NOVA
REPÚBLICA: O AVESSO DO REPUBLICANISMO
José Paulo Bandeira da Silveira
Oligarquia
Brasileira
Na
transição da ditadura militar para a Nova República, alguns fatos se destacam:
a Lei da Anistia, um pacto político entre o regime e a oposição oficial (no
essencial, ela perdoava os crimes políticos dos agentes do Estado); a
substituição do sistema bipartidário pelo multipartidário; o movimento urbano
Diretas Já, derrotado no Congresso; a eleição para presidência da República.
Nesta, a candidatura oposicionista de Tancredo Neves derrotou, no Colégio
Eleitoral do regime, Paulo Maluf, candidato oficioso. Para se eleger, Tancredo
fez uma aliança com a oligarquia nordestina representada por José Sarney —
homem do governo militar — como vice-presidente. Antes de assumir o governo,
Tancredo morreu e um pacto político pôs Sarney neste cargo. O regime militar já
havia governado tendo com base política a oligarquia. Celso
Furtado mostrou a articulação entre eles.
A
oligarquia tem uma longa história na formação política brasileira. A origem
dela está nos latifúndios sesmeiros e no trabalho escravo. Oliveira Vianna fez
a teoria dela como instituição política brasileira. Entre suas características
encontramos um extremado individualismo familiar e patriarcal. Tal característica
marcou profundamente a relação da esfera privada com a pública. Vianna afirma
que o espírito público torna-se ausente como tradição e cultura[i].
Gilberto
Freyre assinalou, também, o caráter privatista da “aristocracia rural”. Olhando
para a relação do latifúndio com a esfera pública local, esta existe como
extensão do poder despótico[ii]
que caracteriza aquele articulado pela relação senhor/escravo[iii].
Todavia,
a relação entre o privado e o público não se reduz a um problema de cultura
política – costumes, hábitos e práticas de um determinado grupo social -,
interferindo, aí, a lógica do significante político oligarquia como privatização da esfera pública. Este perdura na
formação política brasileira para além da cultura política oligárquica,
articulando, na atualidade, a relação entre a sociedade e a política. Pela
lógica do significante oligarquia, o
privatismo é inscrito, como estrutura simbólica, na subjetividade da população.
De
origem local, os grupos políticos tratam a esfera pública como espaço de
apropriação privada da riqueza estatal. Ao definir regras frouxas para a
constituição de municípios, a Constituição de 88 abriu as portas para a
privatização da esfera pública a partir de baixo. Nesta dimensão, a política é
vivida como um meio de aquisição de riqueza pessoal, familiar. “(...) a vida
pública é menos serviço público do
que meio de vida privada (...)”[iv].
Na Antiguidade grega, Aristóteles caracteriza o governo “legítimo” como um espaço
proibitivo para a aquisição de riqueza pessoal ou de grupo. O próprio regime
oligárquico — como governo dos ricos, na sua forma aristocrática — pode ser
considerado legítimo se obedecer à lógica do bem comum[v].
Em
uma hipótese geral, Vianna atribui à América Latina uma estrutura de dominação
que ele designa como regime de clã. Esta estrutura de poder ilegítima faz da
política um prolongamento do interesse privado — ou de indivíduo, ou de família
ou de clã[vi].
Neste sentido, lógicas particularistas penetram na esfera pública. Mas estas
não se limitam à política oligárquica.
Max
Weber tratou da invasão da esfera pública por lógicas particularistas. Os
partidos modernos são instrumentos que submetem o interesse geral a lógicas
particularistas do interesse individual e do interesse do aparelho político. Um
partido é visto pelos seus agentes como um modo de obter vantagens pessoais,
prebendas e cargos[vii].
Excetuando partidos ideológicos puros, os partidos de patronagem de cargos são
um meio de privatização da esfera pública ao submeter esta à lógica dos
interesses privados de seus membros. O regime de clã ou oligárquico e o
partidarismo[viii]
são duas estruturas de dominação que fazem da esfera pública um espaço político
para o desenvolvimento de lógicas particularistas. Deste modo, o Estado não é o
lugar do universal, tal como formulado por Hegel[ix].
No sentido aristotélico, trata-se de duas formas ilegítimas de poder.
