sexta-feira, 29 de novembro de 2024

do perverso- do épico, do lírico, Nietzsche, Freud

 

José Paulo 

 

 

No livro “história da sexualidade” v. 1, Michel Foucault diz que: a sociedade industrial moderna, a sociedade burguesa, a família burguesa, as instituições [escola, psiquiatria, Igreja etc.) são perversas, são parte do campo de poderes/prazeres do perverso. O “Ocidente cristão” é perverso. (Foucault. 65,66,30). 

A história da sexualidade do “Ocidente” tem que ser uma reflexão a partir do significante-semblãncia do perverso. Assim, o capital industrial moderno aparece como a estrutura da comunidade psíquica de gramática de sentido do perverso. Curiosamente, Foucault retira o aparelho de Estado como centro de gravidade do campo político burguês moderno do perverso. No final da vida, Foucault começou a reorganizara a história do Estado territorial no campo político do “ocidente” do cínico.

Ao usar a ideia retórica da civilização ocidental. o pensamento político de nosso autor foi limitado pela fronteira entre o retórico e a gramática de sentido da realidade do real do capital. Hoje, o capitalismo, a sociedade capitalista, a burguesia capitalista são fenômenos retóricos. Assim. o marxismo brasileiro se tornou a retórica dominante do falso cínico ao dizer que a realidade é capitalista.

Foucault começou a discutir com Lacan e Freud se a perversão é a essência da civilização europeia, ou, na retórica dele, da civilização [retórica] ocidental. Foucault fez a história do perverso no campo de poderes/prazeres do desejo carnal.

Na pós-modernidade, Foucault é uma referência gramatical e ideológica a partir da qual se pode retomar a história da civilização do perverso.

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O perverso tem uma origem na civilização em latim. Consulto um dicionário:

Perversitas. Transtorno, desordem, (fig.); vício, depravação, corrupção, desregramento, falsidade, Perversitas morum. Suet, corrupção dos costumes – diligentice. QUINT. Excessivo rigor (no uso das palavras), purismo,- opinionum. CIC. Falsidade de opiniões, opiniões falsas e CIC. Extravagância, desvario. E ARN. Perversidade, malvadez, maldade, malícia. (Saraiva: 885).

O perverso é associado ao mal, à desordem, depravação, à logica do falso. Ele é a lógica que corrompe a forma de governo republicano como Júlio César. O império romano é uma forma de governo da comunidade psíquica do significante do perverso (CPSp)“ocidental” romano.

A  CPSp é o verdadeiro motor da transformação histórica do campo político; ela cria o cesarismo antigo e moderno: César, Napoleão são exemplos de cesarismo progressivo, isto é o verdadeiro cesarismo perverso. Napoleão III e Bismark são exemplos do cesarismo regressivo, isto é, da lógica da forma de governo do falso perverso. (Gramsci. 1977: 1619); Marx; 1974).

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O perverso é um objeto do conhecimento da antiguidade:

“Algumas coisas são agradáveis por natureza, e destas umas são irrestritamente agradáveis, enquanto outras o são em relação a determinadas classes de animais ou de pessoas; por outro lado, outras não são naturalmente agradáveis, mas algumas destas se tornam agradáveis por causa de aberrações, outras por causa de hábitos e outras ainda por causa de taras”.

“Sendo assim, é possível descobrir em relação a cada uma das espécies da segunda classificação disposições de caráter similares às identificadas a respeito do primeiro caso, refiro-me às disposições bestiais, como no caso da mulher que, segundo relatos, abria o ventre das mulheres grávidas e devorava os fetos, ou das coisas com que, de acordo com certas narrativas, algumas das tribos selvagens do litoral do mar Negro costumavam deleitar-se – com alimentos crus ou carne humana, ou com a troca de crianças entre as tribos para serem seviciadas em suas festas – ou como na história que se conta de Fálaris”. (Aristóteles. 1992: 137).

A gramática de sentido civilização versus barbárie faz pendant com a CPS- homem normal e CPS- do falso perverso, isto é, o mundo não é um teatro de comédia shakespeariano da lógica do verdadeiro perverso.   A reflexão sobre o perverso alcança a gramática de sentido da forma de governo, em Francis Wolff:

“reciprocamente, todos os regimes <anormais>. <pervertidos> ou <defeituosos> também o são, naquilo que são contrários a essência mesmo do político; todos eles são uma usurpação do poder político, pois este, por natureza, nada mais é do que uma simples servidão, da qual alguns deveriam aceitar encarregar-se em benefício de todos. Estes regimes são um confisco por parte de alguns (um, alguns, ou a massa) daquilo que é naturalmente destinado a todos, coletivamente”. (Wolff; 109).

Portanto, como evitar a barbárie na polis? A essência mesma do campo político é a estrutura de uma gramática de sentido da civilização. O campo político tem autonomia relativa em relação à determinação à última instância da lógica do significante-semblância falso perverso. O campo político é ethos, é busca do bem comum, é a recusa do páthos do perverso do bárbaro, que aparece através de fenômenos como a stásis (guerra civil etc.) e a pólemos. (Derrida). 110-111). A CPS -p é criada e recriada por uma vida que não é a do bem comum, da autarquia:

“Porque a autarquia à qual a polis permite que se supõem satisfeitas todas as necessidades da vida, é sinônimo de vida perfeita e de felicidade”. (Wolff: 70)

O perverso é um efeito do reino da necessidade em um contraponto ao homem normal do reino da liberdade. As condições objetivas da vida [do reino da necessidade} cria e recria a comunidade psíquica do falso perverso, aquele que não faz do mundo da necessidade um teatro mundo de comédia.  Na atualidade, o subdesenvolvimento é esse reino da necessidade cotidiana que transforma as classes baixas/pobres em uma imensa CPS-p do subdesenvolvimento. Aí, a gramática de sentido desenvolvido/subdesenvolvido adquire uma consistência e lógica falsa do perverso. O falso perverso é alheio à lógica formal clássica aristotélica, ao princípio da identidade, princípio da CPS-homem normal:

“que toute chose doit nécesairement être affirmée ou niée, et qu’il est impossible qu’une chose soit et ne soit, emn même temps, ainsi que touts autres premisses de ce genre”. (Aristote1991:129).

