer criatura presa à Terra e que não pode mudar de moradia”. (Arendt. 1992: 31).

Já o regime ditatorial asiático aparece como uma semblância autêntica do capitalismo neocolonial do terceiro-mundo. Este capitalismo é o tudo que é sólido dissolve no ar do capitalismo moderno desenvolvido do primeiro-mundo. Neste último mundo, os sujeitos deixaram de crer e ter fé na democracia liberal ocidental como universo de solução de seus problemas domésticos ou do âmbito das relações internacionais. Um mundo de gramáticas pessoais (como a gramática de Donald Trump) levam vantagem, por enquanto, sobre a gramática da república democrática moderna. Com efeito, se estabelece uma luta entre gramáticas pessoais e a gramática da recente república democrática moderna pelo comando da política nacional e internacional.

Nem toda a aparência política é capaz de evitar o surgimento da recente república democrática moderna como semblância autêntica em um contraponto à semblância autêntica totalitária asiática. Quanto maior o domínio da ditadura asiática nas relações internacionais, mais potente se fará a expressão política da recente república democrática moderna, apesar e contra a gramática política pessoal republicana de Donald Trump.

Esta recente república democrática moderna do século XXI regula-se pela autoridade como heimarméne.      
                                                                         IV  

No século XIX, a cultura política funcionou segundo a banda de Moebius tendo no lado direito o a autoridade (conservadorismo) e no lado avesso a liberdade (liberalismo). Trata-se do século que caba por ser possuído pelo significante história transdialético nietzschiano:
“Nossas mentes rechaçam a ideia de nascimento de uma coisa que pode nascer de uma contrária, por exemplo: a verdade do erro; a vontade do verdadeiro da vontade do erro; o ato desinteressado do egoísmo ou a contemplação pura do sábio, da cobiça”. (Nietzsche. 1981:17).

Ao lado da teoria da modernidade política como destruição da autoridade e da liberdade, Hannah é nietzschiana (transdialética) no seu conceito de história:
“Além disso, resulta da natureza da própria imagem em que a história é usualmente concebida – como processo, fluxo ou desenvolvimento – que todas as coisas por ela compreendidas podem se transformar em quaisquer outras coisas, que as distinções se tornam sem sentido por ficarem obsoletas, e como que submersas no fluxo histórico no momento de sua aparição. Desse ponto de vista, o liberalismo e o conservadorismo apresentam-se como as filosofias políticas que correspondem a Filosofia da História muito mais geral e abrangente do século XIX. Em forma e em conteúdo, elas são a expressão política da consciência histórica do derradeiro estágio da época moderna”. (Arendt. 1988: 139).

No século XX, a transdialética transforma a época do liberalismo em conservadorismo, e vice-versa: “tentando em certas ocasiões reafirmar a autoridade e em outras, reafirmar a liberdade, resultaram somente em um maior solapamento de ambas, confundindo os problemas, borrando as linhas distintivas entre autoridade e liberdade e, por fim, destruindo o significado político de ambas”. (Arendt. 1988: 138). A Banda de Moebius liberalismo/conservadorismo é suplantada pela transdialética marxismo/fascismo. Assim, estiola-se os significantes autoridade e liberdade.

A gramática da cebola é a mais adequada para se pensar o governo totalitário. O centro se localiza em um espaço vazio onde habita o líder carismático ou condottiere. O rhetor percipio da gramática totalitária comanda seus ´súditos de dentro, e não de fora ou de cima. O governo pode ser uma hierarquia autoritária ou uma tirania que é metabolizada gramaticalmente como um fato normal, pois, a banda exterior da cebola possui uma aparência de semblância de normalidade por sua ausência de fanatismo e de extremismo, enquanto, ao mesmo tempo, aparece como o mundo normal ao movimento totalitário. (Arendt. 1988: 137).