No
Brasil contemporâneo, o regime oligárquico e o partido moderno organizam a
atividade política e as relações do mundo privado com a esfera pública. Em
determinadas regiões, as oligarquias organizam a vida política ao lado dos
partidos modernos. A existência dos partidos modernos no país ocorreu na
democracia populista de 1945-64. Tal experiência seria retomada, em escala
nacional, na Nova República. Na República Velha de 1889-1930, os partidos são
organizações oligárquicas[x]
que configuram uma estrutura política de dominação nacional. O Estado da
República Velha é o comitê da oligarquia[xi].
Trata-se de uma forma ilegítima de poder que submeteu o Estado à lógica de
interesses particularistas.[xii]
Manoel Bonfim caracterizou a República Velha como uma política de bandos
oligárquicos pilotados por um familismo colonial.[xiii]
Eles possuíam uma subjetividade agenciada por pulsões sociais particularistas e
privatistas, uma marca da formação política brasileira, que submete o interesse
público ao interesse privado “(...) O brasileiro é, politicamente, o homem
individualista e privatista, arrastado pela libido
dominandi e conduzindo-se na vida pública sem outro objetivo senão a
satisfação desta libido (...)”[xiv].
A repetição persistente deste Brasil antigo surge como um dos principais
problemas na corrosão da democracia atual. Os bandos oligárquicos continuam
presentes na política atual ao lado de bandos patrimonialistas e de bandos
capitalistas na apropriação da riqueza pública.
A
revolução de 30 é a primeira ruptura mais séria com a cultura política
privatista. A política de Vargas joga o país na era moderna, mas não rompe com
a lógica do significante político “oligarquia”. Esta reaparece na organização
da política democrática de 1945-64, durante o regime militar e, de um modo
complementar á política moderna, na Nova República. O governo Sarney é a
repetição deste Brasil antigo associado a formas modernas de política nacional.
O
governo Sarney inaugura a Nova República como uma configuração de duas formas
de poder: a antiga e a moderna; as formas partidárias são o instrumento delas.
Neste período, os partidos de esquerda aparecem como críticos do “modelo
político” implantado. Eles funcionam como partidos ideológicos — que são,
sobretudo, representantes de ideologias, pretendendo, portanto, a realização de
ideais de conteúdo político[xv]
— em contraponto aos partidos dominantes, ou seja, aos partidos de patronagem e
aos oligárquicos. Todavia, a esquerda está sozinha na sua crítica às práticas
antirrepublicanas das elites que governam o país. Neste período, a Procuradoria
Geral da República está adormecida e os instrumentos policiais de controle da
conduta dos agentes governamentais e estatais ainda não funcionam. Por outro
lado, a imprensa ainda não atuava como instrumento de investigação da corrupção
dos agentes políticos e estatais. Neste sentido, o governo Sarney foi o paraíso
artificial da elite política.
No
governo Sarney, o partidarismo
governa as engrenagens do Estado, e as cúpulas controlam a vida dos grandes
partidos. Estes ainda não apresentam aquela face moderna da política que é a
burocratização progressiva do aparelho partidário. Talvez a única exceção seja
o Partido dos Trabalhadores (PT), que funciona como um partido ideológico. Há
um contraponto entre a privatização do Estado promovida pelo PMDB — partido
dominante no governo − e a ética republicana do PT, que elabora a necessidade
de um modo de fazer política baseado numa clara distinção entre a vida privada
e a vida pública dos agentes políticos: indivíduos e aparelhos partidários. Ao
lado dos pequenos partidos de esquerda, o PT representa uma ruptura com a
cultura política privatista e a estrutura simbólica brasileira. Neste sentido,
um novo republicanismo parece inscrever na cena política uma promessa para a
Nova República. Neste momento, havia dois modelos políticos em pauta: um real e
outro virtual.
A
burocratização do Estado e do direito vê, em geral, a possibilidade de uma
rigorosa distinção significante entre o público e o privado. No Brasil do
governo Sarney, o partidarismo é um golpe contra tal fenômeno. Por outro lado,
uma herança do regime militar, o capitalismo de Estado é visto como um
verdadeiro banquete para a libido privatista dos grupos políticos que controlam
o Estado. Na ditadura militar, o capitalismo de Estado foi uma fonte de cargos
e prebendas para o regime obter o apoio das oligarquias. Na Nova República, ele
será o espaço para a expansão de um partido de patronagem de cargos: o PMDB.
