José
Paulo Bandeira da Silveira
Em
junho de 2013, o Movimento Passe Livre em São Paulo se multiplicou por outras
capitais do país. Trata-se do primeiro ato das multidões da era digital
brasileira que abalou os fundamentos do poder político monopolizado pelos
partidos que se assemelham a figura do partido oligárquico de Michels.
As
multidões das redes digitais já estão além da relação moderna entre
representantes e representados e desenvolvem o antagonismo massas urbanas
versus poder político. Existe um ponto em comum entre os “indignados”
brasileiros e o 15-M espanhol. Eles são fruto de uma árvore frondosa: a crise
da democracia moderna em várias partes do mundo. Tal crise tem múltiplas faces.
O Estado-espião digital norte-americano legitima tal modelo político despótico para
os Estados capitalistas “desenvolvidos” abalando os fundamentos dos direitos
individuais. O Estado-espião já existe no Reino Unido, na França, na Alemanha, nos Países
Baixos, na Suécia e na Polônia, segundo os jornais europeus e a Eurocâmara. Nos
EUA, ele tem 56% de aprovação popular. Ele suspende na prática a quarta emenda
da constituição americana que protege os cidadãos das intromissões
injustificadas do governo em suas vidas privadas. O agenciamento estatal do
medo da população em relação ao terrorismo age sobre a interseção da biologia (gen
do medo oprl1) com a estrutura fóbica do inconsciente político dos cidadãos
norte-americanos. Trata-se de uma versão realista do biopoder que Bush instalou
no sistema político americano e Obama deu prosseguimento. É uma forma digital
da televigilância global que consiste em uma vigilância maciça sobre a
população através da espionagem da internet. Este Estado digital encontra-se em
um território só possível de ser lido através da combinação dos conhecimentos
da psicanálise (inconsciente político) com a biologia (gen oprl1). O Estado-espião
digital é de fato a transformação da política em um fenômeno pós-moderno. Trata-se
da emergência de uma formação política despótica nas sociedades democráticas
ocidentais. Antes de tal Estado-espião, os estudos sobre pós-modernidade
política ficavam restritos ao espaço virtual! Antes a frase ia além do
conteúdo; agora é o conteúdo que vai além da frase!
Outros
fenômenos configuram a crise da democracia. O primeiro é o islamismo que se
apoderou da Primavera Árabe abortando a revolução democrática em uma região
tradicionalmente enfestada por regimes despóticos. O projeto islâmico do
califado mundial não é uma simples paranoia ocidental. O segundo é a
putinização da política em vários continentes, que sacraliza a democracia como
forma perversa baseada nas ausências da separação dos poderes, da competição
política partidária, da liberdade de expressão, da garantia dos direitos
individuais. De um ponto de vista moderno, ela é o avesso do modelo democrático
de Montesquieu. Putin é a figura carismática do discurso do mestre (Lacan) que
funciona como ersatz da cultura política
autocrática russa. Um outro é o bolivarianismo na América Latina, que em certos
aspectos se assemelha a putinização da política, como é o caso da Lei da
Comunicação de Rafael Correa do Equador. Ele faz o significante democracia derivar
para uma radical experiência telúrica, como é o caso do Estado Plurinacional da
Bolívia. Na Venezuela, o discurso do mestre bolivariano deixou de funcionar com
a morte de Hugo Chaves, abrindo um período de crise política crônica. Um outro
fato é a ascensão do neonazismo, dos partidos filo-nazistas e do “populismo” na
Europa, que tem como significante político paradigmático a aventura despótica
do Estado populista-cristão de Viktor Orban na Hungria. Trata-se do primeiro
ensaio do discurso do mestre cristão pós-moderno na política mundial. Finalmente,
um outro fato é a reação política dos fundamentalismos católico e evangélico aos
movimentos de minorias que continuam a secularização da política por outros
meios no campo da moral e da vida privada.