Adorno e Horkheimer falam de uma ideologia oca de significações realmente existentes (de cunho niilista em relação à modernidade política e de exaltação à vida cega) para se referirem a vida da cultura política do fascismo alemão. (Adorno: 54, 138, 140). Quanto ao totalitarismo stalinista, ele é provido de uma ideologia política com excesso de significações no domínio da memória historial. Trata-se do discurso político mitológico da revolução russa e da sociedade de classes sendo substituída por uma sociedade de significantes do povo ariano russo.  
                                                                 V

A destruição da autoridade e da liberdade complica a vida do governo que se legitima no exercício do poder político. O problema é a confusão traçada pelas ciências humanas nos esforços por encontrar um princípio legítimo de coerção. Trata-se de encontrar a coerção na própria relação governante/governado e que fosse anterior à efetiva emissão de ordens.

A persuasão e a discussão na esfera pública se mostram insuficientes como fonte legítima de exercício de poder governamental. A razão pública como instrumento da busca da verdade é um modo de coerção não-violenta. Porém, a verdade deixou de se constituir como comando do reino da aparência das semblâncias. De qualquer maneira, a coerção pela razão pode alcançar uma minoria letrada em alta cultura política pública. Ela não alcança as massas.

No século XX, a educação pública universal se tornou o instrumento para se obter uma relação de governar e obedecer não-coercitiva na recente república democrática da modernidade do século XXI.

Trata-se de caminho análogo ao da auctoritas romana? Voltaremos a este problema depois.

A educação pública para a política significa em constituir massas simbólicas ou melhor, massas gramaticalizáveis. Estas só existem na medida em que são capazes de gramaticalizar juízos, sentenças e axiomas sensatos, razoáveis, baseados no bom-senso da política (que podem se tornar normas e padrões adequados para serem transformados em leis), voltados para o bem comum da sociedade dos significantes republicana democrática moderna.

E o que é esta sociedade?

Tal sociedade é provida de uma gramática de cultura política pública enquanto um gramático. A educação escolar é o ensino para as massas de várias espécies de gramáticas, em especial a gramática da língua materna. Este é o caminho para as massas (de elite ou vulgar) serem preparadas para metabolizar a relação governar/obedecer como uma gramática da cultura política pública nacional em junção com a cultura política internacional.

O gramático recente republicano democrático moderno é um modo de governar e ser governado sem coerção violenta real ou simbólica. É verdade que o aprendizado da gramática implica uma certa dose de coerção gramatical não-violenta - que depois desaparece com a constituição do gramático como um ente gramatical já dado na cultura política pública nacional.
                                                                 VI 

Na Grécia antiga, a educação ou paidéia faz junção com a política na cultura política aristocrática, cultura guerreira da nobreza como seus valores aristocráticos: excelência humana, a superioridade de seres não-humanos, a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça. (Jaeger: 19).  A arete é indispensável à prática da educação grega voltada para a política. A arete faz pendant com o discurso do senhor aristocrático. (Idem: 19). A política é feita por aqueles que governam crianças, mulheres e escravos:
“Em geral, de acordo com a modalidade de pensamento dos tempos primitivos, designa-se por arete a força e a destreza dos guerreiros ou lutadores e, acima de tudo, heroísmo, considerado não no nosso sentido de ação moral e separada da força, mas sim intimamente ligada a ela”. (Jaeger: 19).

A cultura política da nobreza se faz presença presente até na politeia. Esta é a democracia aristocrática em um contraponto à democracia das massas lumpesinais que governam de acordo somente com seus interesses egoístas, esquecendo as outras partes da sociedade dos significantes de classe social. A paidéia não faz parte da educação das massas como cultura política democrática pública no sentido da arete na democracia lumpesinal. Esta é uma apropriação da riqueza da nação como cultura política privada das massas que governam.  

Na politeia, a arete política torna-se um poder e um saber (Jaeger: 99). A educação na arete é política. (jaeger: 418-419). Na politeia, a virtude (arete) do cidadão consistiu na livre submissão de todos, sem distinção de dignidade ou de sangue, à nova autoridade da lei. A cultura aristocrática torna-se uma cultura igualitária dos cidadãos. Os valores aristocráticos se constituem como um lastro da cultura pública aristocrática através da educação para a cultura política de obediência às leis.