Neste caso, o objetivo dele consiste em colocar, mediante eleições, seus chefes
na posição de dirigentes, para, em seguida, ocupar os cargos estatais com os
grupos políticos que organizam a vida partidária. Viver da política é o
objetivo da maioria dos partidos brasileiros na Nova República. Isto significa
que a camada politicamente dominante costuma aproveitar sua posição de senhor
em favor dos seus interesses econômicos privados[xvi].
Além disto, o recrutamento plutocrático das camadas políticas não redunda em
viver para a política no sentido de não fazer dela um modo de aquisição de
riqueza pessoal, familiar e empresarial. Ao contrário, os grupos plutocráticos
da política brasileira existem como bandos capitalistas que buscam modos de se
apropriar da riqueza pública. Por exemplo, as empresas capitalistas usam de
vários artifícios legais, ao contratarem obras e serviços do Estado, para
acumular capital em uma verdadeira exploração privada da esfera estatal.
No
governo Sarney, a Nova República inaugura a dominação dos partidos sem a
burocratização dos grandes partidos. Eles exercem a dominação política, mas não
sob a liderança de especialistas profissionais na tática organizacional[xvii].
Há especialistas que organizam a tática eleitoral, mas como um serviço
capitalista; eles são de fora dos partidos. De fato, os partidos são dominados
por bandos políticos que se especializam na construção de carreiras políticas —
e, também, no controle do aparelho partidário — a partir da consolidação de
“clientelas” eleitorais. Para os partidos oligárquicos é mais fácil a produção
das clientelas eleitorais. Este modelo político foi colocado abaixo no governo
Collor.
Príncipe
Eletrônico[xviii]
Em
1989, Collor (PRN) e Lula (PT) disputam o segundo turno da primeira eleição
direta para a presidência da República. Na sua grande maioria, a burguesia
apoiou Collor, e Lula surge como um líder político de origem operária. Esta
eleição torna-se o sintoma político da contradição burguesia-proletariado.
Trata-se da luta de classes na política Neste momento, o PT ainda existe como
um partido basicamente ideológico. Com o apoio da grande imprensa e do sistema
de comunicação eletrônico, Collor derrota Lula, por uma pequena margem de
votos, obtendo cerca de 35 milhões de votos. Tal fato já representa o
reconhecimento de Collor como um líder carismático na era do Príncipe
Eletrônico.
Este
é uma estrutura de dominação política cuja hegemonia política é realizada
através do sistema de comunicação eletrônico. Na eleição, A figura de Collor é
construída, eletronicamente, como um herói em luta contra o status quo representado por Sarney, como
encarnação do modelo político vigente, corroído em sua legitimidade pela
hiperinflação. Apoiado por um pequeno partido (PRN) e sendo governador de um
pequeno estado nordestino (Alagoas), obtém o apoio da burguesia sem necessitar
fazer alianças com os grandes partidos burgueses. Também descarta o apoio de
partidos oligárquicos. Sintoma do Príncipe Eletrônico é o apoio decisivo que
Collor recebe de Roberto Marinho, proprietário do canal de televisão mais
influente no país: a TV Globo.
Collor
é o primeiro ensaio de um governo carismático de hegemonia eletrônica que
dispensa o partidarismo como apoio à estrutura de dominação. Baseado na crença
de seu carisma, ele se atribui a missão de retirar o país da situação
econômica, que o governo Sarney herdou do regime militar, assolada pela
hiperinflação. No governo Collor, o Príncipe Eletrônico parece suspender os
mecanismos que asseguravam a hegemonia política do bloco no poder — formado
pela grande burguesia — sobre o conjunto das classes e outras partes da
população. A hegemonia do capital internacional se irradia através de uma rede
virtual que tem como pólos dominantes o governo e a mídia eletrônica. O apoio
do capital internacional à Collor fica claro na atitude benevolente dele em
relação à dívida externa do país.
O
governo Collor acena com uma modernização intempestiva da economia e do Estado Para
controlar a hiperinflação, ele confisca a poupança e quebra contratos. Todavia,
a modernização do Estado se reduz à demissão em massa de funcionários públicos.