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EM Marx não há a ideia do Bem; ela seria uma ideia da metafísica, uma ideia do idealismo da filosofia de Platão e de Aristóteles. Ela funda o partido do idealismo contra o partido do materialismo. A ideia do Bem faz da filosofia uma máquina de guerra contra qual inimigo no campo do pensamento?

Philonenko:

Longe de defender o mito, a poesia altera-o. Platão usa expressões violentas: Hesíodo e Homero são os corruptores do gênero humano. [...]. Aparece aqui o grande princípio da crítica regeneradora do mito. Não é teórico. É, essencialmente, moral. Considerar-se-á falso tudo o que se julgar imoral nos relatos míticos. É claro que os critérios lógicos possuirão uma função, mas secundária. É muito mais importante denunciar a futilidade imoral e ímpia dos poetas que cantam os vícios, os males, as torpezas na vida dos deuses, dando assim, à legião dos espíritos fracos e inconscientes da necessidade do dever e das leis, <desculpas muito más>. (Philonenko. 1997: 47).

Para o POETA, a condição humana se orienta pelo ímpio, pelo cruel dos deuses. Ora, os deuses são o bárbaro! Contra tal fenômeno Platão e Aristóteles desenvolvem a ideia de civilização segundo a ideia do Bem. E mais, ainda. Os deuses são bárbaros e estes são sinônimo de uma comunidade psíquica de gramática de sentido do perverso em analogia com o homem da antiguidade. No lugar desse homem/perverso do poeta, põe-se e repõe-se o homem clássico, das luzes da antiguidade.

Bem! não se trata de ideologia idealista. Se trata de um fenômeno com a materialidade da gramática em língua grega.   A ideia do Bem é do campo da gramática e, certamente, ela cria e recria todo um campo de ideologias, campo este desenvolvido no livro “A República”, de Platão. O Bem como ideologia serve como gramática de sentido para a elite e as massas do homem livre. Serve para a montagem da educação grega. 

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A prática política do poeta fala da classe dirigente como obra-de-arte:

“Hesíodo entreviu a relação entre o belo e o útil. Nele, a primeira concepção do bem ´o que é útil [...]. toda a ideia de utilidade pressupõe um meio (um objeto) e um fim, logo tem dois elementos. A beleza não supõe estes dois elementos; é um ato único, total e global. É a primeira antinomia entre o belo e o bem”. (Bayer: 27).

Bayer:

“A primeira acepção da palavra bem, entre os Gregos, é o útil. Em Homero, não existe qualquer relação entre o belo e o bem (útil). (Bayer: 28).

A filosofia é um golpe de Estado na concepção da prática  política do poeta:

“A Kalocagatia, que só nos Gregos encontramos, é um conceito meio moral, meio estético, que consiste numa fusão da beleza e do bem. Parece ter sido a própria alma helénica, apaixonada pelo ideal moral e pela beleza, que quis associar ambos, e foi na tradição popular que Sócrates encontrou a ideia”. (Bayer: 34).

A estética de Platão:

“Finalmente, é uma estética hierárquica, subindo de plano em plano até a noção suprema de Kalocagatia em que o belo e o bem se identificam”. (Bayer:37).

A pratica política corresponde à forma de governo:

‘O conceito de pureza para Platão não quer dizer unicidade, mas homogeneidade; associa-se naturalmente ao conceito de transparência e aplica-se à pureza e à beleza da alma!”. (Bayer: 41).

Alma e polis são analógicas:

“Aqui a harmonia e o temperamento das virtudes são o bem na alma e o bem no Estado. Existem quatro virtudes cardiais: a temperança, a coragem, a prudência, a justiça que é o equilíbrio entre as três primeiras. A virtude dos homens é solidária da cidade onde o homem vive, porque o indivíduo reproduz em si a imagem da cidade”.

[...]

“Platão concebeu, além disso, uma teoria das artes que não é um sistema, mas que enumera todas as artes. Na sua teoria, a preocupação política e social predomina. Julga as artes não em si mesmas, mas segundo a sua influência pedagógica, a formação do guerreiro, por exemplo”. (Bayer; 42).

A pólemos (guerra entre as cidades-Estado) é parte da prática política do grego. Também a stásis (da insurreição à guerra civil) é parte da prática política. Assim, foi preciso combinar tais fenômenos com a existência do Estado obra-de-arte, estado lacaniano da gestão da mais-valia pública. Investimento de capital social na guerra e na construção da polis obra-de-arte. Por outro lado, Sócrates vendia suas esculturas para o governo do Estado lacaniano.  

A relação entre o modo psíquico de ser do perverso e a estética aparece em Platão:

“As artes são julgadas segundo qualquer coisa, e não por si mesmas, julgamento aliás incompreensível na boca deste grande artista que assim bania a poesia. É pois uma estética reacionária, mas que tem alguma vezes iluminação, na sua teoria da tragédia, por exemplo. Na “República” e nas “Leis”, condena a tragédia, mas por razões interessantes.: habitua o espectador a ver no palco heróis ilustras queixarem-se e sofrerem; habitua a sofrer e a comprazer-se no sofrimento. O que amolece a alma e a sensibilidade”. (Bayer: 43).

A estética pode ser um discurso que cria e recria o modo de ser psíquico do perverso, a partir do mais-gozar do espectador, que, às vezes, pode ser toda a cidade como audiência da peça.  (Berthold: 132).    