Trata-se da techne política como estrutura vital do homem como ser político para a vida comum como súmula da vida mais elevada e adquire até uma qualidade divina. A corrupção da techne política pela história cíclica das formas de governo está associada ao colapso da politeia.

A gramática da cultura política encontrou nos sofistas o fundamento da educação milenar. Os exemplos do treino do corpo e da criação de animais são mais uma prova da possibilidade de cultivar e educar a physis. Traduzida para o latim, a comparação da educação humana com a agricultura se inscreveu no pensamento ocidental e criou a nova metáfora da cultura animi: a educação humana como cultura política pública:
“Nesta profunda e ampla fundamentação do fenômeno educacional, mais uma vez se manifesta a natureza do espírito grego, orientado para aquilo que de universal e de total há no ser. Sem ela, nem a ideia de cultura nem a de educação humana teriam vindo à luz naquela forma plástica”. (Jaeger: 253).
Na cultura política moderna pública, trata-se de fazer a junção da educação pública universal com dois significantes estoicos: heimarméne e hegemonikón.   
                                                                 
                                                              VII

Marx diz:
“A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando aparecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestados os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a República Romana e como o Império Romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795”. (Marx. 1974: 335).

Conjurar os espíritos do passado (trazer o passado de volta) e tomar a linguagem da tradição política emprestada, eis a política como experiência de fazer da tradição (como memória do passado) a gramática da revolução republicana democrática moderna na França.

Re-ligare a modernidade política à gramática da cultura política romana é o ponto de partida de Hannah Arendt para pensar a crise da república democrática do Ocidente:
“Pois, se estou certa ao suspeitar que a crise do mundo atual é basicamente de natureza política, e que o famoso ‘declínio do Ocidente’ consiste fundamentalmente no declínio da trindade romana da religião, tradição e autoridade, como o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político, então as revoluções da época moderna parecem gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza”. (Arendt. 1988: 185).

A história pode ser um vale de lágrimas, nunca uma latrina; nunca o domínio dos objetos da baixa matéria dos fatos históricos.

O colapso do Ocidente faz junção com a dissolução secular da gramática da cultura política romana ou da ideia e da prática da auctoritas:
“a única experiência política que trouxe a autoridade como vocábulo, conceito e realidade à nossa história – a experiência romana da fundação – parece ter sido completamente perdida e esquecida. E isso a tal ponto que, no momento em que começamos a falar e pensar acerca da autoridade, que é afinal de contas um dos conceitos centrais do pensamento político, é como se fossemos apanhados em um labirinto de abstrações, e metáforas e figuras de linguagem, em qualquer coisa que pode ser confundida com qualquer coisa, por não dispormos de nenhuma realidade, seja na história, seja na experiência cotidiana, à qual possamos unanimemente recorrer”. (Arendt. 1988: 181).

Faço uma radiografia da gramática da cultura política romana para ficar claro como a autoridade se diferencia do governo e do poder político.

A gramática da cultura política romana tem como fundamento a religião, a tradição e a autoridade. Autoridade é um conceito e uma palavra de origem romana. Auctoritas implica uma espécie de governo romano especial. A relação entre autoridade, religião e tradição faz junção no significante fundação da polis romana (Roma). Se há incerteza quanto a história política, o mesmo não ocorre com a história religiosa. (Dumézil: 29). A religião romana tem um conteúdo intensamente político religado à fundação da polis. A religião significava ser ligado ao passado (literalmente re-ligare): ser ligado ao passado, obrigado para com o enorme, quase sobre-humano e por conseguinte sempre lendário esforço de lançar as fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade”. (Arendt. 1988: 163).