Já a modernização da economia se realiza através da privatização das estatais,
da desregulamentação e da “abertura dos portos” ao capital internacional. Neste
sentido, Collor se choca com a burguesia local, a burguesia estatal e com a
indústria automobilística ao desmanchar o protecionismo das reservas de
mercado. A política de Collor atingiu os sindicatos seja na demissão dos
funcionários públicos, seja no ataque à política de emprego mantida através das
reservas de mercado. A política de Collor tem como objetivo estabelecer a
soberania do consumidor, sendo este, no plano econômico, o súdito de fato do
Príncipe Eletrônico.
Como
senhor carismático, Collor realiza uma dominação em ruptura com o antigo
regime, representado pelo governo Sarney. Como signo desta, ele extingue o SNI,
o serviço de espionagem da ditadura militar mantido por Sarney. O poder do
carisma se afirma em ruptura com a norma política, na convicção emocional da
importância e do valor de uma manifestação política, no heroísmo de um governo
que rompe com o partidarismo, a estrutura de dominação partidária implantada
pelo PMDB no governo Sarney. Contudo, o governo possuía uma parte invisível
para a opinião pública.
No
lado escuro da vida pública, Collor é o herdeiro da política oligárquica
nordestina que vê na esfera pública um espaço privado de aquisição de riqueza
individual, familiar e clânica. Com um bando político chefiado pelo amigo e
parceiro PC Farias, o governo Collor substituiu os partidos na apropriação
privada da riqueza estatal. Das empresas que possuíam serviços e obras com o
Estado, o bando político chega a cobrar taxas de 30% para a realização dos
contratos. Trata-se da formação de uma Societas
Sceleris governamental[xix].
Ao se tornar pública, esta superfície da política desencadeou uma reação
legislativa com a CPI do PC e uma ação da sociedade com o movimento de massas
“Fora Collor”. Nesta nova situação política, o Príncipe Eletrônico desabou como
um castelo de cartas. A aliança de Lula e Roberto Marinho[xx]
contra Collor é o sinal mais claro do fim desta dominação política que foi
desmanchada pela imprensa de papel através dos semanários Veja e Isto É e de
jornais diários: Jornal do Brasil, País e Correio da Manhã. O processo político culminou com o impeachment de Collor e a posse no
governo do vice Itamar Franco.
Tendo
como ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, o governo Itamar Franco
controlou a inflação e lançou FHC como candidato à presidência da República em
uma campanha que derrotou Lula e o PT. O governo FHC daria continuidade ao
liberalismo econômico de Collor através da retomada do partidarismo como
mecanismo de dominação política. No lugar do PMDB, o PSDB e o PFL pilotavam
agora a hegemonia do bloco no poder na cena política. Trata-se de um retorno às
formas de apropriação privada da riqueza estatal impulsionado por partidos de
patronagem e por partidos oligárquicos. FHC reuniu o antigo e o moderno em uma
estrutura de dominação que abalou as bases da tradicional política brasileira.
Seguindo sua trajetória intelectual, ele fez do ecletismo a fórmula política de
ruptura com o passado. Neste sentido, ele continua o governo Collor.
Discurso
do Capitalista[xxi]
Continuando
o liberalismo econômico de Collor, FHC faz do discurso do capitalista a base de
uma estrutura de dominação do bloco no poder. Trata-se de um fenômeno que
distingui uma ruptura com a formação política brasileira. O discurso do
capitalista agencia o Estado capitalista e o capitalismo moderno na vida
política do país.
Raymundo
Faoro[xxii]
estuda o Estado patrimonialista nos períodos colonial e imperial. Trata-se de
uma formação política que cria obstáculos à existência do capitalismo moderno
no Brasil. Portanto, a formação do Estado moderno foi um passo importante na
constituição do capitalismo brasileiro. Fazendo uma revisão da bibliografia
sobre a economia brasileira, Oliveira Vianna[xxiii]
observou, com certa perplexidade, a natureza pré-capitalista da economia
brasileira, inclusive no período de existência da economia industrial. Na
concepção weberiana, trata-se de um capitalismo irracional. São, portanto, dois
aspectos da moderna formação social brasileira. O primeiro é a ruptura com o
Estado patrimonialista; o segundo é a emergência do capitalismo moderno.