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HEGEL estabelece relações entre a estética da epopeia e o homem da antiguidade em geral:

“É, portanto, o conjunto d concepção do mundo e da vida de uma nação que apesentado sob a forma objectiva de acontecimentos reais, constitui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito”. (Hegel. 1993: 573).

O épico seria, talvez, a primeira forma de gramática de sentido do gosto que faz a junção do cosmopolitismo com o nacional:

“É como totalidade original que o poema épico constitui a Saga, o Livro, a Bíblia de um povo. todas as nações grandes e importantes possuem livros deste género, que são absolutamente os primeiros entre todos e nos quais se encontra expresso o seu espírito original”. (Hegel. 1993: 573).

O espírito original é o épico como tela narrativa de gosto de uma comunidade psíquica de significante:

“Assim estes monumentos constituem a verdadeira base sobre a qual repousa a consciência de um povo, e não seria destituído de interesses formar-se uma coleção de semelhantes Bíblias. Pois uma coleção de epopeias, que não sejam produções artificiais de épocas posteriores, equivaleria a uma galeria de espíritos nacionais. (Hegel. 1993: 573).

A tela narrativa de gosto épico é análoga ao inconsciente freudiano, na medida em que a linguagem do sofrimento é a gramática de sentido de todo discurso. (Lacan. S. 16: 68).    Como já apontamos, Platão fala da relação da estética da tragedia com o ´perverso. A relação entre a epopeia e o perverso aparece, também, em Platão.  Assim:

“Pelo contrário, os gregos que possuem nos poemas de Homero uma Bíblia poética, careciam de livros sagrados, análogos aos dos hindus e dos persas. Porém onde encontramos epopeias primitivas, devemos distinguir essencialmente entre os livros de caráter poético e as obras de arte clássica, de origem posterior, que exprimem a concepção de um povo, não já na sua totalidade, mas de forma abstrata e por certas das suas partes. Assim, a poesia dramática dos hindus ou as tragédias de Sófocles não contém um quadro tão completo como o “Ramayana” e o “Mahabharata” ou a “Ilíada e a “Odisseia”. (Hegel. 1993: 573).

A epopeia do modo psíquico de ser do perverso se aproxima da barbárie do homem da época da estrutura de dominação mitologia/poética?

Quando surge a civilização em um contraponto à barbárie do grego?

Hegel tem uma ideia clara e distinta:

 “Uma percepção do seu eu próprio eu interior, um colóquio com seu o seu eu mais íntimo na sua expressão <lírica>, mas, por outro lado, a paixão e o sentimento tornam-se a coisa principal que tudo domina e se procura afirmar activa e independente, recusando às circunstâncias, aos fatos, e acontecimentos exteriores o direito á independência épica”.

Hegel insinua uma diferença, por essência, entre a epopeia como modo de ser psíquico do bárbaro grego e o homem normal da civilização da antiguidade:

“Embora a epopeia deva ser, na realidade, a expressão objectiva, de um mundo independente, de um mundo de que o poeta se sente mais próximo pela sua maneira de encarar as coisas, a ponto de por vezes se identificar com ele, a obra de arte que representa este mundo, não deixa de ser uma livre produção do indivíduo. A este respeito, podemos recordar uma vez mais a grande variedade enunciada por Heródoto: foram Homero e Hesíodo que deram aos gregos os seus deuses. Esta liberdade e ousadia de criação que Heródoto atribui a estes dois poetas épicos mostra já que, embora as epopeias devam ter origens radicadas no passado longínquo dum povo, não devem pintar a época mais adiante deste povo. Quase todos os povos tiveram nas suas idades primitivas uma cultura estranha, um culto religioso de proveniência exterior a que houveram de submeter-se, pois, a sujeição do espírito, a superstição, a barbárie consistem precisamente em não saber obter de si mesmo as ideias superiores, em acolher as que provém do exterior, em vez de brotarem da consciência nacional e individual do povo”. (Hegel. 1993: 574-575).     

O fenômeno kid preto (bolsonarismo militar) é uma paródia da epopeia do modo de ser psíquico do perverso da barbárie da antiguidade? Os kid pretos não se veem como um fenômeno heroico de um ersatz de epopeia vulgar -  no campo político da atual conjuntura lulista?

“Além disso, a ideia do bem que a “República” acolhe e a partir da qual se determina a ordem da polis e da pysichè, da <cidade> como da <alma>, apresenta, ao interior dessa nova orientação <noética>, um traço característico: os interlocutores das entrevistas socráticas ficariam satisfeitos se Sócrates falasse do bem como ele falara da justiça da sophrosyné (<temperança). (Gadamer: 34).                   

Aí já se encontra o grego no campo da civilização do homem normal com o domínio de si, governo das afecções que produzem o homem perverso no campo político da antiguidade. Platão diz que o assassino político do modo de ser psíquico do falso perverso não deve participar da história política da polis ou do Estado obra de arte. (Platão. 2010: 240).

Schelling é claro na distinção entre civilização e barbárie:

“A força que antes se voltara na epopeia, totalmente para fora, e que se perdera numa identidade objetiva, voltou-se para dentro, começou a se limitar; com esse despertar da consciência e com o surgimento da diferenciação, nasceram os primeiros tons líricos, que logo se desenvolveram até a mais alta diversidade. O elemento rítmico dos Estados gregos, a clareza de consciência dos gregos, totalmente voltada para sim mesmos, para sua existência e seu agir, inflamou as paixões mais nobres que eram dignas da musa lírica. Na mesma época que a lírica, a música animava as festas e a vida pública. Em Homero ainda há, inclusive, sacrifícios e cultos divinos sem música. Da <642> identidade da epopeia homérica também faz parte o princípio heroico, o princípio da monarquia e da dominação”.