O Caso Brasileiro
A
democracia contemporânea brasileira sofreu um primeiro golpe com FHC na década
de 1990. Movido pelo gozo do poder e uma ambição narcísica desmesurada, ele
provocou a mudança do dispositivo da Constituição de 1988 que estipulava quatro
anos de mandato para o presidente da República sem direito a reeleição. Ao estabelecer
a reeleição, FHC introduziu a possibilidade da retomada da cultura política
populista na forma pós-moderna. Nesta, o líder carismático ressurge como uma
figura política de um fenômeno que pode funcionar para perpetuar a dominação de
uma oligarquia política, que transforma a oposição em uma geleia política. Tal
fenômeno é o discurso do mestre. Este discurso restringe o funcionamento da
democracia ao inibir a competição política pelo poder executivo. O discurso do
mestre faz funcionar um poder político fundado em uma oligarquia política que
se apossa do poder central e que se perpetua através de uma ampla coligação de
partidos que domina o parlamento e o aparelho de Estado. Na forma pós-moderna
do mestre, o líder carismático é capaz de sustentar uma oligarquia política no
poder, transferindo seu carisma para um seguidor que tem como objetivo a
perpetuação no poder da fração política cimentada pelo discurso do mestre. Ele
é a tradução pós-moderna da hegemonia gramsciniana ao obter a direção
intelectual e moral da maioria da população e a “hegemonia” sobre as multidões
da cidade e do campo. O seguidor pode permanecer oito anos no governo ou, ao
encerrar o primeiro mandato, ser substituído pelo mestre. O movimento das multidões
urbanas em junho de 2013 é um contraponto à dominação do discurso do mestre na
política brasileira que abre um período de grande incerteza política.
O
discurso do mestre na política é capaz de mudar a natureza da República
Democrática. Ele é o motor do fechamento da tal República através do golpe de
Estado branco. Em 2013, uma série de atos buscam limitar espaço-temporalmente o
funcionamento da democracia brasileira. O primeiro é a tentativa da base aliada
parlamentar do governo de alterar a natureza do poder legislativo estabelecida
pela Constituição de 1988. A PEC 33
pretende restringir o poder do STF. Um outro ato em andamento é a PEC 37,
que pretende diminuir o poder do Ministério Público, transferindo funções dele,
como a da investigação de crimes políticos, para a polícia. Trata-se de uma
retomada do Estado bragantino do Império de Pedro II. Um ministro da Justiça do
governo Lula deixou escapar que se trata da refundação de uma espécie de Estado
absolutista. Um outro ato do golpe branco é a aprovação de uma lei que proíbe a
criação de novos partidos capazes de competir na eleição presidencial de 2014.
A lei visa impedir que Marina Silva crie um partido não-oligárquico que dê a
ela o suporte para a produção política de um novo tipo de poder “nacional”.
Como tática política, a oligarquia política dominante pretende cortar a cabeça
de Marina Silva para evitar um segundo turno eleitoral. Também assombra o
inconsciente político de tal oligarquia o fantasma da eleição de Fernando
Collor na primeira eleição presidencial para a República Democrática. Este se
elegeu através de uma partido de “aluguel”, o PRN. Collor foi a primeira
experiência despótica em plena República Democrática, derrubado por um
movimento espontâneo de massas urbanas em 1992. Na conjuntura política atual, a
legitimidade do partido é um dado necessário para qualquer candidatura
presidencial. Isto faz a criação de novos partidos entrar como um fenômeno
estratégico na competição política.
O
último ato do golpe branco é a tentativa da base parlamentar do governo de
fazer uma lei que codifique como terroristas as multidões urbanas da era
digital que ousarem tomar as ruas contra o poder estatal. Com esta lei, a
oligarquia política dominante liderada pelo PMDB revela o segredo da atual
conjuntura política: o fato do discurso do mestre começar a falhar com a perda
do controle das multidões nas grandes cidades pelos partidos oligárquicos. Trata-se
do fim de um período histórico que transforma a categoria de hegemonia em uma
peça de um museu de arte política moderna. Assim como no Sul da Europa, o
Brasil vê os partidos políticos modernos deixarem de ser aparelhos políticos
capazes de exercer uma hegemonia real sobre as multidões nas grandes cidades.
Em vários continentes, os “Indignados” são o signo político do fim da hegemonia
em um sentido moderno. Trata-se da
implosão real dos fenômenos políticos modernos. Ao lado do Estado-espia
digital, os “Indignados” apresentam um outro rumo para os povos. Agora, a globalização do capitalismo
corporativo mundial é acompanhada pela mundialização da pós-modernidade
política.