Trata-se de indagar o que isto significa em termos de republicanismo, ou seja,
do significado disto como construção de esfera pública e da relação desta com o
mundo privado.
O
Estado patrimonialista não opera com a separação entre o particular e o
universal, entre o privado e o público. Mesmo nos modernos Estados
patrimonialista europeus, há a permanência da invasão da esfera estatal pela
esfera privada. Weber vê a formação do Estado patrimonialista como organização
do poder político a partir do modelo do poder doméstico: “Quando o príncipe
organiza, em princípio, seu poder político, isto é, sua dominação não
doméstica, com o emprego da coação física contra os dominados, sobre
territórios e pessoas extrapatrimonias (os súditos políticos), da mesma forma
que o exercício de seu poder doméstico, falamos de uma formação estatal-patrimonial. A maioria de todos
os grandes impérios continentais apresentou, até o início da época Moderna e
ainda dentro desta época, um caráter fortemente patrimonial”[xxiv].
Séculos
de Estado patrimonialista no Brasil gerou, nas elites, uma cultura urbana de
apropriação privada da esfera pública, uma cultura política patrimonialista.
Tal cultura se desdobra na lógica do significante patrimonialista no espaço político da atualidade. Entretanto a
partir da Revolução de 30, Vargas introduziu elementos de uma política moderna
com a burocratização do Estado. Mas na sociedade civil, o capitalismo continua
irracional, lógica fortificada pela criação do capitalismo de estado. Sobre o
período de afirmação do Estado capitalista, por um lado, Octavio Ianni mostrou
o vínculo entre o grande capital e a ditadura militar[xxv];
por outro lado, Luciano Martins escreveu sobre a natureza capitalista do
Estado: “(...) o modo de expansão do Estado no período pós-64 se fez acompanhar
justamente da introjeção do ethos
capitalista pela burocracia estatal, e não apenas pelo segmento desta que
controla as empresas do estado com inserção na produção. A expressão Estado capitalista deve ser entendida,
assim, num duplo sentido: a de um Estado garante da ordem social capitalista e
a de um Estado cujo aparelho se expande com (e através de) práticas
capitalistas”[xxvi].
Trata-se da expansão da dominação racional-burocrática e da formação de um
bloco no poder sob a hegemonia do capitalismo internacional. Todavia, como isto
mexeu com a relação entre o particular e o universal, entre o privado e o
público? E como alterou a natureza irracional do capitalismo brasileiro?
Em
função da acumulação capitalista, o Estado põe o problema da hegemonia, tal
como foi formulado por Gramsci. Trata-se da hegemonia em um sentido universal.
Em Marx, o Estado está sob o domínio de uma classe, ele obedece a uma lógica
particular. Em Gramsci, a hegemonia obedece à lógica do modo de produção[xxvii].
Todavia, esta hegemonia é um processo histórico construído por sujeitos sociais
e políticos.
Com
FHC, a hegemonia obedece à lógica do discurso do capitalista como forma
institucional de poder. Trata-se de uma ruptura com o Estado capitalista da
ditadura militar e do governo Sarney, ambos agenciados por uma burguesia de
Estado. Esta está no centro da articulação do público com o privado, com a
ocupação privada das empresas estatais: pela oligarquia na ditadura militar, e
pelos partidos oligárquicos e de patronagem no governo Sarney. Além disto, as
presenças da burguesia de Estado e dos mecanismos protecionistas ao capitalismo
privado configuram um capitalismo irracional: seja no regime militar, seja no
governo Sarney.
No
governo FHC, forma-se um bloco no poder (capital financeiro, capital
industrial, capital agrário), com a exclusão do capital estatal, que obedece à
lógica do capitalismo privado. As privatizações das estatais parecem modificar
o modo de articulação da política com a sociedade e da esfera pública com a
esfera privada. A redução significativa da burguesia de Estado diminui a
presença dos partidos na esfera pública. Além disto, assiste-se à implantação
de uma estrutura racional-burocrática nas relações de produção que se faz
acompanhar de um ensaio, ainda incipiente, de uma nova racionalização do
aparelho estatal. Todavia, as privatizações da era FHC aparecem sob a suspeita
de uma corrupção patrocinada por bandos urbanos patrimonialistas, do sudeste,
encastelados no governo. Assim como com o partidarismo, os partidos
oligárquicos e de patronagem se apoderam de cargos estatais, reproduzindo a tradicional
apropriação privada da riqueza pública.