“Depois que a epopeia se desenvolveu totalmente até sua perfeição e acabamento, iniciou-se a poesia lírica, Com Calino e Arquelau; e, em comparação com a epopeia, a arte lírica é por isso, até sua última perfeição e acabamento com Píndaro, poesia totalmente republicana”. (Schelling: 273).

A forma de governo republicana não faz pendant com a tela do gosto poético lírico. A forma de governo republicana presidencialista não corresponde a um modo de ser psíquico lírico. Ela é a forma de governo do falso cínico nas Américas. Donald Trump vai desenvolver este fenômeno do falso perverso até a fratura total com a atualidade?

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Ao falar do homossexual ou do invertido, Freud aborda o prostituto como fenômeno do verdadeiro perverso. (Freud. v. 7: 145). No “História da sexualidade, v. 2, o uso dos prazeres”, Michel Foucault não destaca o prostituto:

‘Nos textos do Século XIX existe um perfil-tipo do homossexual ou do invertido: seus gestos, sua postura, a maneira pela qual ele se enfeita, seu coquetismo, como também a forma e as expressões de seu rosto, sua anatomia, a morfologia feminina de todo o seu corpo fazem, regularmente, parte dessa descrição desqualificadora; a qual se refere, ao mesmo tempo, ao tema de um inversão dos papéis sexuais e ao princípio de um estigma natural dessa ofensa à natureza; seria de acreditar-se, diziam, que a própria natureza se faz cumplice da mentira sexual’ [.... Ora, essa imagem, com a aura repulsiva que a envolve , percorreu séculos; ela já estava muito nitidamente delineada na literatura-greco-romana da época imperial. Encontra-se no perfil do Efeminatus traçado pelo autor de uma ‘Physiognomonis anônima do Século IV; na descrição dos padres de Atargatis , dos quais zomba Apuleu nas ‘Metamorfoses’; na simbolização que Dion de Prusa propõe do <daimon> da intemperança, numa de suas conferências sobre a monarquia; ‘na evocação fugaz dos pequenos retóricos todos perfumados e encaracolados que Epiteto interpela no fundo de sua sala e aos quais pergunta se são homens ou mulheres”. (Foucault. 1984. V. 2: 21).

Há relação dessas imagens do realmente perverso com a prática política?  o perverso não tinha o direito à uma práxis política? ele era excluído da vida do aparelho de Estado? O sujeito da antiguidade é aquele que tem o domínio de si, pois, a vida é um campo de guerra na alma e na polis-Estado, nas comunidades psíquicas de significante ou do indivíduo ou do Estado:

“E que esse antagonismo de si para consigo tenha que estruturar a atitude ética do indivíduo, no que diz respeito aos desejos e aos prazeres, é o que está claramente afirmado no início das ‘Leis’: a razão dada para que haja em cada Estado um comando e uma legislação é que, mesmo na paz, todos os Estados estão em guerra uns com os outros; do mesmo modo, é preciso entender que, se ‘na vida pública todo homem é para todo homem um inimigo’, na vida privada ‘cada um , face a si próprio, é um inimigo  de si mesmo’; e de todas as vitórias possíveis de serem obtidas, ‘a primeira e mais gloriosa’ é a que se consegue ‘sobre si mesmo’, ao passo que ‘o mais vergonhoso’ dos fracassos, ‘o mais desprezível’, ‘consiste em ser vencido por si mesmo’”. (Foucault. 1984. V. 2: 65).

Foucault faz um diálogo latente como Werner Jagger? Ele quer falar do grego de um modo que não seja o do idealismo alemão, glorificador do homem normal da antiguidade “ocidental”? Ele quer a subsunção da retórica de Jagger à um modo de ser psíquico que não seja o do retórico do cosmopolitismo alemão:

Jagger:

“Desde as primeiras notícias que temos deles, encontramos o homem no centro do seu pensamento. A forma humana dos seus deuses, o predomínio evidente do problema da forma humana na sua escultura e na sua pintura, o movimento consequente da filosofia desde o problema do cosmo até o problema do homem, que culmina em Sócrates, Platão e Aristóteles; a sua poesia, cujo tema inesgotável desde Homero até os últimos séculos é o homem  e seu duro destino no sentido pleno da palavra; e, finalmente, o Estado grego cuja essência só pode ser compreendida sob o ponto de vista da formação do homem e de sua vida inteira; tudo são raios de uma única e mesma luz, expressões de um sentimento vital antropocêntrico que não pode ser explicado nem derivado de nenhuma outra coisa e que penetra todas as formas do espírito grego. Assim, entre os povos, o grego é o antropoplástico”. (Jagger: 10).    

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A prática política virtual é constituída por uma plurivocidade de prática política específica:

“A mesma aprendizagem deve tornar capaz de virtude e de poder. Assegurar a direção de si mesmo, exercer a gestão da própria casa, participar do governo da cidade são três práticas do mesmo tipo”. (Foucault. 1984. V. 2: 71).