Como
totalidade, os atos políticos enumerados acima configuram um golpe de Estado
branco na República Democrática capaz de transformá-la em uma forma perversa de
democracia. Tal totalidade pode acabar funcionando como um laboratório para a
retomada de experiências despóticas na política brasileira. No cenário da
contrarrevolução conservadora dos fundamentalistas católicos e evangélicos e da
oligarquia rural do capitalismo de commodities,
a perversão política pode dar as cartas para o século XXI brasileiro. As
multidões urbanas da era digital aparecem como um contraponto a produção
política de tal poder despótico.
Na
Turquia, uma manifestação contra a destruição mercantilista de uma área verde de
Istambul foi alvo de uma violenta repressão policial. O choque da multidão com
o Estado foi o combustível do nascimento dos “indignados” turcos. Tal movimento
derivou para uma luta pela democracia em oposição ao “autoritarismo” crescente
do primeiro-ministro, que já governa o país há uma década e pretende governá-lo
por mais dez anos. Para isto, ele pretende alterar a forma do regime de
parlamentarista para presidencialista. Erdogan é a figura carismática do
discurso do mestre islâmico que, como Morsi, sonha em seu inconsciente político
com o califado mundial.
No
Brasil, o movimento começou contra o aumento dos transportes. A truculenta
repressão da polícia do PSDB paulista funcionou como um motor para a entrada no
cenário político dos “indignados” brasileiros. No dia 17 de junho, em São
Paulo, 65 mil pessoas marcharam pelas ruas sem serem incomodadas pela polícia do
PSDB, que, na semana anterior, havia prendido mais de duzentos manifestantes e
ferido centenas deles. No Rio de Janeiro, uma multidão de cem mil pessoas
ocupou o centro da cidade pacificamente. Uma manifestante de 65 anos de idade
declarou que sua luta era contra a implantação de uma ditadura legislativa. No
final do ato, desgarrado da multidão, um minúsculo grupo do lumpesinato
político carioca atacou o prédio da Assembleia Legislativa, provocando uma
violenta reação letal da polícia do PMDB. Em Brasília, os manifestantes
ocuparam a cobertura do Congresso Nacional produzindo um signo político claro: os
indignados brasileiros lutam contra o ensaio despótico da oligarquia política
que controla o parlamento brasileiro. No país todo, em uma única segunda-feira,
240000 pessoas ocuparam as ruas das principais capitais. Os “indignados” lutam
contra as forças políticas que pretendem transformar a República Democrática em
uma forma perversa de democracia.
Após
Rio e São Paulo revogarem as tarifas dos transportes, no dia 20 de junho, cem
mil pessoas festejaram em São Paulo a vitória sobre os governos estadual e
municipal. Já o Rio viu mais de um milhão de pessoas ocuparem a Avenida Presidente Vargas. O ato da multidão no Rio de Janeiro espelha o mal-estar com a cultura
do partidarismo (Weber): a dominação dos partidos. Em Brasília, oitenta mil
pessoas cercaram o Congresso Nacional em um ato aberto contra a dominação dos partidos
oligárquicos. Rio e Brasília geraram o significante político que inaugura uma
conjuntura modelada pela contradição entre as massas e o poder político, a qual
periodizará a política brasileira até a eleição presidencial de 2014.
No
fundo do cenário político, o inconsciente político das multidões estabelece um
contraponto aos movimentos fundamentalistas católicos e evangélicos que, em uma
provável associação com a oligarquia rural do capitalismo de commodities, desejam impor ao país uma
contrarrevolução conservadora. Tal fenômeno político se tornou visível pelos
ataques às minorias como os gays e os índios. Na América Latina, a
contrarrevolução conservadora arma um cenário para bloquear a luta das
minorias. Na Guatemala, a mais alta corte de justiça suspendeu a sentença
contra o general Rios Montt que na década de 1980, como presidente da
República, assassinou 1700 indígenas. Os empresários da Guatemala tiveram uma
forte influência nesta decisão judicial. No México, ela está pronta para
produzir um significante político assombroso. Peña Nieto lidera uma coalizão de
partidos para mudar a Constituição pondo um fim no secular Estado laico
mexicano. Peña Nieto se formou na universidade da Opus Dei.
O
futuro está sendo anunciado pela ação das elites políticas despóticas e pelo
movimento democrático das multidões. Também já é um sintoma político do espaço
escrito. No século XX, Lenin disse que a literatura de Tolstoi era o espelho da
revolução russa. No século XXI, a filosofia política de Slavoj Zizek não é o
espelho do despotismo pós-moderno?