A religião e a atividade política poderiam ser consideradas idênticas, pois o poder coercivo da fundação era ele mesmo religioso, pois, a polis romana oferecia também aos deuses do povo um lar permanente: “mais uma vez, ao contrário dos gregos, cujos deuses protegiam as cidades dos mortais e, por vezes, nelas habitavam, mas possuíam seu próprio lar, distante da morada dos homens, no Monte Olímpio”. (Arendt. 1988: 163).

Freud diz:
“Para os romanos, que não fundaram no amor sua vida comunal como Estado, a intolerância religiosa era algo estranho, embora entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e este se acha impregnado dela”. (Freud: 137). 

O significante auctoritas é derivado do verbo augere (“aumentar”). A fundação é aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam. Os dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados designados de maiores.

A autoridade dos vivos era derivativa da autoridade dos mortos. A autoridade se distinguia do poder político (potestas), pois tinha seus fundamentos no passado. Esse passado era presença presente no presente assim como a potestas e a força dos vivos. Enio diz: Moribus antiquis res stat Romana virisque. (Arendt. 1988: 164).

Autoridade remete para autor e não para artífices. O autor não é o construtor, e sim aquele que inspirou todo o empreendimento e cujo espírito, portanto, muito mais do que o do efetivo executor, se acha representado na própria construção da política. Distintamente do artifix, que somente faz, é ele o verdadeiro autor do edifício político, vale dizer fundador. Ele é o “aumentador” da polis romana ou da política tout court.

A característica mais visível daqueles que detém autoridade é não possuir poder político. Cum potestas in populo auctoritas in senatu sit ou enquanto o poder político reside no povo, a autoridade pertence ao Senado. O Senado aumenta o exercício do poder político governamental, trata-se de um acréscimo que o Senado deve aditar às decisões políticas. Não se trata de poder; é curiosamente evanescente e intangível: “assemelhando-se a esse respeito de maneira notável ao ramo judiciário governo, de Montesquieu, cujo poder foi por ele chamado ‘de certo modo nulo’ (en quelque façon nulle) e que constitui, não obstante, a mais alta autoridade nos governos constitucionais”. (Arendt: 164-165).

O judiciário como auctoritas e auctor da política como tal passou a existir a partir de 17 de março de 2014, no Brasil. Esta data inaugura uma conjuntura política na qual o judiciário age como auctoritas ou auctor da política brasileira. Trata-se da recente fundação da república democrática moderna brasileira em um período de crise do regime liberal oligárquico 1988.

Há dois campos de forças lutando pela posse da vida política brasileira. O velho campo de forças oligárquico liberal da Constituição 1988 e o novo campo de forças da recente fundada república democrática moderna: hegemonikón cum heimarméne!       

ADORNO & HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento. RJ: Jorge Zahar Editor, 1985
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. SP: Perspectiva, 1988
ARENDT, Hannah. A vida do espírito. O pensar, o querer, o julgar. RJ: UFRJ/Relume-Dumará, 1992
DUMÉZIL, Georges. La religione romana arcaica. Milano: Rizzoli Editore, 1977
ELORDUY, S. J., Eleuterio (com a colaboração de J. Pérez Alonso). El estoicismo. Madrid: Editorial Gredos, 1972
FREUD. Obras Completas. O mal-estar na civilização. RJ: Imago, 1974               
HEIDEGGER, Martin. ¿Que significa pensar? Buenos Aires: Editorial Nova, 1972
JAEGER, Werner. Paidéia. A formação do homem grego. SP: Martins Fontes/UNB, 1986
LACAN, Jacques. Le Seminaire. Livre XVII. L’envers de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1991
MARX & Engels, Carlos & Federico. Obras Fundamentales. v. 1. Marx. Escritos de juventude. Crítica del derecho del Estado de Hegel. México: Fondo de Cultura Económica, 1982
MARX. Pensadores. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. SP: Abril Cultural, 1974
NIETZSCHE. Além do Bem e do mal. SP: Hemus-Livraria, 1981
   


    
  
  
  
   

                                        
     

  

      
     

Nenhum comentário:

Postar um comentário