A prática política virtual:

“Recorre-se também ao modelo da vida cívica para definir a atitude de temperança. A assimilação dos desejos a um povo inferior que se agita e4 que sempre está procurando se revoltar se não se lhes mantém a rédea, é um tema conhecido em Platão.; entretanto, a estrita correlação entre indivíduo e cidade, que sustenta a reflexão da ‘República’, permite desenvolver inteiramente o modelo ‘cívico’ da temperança e de seu contrário. Nele a ética dos prazeres é da mesma ordem que a estrutura política:’. Se o indivíduo se assemelha à polis, não é uma necessidade que se passem nele as mesmas coisas’?; e o homem será intemperante quando fracassa a estrutura de poder, a arché que lhe permite vencer e, dominar (kratein) as potências inferiores ; então, ‘uma servidão e uma baixeza extrema tomarão sua alma; e as partes ‘mais honestas dessa alma cairão na escravidão e ‘uma minoria, formada pela parte pior e mais furiosa, nela comandará como senhora e maître. No final do penúltimo livro da ‘República’, após construir o modelo de cidade, Platão reconhece que o filósofo terá muito pouca oportunidade de encontrar nesse mundo Estados tão perfeitos e de neles exercer a sua atividade; entretanto, acrescenta ele, o ‘paradigma’ da polis se encontra no céu para quem quiser contemplá-lo; e o filósofo, olhando-o, poderá ‘dirigir seu governo particular’ (heauton katoikizein); Pouco importa que esse Estado esteja realizado em alguma parte ou que esteja ainda por se realizar: é desse Estado e de nenhum outro que ele seguirá as leis’. A virtude individual tem que se estruturar como uma polis”. (Foucault. 1984. V. 2: 67-68).

A práxis política do filósofo-rei é parte de uma prática política virtual totalitária? Karl Popper acha que sim (Popper: 1979. V. 1: cap. Le philosophe -Roi). Foucault considera que o filosofo-rei não é um fenômeno retórico da filosofia:

“De fato, nas ‘Leis’, a prescrição de casar na idade que convém (para os homens , entre vinte e vinte cinco anos), de fazer filhos nas melhores condições, e de não ter seja o homem ou a mulher- nenhuma relação com quem quer que seja a não ser com o cônjuge, todas essas injuções não assumem a forma de uma moral voluntária, mas de uma regulamentação coercitiva; é verdade que se sublinha várias vezes a dificuldade de legislar nessa matéria, ‘ e o interesse que haveria em que certas medidas tomam-se a forma de regulamento apenas se ocorressem desordens e se o maior numero não fosse mais capaz de temperança [...]. Uniões que, em respeito ás proporções proveitosas ao Estado, evitariam que os ricos se casassem com os ricos, meticulosas inspeções que viriam verificar que os jovens casais se preparem efetivamente à sua tarefa procriadora, a ordem, combinada com a punição, de só fecundar a esposa legítima, sem ter nenhuma outra relação sexual durante todo o período em que se está na idade de procriar, tudo isso, que é ligado às estrutura particulares da polis ideal, é bastante estranho a um estilo de temperança fundado na procura voluntária da moderação”. (Foucault. 1984b. V. 2: 185-186).

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É uma platitude que Nietzsche é o AntiPlatão. Se a civilização platônica é o modo de ser psíquico do homem normal e a barbárie a comunidade psíquica do significante do perverso grego, então, Nietzsche é do partido político dessa última:

“Facilmente se advinha onde situar o grande signo de interrogação para que ele incida sobre o valor da existência. Será o pessimismo necessariamente signo de declínio, de decadência, de falência dos instintos lassos e enfraquecidos, como foi no caso dos Hindus? Como está sendo, a julgar pelas aparências, no nosso caso, no caso dos homens modernos europeus? Ou haverá um pessimismo da força? Uma predileção intelectual pela aspereza, pelo horror, pela crueldade, pela incerteza da existência, predileção devida á saúde excelente, ao excesso de força vital, á excedência da vida? Tão excessiva plenitude não trará consigo um certo sofrimento? A visão mais penetrante não será por isso mesmo dotada de uma temeridade irresistível, que busca o terrível como quem busca o inimigo, que procura um adversário nobre contra o qual possa experimentar a sua força? Não pretenderá ela saber o que é o <pavor>? Que significa o mito trágico, precisamente entre os Gregos da época mais alta, mais forte, mais valorosa? E esse fenômeno prodigioso do espírito dionisíaco? Que significa a tragédia, filha dele? – Em compensação, aquilo que causou a morte da tragédia, o socratismo da moral, da dialética, da ponderação e da serenidade do homem, - sim, o socratismo – não poderá ser tomado justamente por um signo de decadência, de lassidão, de esgotamento, de anarquismo dissolvente dos instintos? A <serenidade helênica> dos últimos gregos, não teria sido um crepúsculo? O esforço epicurista contra o pessimismo, não seria apenas uma precaução do doente? A própria ciência, sim, a nossa ciência, encarada como sintoma de vida, que significa ela, afinal? Para quê, ou antes, de que nos vem toda a ciência? Pois quê? O espírito científico será mais do que receio a distração em frente do pessimismo? mais do que um expediente engenhoso contra – a verdade? Ou, para falar moralmente, uma análogo do medo e da hipocrisia? ou, para falar imoralmente, da astúcia? Ai, Sócrates, Sócrates: era então esse o teu segredo? O misterioso ironista: era essa talvez a tua ironia? (Nietzsche. 1982: 18-19; 1977: 11-12).      

De Nietzsche, o nacional socialista retirou um campo de ideologias para o combate, a stásis e a pólemos. Ora. Isso é tudo em Nietzche, a ideologia recobre todo o texto nietzschiano? Se esquece com muita facilidade e oportunismo a gramática de sentido do mais-gozar que diz ser a comunidade psíquica de significante do perverso verdadeiro o motor do campo político europeu - milenar.  

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Hegel descobriu/inventou um conceito de revolução moderna a partir da gramática de sentido do perverso verdadeiro <Revolução Francesa>:

“Conforme o primeiro lado, a independência só confere ao encontrado a forma da individualidade consciente em geral, e, que respeita o conteúdo, permanece no interior da efetividade universal encontrada. Mas, conforme o outro lado, a independência confere a essa efetividade a menos uma modificação peculiar, que não contradiz seu conteúdo essencial, ou seja, uma modificação pela qual o indivíduo, como efetividade especial e como conteúdo peculiar, se opõe àquela efetividade universal. Essa oposição vem a tornar-se crime quando o indivíduo suprassume essa efetividade de uma maneira apenas singular, ou vem a tornar-se um outro mundo – outro direito, outra lei e outros costumes, produzidos em lugar dos presentes – quando o indivíduo o faz de maneira universal e, portanto, para todos”. (Hegel1992:.194).

A transformação histórica no campo político efetivo e universal adquire duas vias. A primeira a mudança é crime político. A segunda é a revolução moderna. O que é o indivíduo: Na mudança criminosa política. o indivíduo é um modo de ser psíquico retórico/falso cínico. Donal Trump quer produzir uma mudança na estrutura do campo político americano? Ora será um crime político pois a mudança será a expressão do modo de ser psíquico retórico/falso cínico que ele é a sínteses do americanismo.

Lenin e Mao são uma alternativa lógica a de Trump. Eles são o verdadeiro perverso da lógica nietzschiana. Eles são a revolução nietzschiana da comunidade psíquica de significante/semblância verdadeiro perverso. Assim, Rússia e China se transformaram no mundo como teatro da revolução. Seria uma comédia?:

“22. A comédia é, como dissemos, imitação de homens inferires; não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cómica, que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor”. (Aristóteles. 1990:109).

A comédia pode expressar no rosto do ator a dor, a linguagem do sofrimento, a doença social e, ao mesmo tempo, o pessimismo da força; ela pode alcançar um modo de ser psíquico do verdadeiro perverso, na medida em que caia a máscara, isto é, a ideologia que oculta o cinismo verdadeiro antiretórico. A cultura em geral gira a partir do choque entre o cosmopolitismo retórico/cínico falso [do subcampo reacionário/radical] e a revolução cultural do perverso verdadeiro antiretórico - como manifestação da gramática de sentido do homem político portador da saúde social de uma nação.

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Para o grego clássico, o falar do futuro é um problema da estratégia fatal. Weber diz que a sociologia pode fazer a profecia racional o futuro. (Weber. 1968:316). Um programa da CNN Brasil convida cientistas sociais para falar do futuro das relações internacionais, dos povos, do Estado e da realidade econômica. Eles não leram a “História da sexualidade, v. 2, O cuidado de si”, de Foucault, nem o Interpretação de sonhos, De Freud.

Para o grego, o futuro é um enigma que necessita de decifração, seja com o Oráculo, seja com o sonho. O futuro aparece como um fenômeno da realidade a partir da analogia com a interpretação do sonho. Há um pressuposto saber de Artemidoro usado para decifrar o sonho. Daí surge a gramática de sentido tanto do sonho como do futuro da realidade. A gramática de sentido do ato sexual parte da do significante-semblância <penetração>:

“Ora, esse ato de penetração – coração e foco do sentido para o sonho, matéria-prima de interpretação e foco do sentido do sonho - é imediatamente percebido no interior de uma cenografia social. Artemidoro vê o ato sexual antes de mais nada como um jogo entre superioridade e inferioridade: a penetração coloca os dois parceiros numa relação de dominação e de submissão; ela é vitória de um lado e derrota de outro; para um dos parceiros ela é direito que se exerce, necessidade que é imposta ao outro; ela é status que se ostenta ou condição que se sofre; é vantagem da qual se lucra ou aceitação de uma situação cujos benefícios se deixa para outros. O que conduz aos outros”. (Foucault. 1985: 36-37; 1985:43).

Freud fala do sonho para os povos da antiguidade como a etapa pré-científica da ciência do sonho:   

“o ponto de vista pré-histórico dos sonhos, sem dúvida, ecoou na atitude adotada para com os sonhos pelos povos da antiguidade clássica. Aceitavam como axiomático que os sonhos estavam relacionados com o mundo dos seres super-humanos nos quais acreditavam e que constituíam revelações de deuses ou demônios. Não poderia haver dúvida, além disso, que, para aquele que   sonhava, os sonhos tinham uma finalidade importante, que era, via de regra, prever o futuro. A extraordinária variedade no conteúdo dos sonhos e na impressão que produziam dificultava, todavia, ter deles qualquer ponto de vista uniforme e tornava necessário classificá-los em numerosos grupos e subdivisões, de acordo com sua importância e seu grau de confiança. A posição adotada no tocante aos sonhos por filósofos isolados na antiguidade dependia, naturalmente, até certo ponto, da atitude dos mesmos em relação à adivinhação em geral”. (Freud. 1972. Parte 1: 2).

Freud vê uma psicologia quase científica na ciência do sonho de Aristóteles:

“Nas duas obras de Aristóteles que tratam dos sonhos, eles já foram objeto de estudo psicológico. Informa-nos as referidas obras que os sonhos não são enviados pelos deuses e não são de natureza divina, mas que são ‘demoníacos, visto que a natureza é ‘demoníaca’ e não divina. Os sonhos, vale dizer, não decorrerem de manifestações sobrenaturais, mas seguem as leis do espírito humano, embora este, é verdade, seja afim ao divino. Define-se os sonhos como atividade mental de quem dorme, até o ponto em que esteja adormecido”. (Freud. 1972. Parte 1: 2-3).

Em Aristóteles, há essa fratura com a gramática de sentido de futuro aberto no sonho antes das luzes da filosofia. Sendo obra do ESPÍRITO, o sonho é uma tela de imagens/objetos que não é sobre o futuro dos homens:

Antes da época de Aristóteles, os antigos consideravam os sonhos não como um produto da mente que sonhava, mas como algo introduzido por uma intervenção divina; e já as duas correntes antagônicas, que iremos encontrar influenciando opiniões da vida onírica em cada período da história, se faziam sentir. Traçou-se a distinção entre sonhos verdadeiros e valiosos, enviados ao indivíduo adormecido para adverti-lo ou predizer-lhe o futuro, e sonhos vãos, falazes e destituídos de valor, cuja finalidade era desorientá-lo ou destruí-lo”. (Freud. 1972. Parte 1: 3). 

Weber pôs a sociologia no lugar dos deuses na produção da gramática de sentido racional do futuro? Ora, os <sonhos vãos> são destituídos de gramática de sentido lógico, eles introduzem a anarquia no sonho como causa de sofrimento para o sonhador. A anarquia onírica já é um modo de ser psíquico do perverso no sonho que tem a ver com o mais-gozar extraído do sofrimento.    

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Sendo o sonho um objeto da psicanálise, Freud parte da relação da antiguidade com os artistas do Renascimento e do barroco inglês:

“’Parecia então, afinal de conta, que os sonhos não são a completa insensatez conforme o disseram autoridades como Chaucer, Shakespeare e Milton. As agregações caóticas de nossa fantasia noturna possuem um significado e transmitem novos conhecimentos. Como alguma carta cifrada, a inscrição onírica, quando examinada de perto, perde sua primeira aparência de disparate e assume o aspecto de uma mensagem séria e inteligível. Ou, para variar ligeiramente a figura, podemos dizer que como um palimpsesto, o sonho revela, sob os seus caracteres superficiais destituídos de valor, vestígios de uma comunicação antiga e precisa”. (Freud. 1972. Vol. 4: 145).

A comunicação antiga refere-se ao sonho como uma espécie de gramática de sentido:

“Tal ocorro conosco, agora que ultrapassamos a primeira interpretação de um sonho. Encontramo-nos em plena luz do dia de uma súbita descoberta. Não se deve assemelhar os sonhos aos sons desregulados que saem de um instrumento musical atingido pelo gole de alguma força externa em vez de sê-lo pela mão de quem sabe tocar (cf. pag. 82): não são destituídos de sentido, não são absurdos; não implicam que uma parcela da nossa reserva de ideias se ache adormecida, enquanto outra começa a despertar. Ao contrário, são fenômenos psíquicos de inteira validade – realizações de desejo; põem ser inseridos na cadeia de atos mentais inteligíveis da vigília; são produzidos por uma atividade da mente altamente complexa”. (Freud. 1972. V. 4: 131).

Há gramática de sentido no sonho; ela faz pendant com uma lógica do sonho muito complexa; A lógica do sonho é a realização de desejos. No entanto, há sonhos desagradáveis, de sofrimento psíquico que parecem refutar a hipótese de Freud. Ele sai da confusão falando do desejo na realidade latente ou na realidade manifesta. Estas parecem ser parte da lógica dialética materialista, pois o latente é a superfície reprofunda da essência e o manifesto a realidade da superfície superficial do aparecer do sonho como fenômeno. Assim, a lógica do sonho do sofrimento é da superfície reprofunda. Mas qual lógica? adianto uma hipótese já trabalhada em vários textos meus. A logica do sofrimento é a gramática de sentido do modo de ser psíquico do perverso. É a lógica do mais-gozar ou Mehrlust; é a realização de um desejo, porém, do excedente de desejo.

O excedente de desejo abre as comportas para a relação do desejo com a gramática de sentido da forma de governo tirânica. Esta forma produz o excedente de desejo para o sonhador, cria e recria a gramática de sentido   do mais-gozar na relação do sonho como tirania (proprietária exclusiva do sonho) e o sonhador. A relação com a realidade do campo político da sociedade/Estado consiste que a forma de governo tirânica implica que o indivíduo se submeta a ela como sendo o perverso verdadeiro.  Como mais-gozar, a gramática de sentido do sofrimento da tirania é aquilo que sustenta essa forma de governo despótica da atualidade.

Freud:

“O sonho dessa pobre sofredora se assemelha quase a uma representação concreta de uma frase que leva as pessoas a dizerem em situações desagradáveis: ‘Devo dizer que podia pensar em algo mais agradável do que isso’. O sonho proporciona um quadro dessa coisa mais agradável. O Herr Karl Meyer, ao qual aquela que sonha transplantou suas dores, foi o jovem mais indiferente de seu conhecimento de quem ela podia recordar-se”, (Freud. 1972. V. 4: 135).

A lógica da gramática de sentido pode transformar o desagradável em agradável, a imagem do feio em imagem do belo. Claro, que feio e belo são da tela de gosto do sonho, são uma questão de gosto. A multidão do falso cínico pode achar belo a imagem na tela técnica de Donald Trump, Bolsonaro e Milei. Pode extrair dessa imagem um mais-gozar ,uma realização de desejo excedente. O campo político é realização de desejo excedente pela multidão que sonha em uma tela de gosto técnica:

Esses exemplos talvez sejam suficientes para mostrar que os sonhos que somente podem ser compreendidos como realização de desejos e que trazem seu sentido em suas faces sem disfarce encontram-se sob as mais frequentes e variadas condições. Na sua maioria, são sonhos simples e curtos, que oferecem agradável contraste com as composições confusas e exuberantes que têm principalmente atraído a atenção das autoridades”. (Freud. 1972. V. 4: 136),

O sonho com disfarce é o sonho ideológica, ideologia de sonho que oculta o sonho como realização de desejos. Freud fala do sonho da criança como sonho puro sem ideologia.

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Ao princípio do mais-gozar corresponde o trabalho excedente do sonho; o trabalho necessário ideológico (mascaramento do prazer e do mais-gozar) começa na infância:

“Os sonhos de crianças de pouco idade são, amiúde, puras realizações de desejos e são, nesse caso, inteiramente desinteressantes em confronto com os sonhos de adultos. Não levantam problemas para serem solucionados, mas, por outro lado, são de inestimável importância no provar que, em sua natureza essencial, os sonhos representam realizações de desejos”. (Freud. 1972. V. 4: 136)

O campo de ideologias se instala no sonho para como gramática de sentido de ocultação do ´princípio de prazer ou, sobretudo, de mais-gozar:

“Mas até mesmo observadores descontentes têm insistido que a dor e o desprazer são mais comuns no sonho que o prazer”. (Freud. 1972. V. 4: 144).

O trabalho excedente produz a mais-valia pública do sonho: Mehrlust. É a superfície da gramática de sentido da forma de governo no sonho:

“Dificuldade semelhante se depara ao escritor político, que sem verdades desagradáveis a dizer aos que se acham nas posições de mando. Se ele as apresenta sem disfarces, as autoridades suprimirão suas palavras – depois de pronunciadas, se a sua comunicação for oral, mas de antemão, se ele pretendia imprimi-las. Um escritor tem que estar precavido contra a censura., e, por causa dela, deve suavizar e distorcer a expressão de sua opinião. De acordo com o vigor e a sensibilidade da censura, vê-se compelido a empregar alusões em vez de referências diretas, ou tem que ocultar seu pronunciamento objetável sob algum disfarce aparentemente inocente: por exemplo, poderá descrever uma contenda entre dois mandarins do Celeste Império, quando as pessoas que têm em mente são funcionários categorizados de seu próprio país. Quanto mais rigorosa a censura, de maior alcance será o disfarce e, também, mais engenhoso poderá ser o meio empregado para pôr o leitor no rastro do verdadeiro sentido”. (Freud. 1972. V. 4: 152).

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A filosofia em Roma provia com as gramáticas de sentido a prática social do cuidado de si em busca da felicidade e contra o sofrimento do corpo e da alma:

“Para os epicuristas, a ‘Carta a Meneceu’ dava acesso ao princípio de que a filosofia devia ser considerada como exercício permanente dos cuidados consigo. ‘Que ninguém, sendo jovem, tarde a filosofar, nem velho se canse da filosofia. Pois para ninguém é demasiado cedo nem demasiado tarde para assegurar a saúde da alma’. É esse tema epicurista de que convém ter cuidados consigo mesmo que Sêneca relata em uma de suas cartas: ’Do mesmo modo que um céu sereno não é suscetível de uma claridade ainda mais viva quando, de tanto ser varrido pelos ventos, reveste-se de um esplendor sem sombras, assim também o homem que vela por seu corpo e por sua alma (Hominis corpus aqnimumque curantis) para construir por meio de ambos a trama de sua felicidade, encontra-se num estado perfeito e no auge de seus desejos, do momento que sua alma está sem agitação e seu corpo sem sofrimento’”. (Foucault. 1985. V. 3: 51).

A gramática de sentido cuidados consigo é a luta permanente contra  a falsa perversão na vida pública:

“Mas que os filósofos recomendem cuidar-se de si não quer dizer que este zelo esteja reservado para aqueles que escolhem uma vida semelhante à deles; ou que uma tal atitude só seja indispensável durante o tempo que se passa junto a eles. É um princípio válido para todos, todo o tempo e durante toda a vida. Apuleu observa isso: pode-se, sem vergonha nem desonra, ignorar as regras que permitem pintar e tocar cítara; mas saber ‘aperfeiçoar a própria alma com a ajuda da razão ‘é uma regra ‘igualmente necessária para todos os homens’. (Foucault. 1985. V. 3: 53).

A “história de Foucault procura evitar a retórica falso cínica:

“Tem-se aí um dos pontos mais importantes dessa atividade consagrada a si mesmo: ela não constitui um exercício de solidão, mas sim uma verdadeira prática social. E isso, em vários sentidos. Na verdade, ela frequentemente tomou forma em estruturas mais ou menos institucionalizadas; assim as comunidades neopitagóricas ou ainda esses grupos epicuristas sobre as práticas dos quais tem-se algumas informações através de Filodemo: uma hierarquia reconhecida atribuía, àqueles que estavam mais avançados, a tarefa de dirigir os outros (quer individualmente, quer de modo mais coletivo); mas existiam também exercícios comuns que permitiam, nos cuidados que se tinha consigo, receber ajuda dos outros: a tarefa definida como to di’allelon sozesthai”. (Foucault. 1985: v. 3: 57).

A comunidade psíquica do significante do perverso é a estrutura de dominação romana, sendo o dinheiro fetiche:

“Tudo valia dinheiro. Os postos militares que garantiam a polícia dos c campos e ali preenchiam as funções administrativas faziam os povoados votarem -lhes gratificações (stephanos). Todo funcionário dava um jeito para lhe molharem a mão a fim de executar a menor tarefa; a necessidade de tosar os animais sem os esfolar muito levou à divisão equânime dos lucros; as propinas acabaram sendo  oficialmente tabeladas e o preço de cada etapa foi afixado nos escritórios. Os administradores tinham o cuidado de apesentar-se diante de um funcionário ou de um alto dignitário com um presente na mão; afinal tratava-se de reconhecer com um símbolo substancial a superioridade dos chefes sobre os comandados”. (Veyne: : 106-107).

O modo de ser psíquico do perverso romano é uma realidade irrevogável no aparelho de Estado:

“Exigir pagamentos ilegais constituía o grande negócio dos governadores  de província, que comprovam o silêncio dos inspetores imperiais. O poder central fazia vista grossa, bastava-lhe receber sua parte. Pilhar as províncias como governador era, diz Cícero, ‘o caminho senatorial de enriquecimento’; um caso fenomenal como o de Verres, que trouxe sua província da Sicília a rédea curta e estabeleceu ali um terror sangrento, é comparável ao gangsterismo de Estado de alguns presidentes da América Central”. (Veyne: 107).

O Estado mafioso feudal da atualidade nas Américas é comparável ao modo de ser psíquico romano quase mafioso. (Bandeira da Silveira. 2024: 418).       

 

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