Contudo,
a era FHC deu, por um lado, um passo importante na construção da hegemonia
gramsciniana de um ângulo governamental.
Por outro lado, esta hegemonia é obra do aparelho de hegemonia privado.
No Brasil, o aparato privado central desta hegemonia é constituído por um
sistema de comunicação eletrônico. Ele
reproduz na esfera das ideologias, socialmente, o modo capitalista de produção.
Todavia, não se deve subestimar o papel do Estado na reprodução ideológica do
sistema capitalista. Pois tradicionalmente no Brasil, o Estado tem um
importante papel no modo de articulação entre o mundo privado e o mundo
público, entre as classes e a política, entre as lógicas particularistas e a
esfera pública. Em um sentido universal, a hegemonia - do bloco no poder sobre
as classes populares e outras partes da população - depende da ação estatal, ao
lado dos aparelhos privados de hegemonia.
Na
era FHC, um novo modelo político é constituído segundo a lógica do discurso do
capitalista. Ele substitui o modelo
político brasileiro: da ditadura militar ao governo Sarney. Se no modelo
brasileiro tradicional, o capitalismo internacional compartilha a hegemonia com
a burguesia local e com a burguesia estatal, em um modo de acumulação
irracional da economia; no modelo FHC, esta hegemonia passa para as mãos das
burguesias privadas: financeira, industrial, agronegócio. Nesta hegemonia, o
discurso do capitalista passa a determinar o modo de articulação entre o
público e o privado e o modo de funcionamento da acumulação capitalista no
Brasil. Neste sentido, o Estado capitalista e o capitalismo moderno passam a
disputar o lugar central da hegemonia na formação política brasileira.
Discurso
do Mestre[xxviii]
Florestan
Fernandes foi deputado pelo PT. Professor da USP, ele deixou uma obra
importante para o estudo do país. Para ele, a revolução burguesa produziu uma
forma estrutural de dominação: a autocracia burguesa[xxix].
Tal domínio político configurava um pacto elitista contra a população, colocando-a
na posição de escravo político: “(...) Os estratos estratégicos das classes
burguesas e suas elites voltam-se para o pacto
social, que no Brasil sempre significou manter uma sólida dominação de
classe burguesa e uma invulnerável subalternização das massas anômicas, das
classes trabalhadoras e da pequena burguesia como as duas faces de uma mesma
moeda (...)”[xxx].
A
Nova República modificou este quadro substituindo a autocracia burguesa por
outras formas de dominação política. Mas somente com o governo Lula é
constituída uma experiência antípoda à autocracia burguesa. Trata-se do bloco
histórico[xxxi]uma
ampla aliança do bloco no poder (capital industrial, capital bancário, capital
estatal, agronegócio) com as classes dominadas e partes indefinidas da
população. O bloco histórico faz da política um espaço ampliado de hegemonia
burguesa permitindo às classes populares agirem como sujeitos sociais. Nesta
nova situação política, a classe operária torna-se classe apoio[xxxii]
da fração industrial do bloco no poder. Mas o bloco histórico funciona através
de uma combinação concreta de estruturas de dominação políticas.
Na
cena política, o PT torna-se o partido dominante. Ao ocupar tal posição de
senhor no campo partidário, ele se modificou. De partido ideológico, ele se
transforma em partido de patronagem de cargos: “(...) Neste caso, seu objetivo
consiste simplesmente em colocar, mediante as eleições, seu chefe na posição
dirigente, para em seguida, ocupar os cargos estatais com seu séqüito (...)”[xxxiii].
De fato com o governo Lula, o PT passa a ser a fusão de partido ideológico com
partido de patronagem: “(...) Todas as lutas entre partidos não são apenas por
fins objetivos, mas também, e, sobretudo, lutas pela patronagem dos cargos
(...)”[xxxiv].
Tal fenômeno altera a cena política uma vez que desaparece um modelo político
virtual — o republicanismo de esquerda — como alternativa ao modelo tradicional
e ao modelo capitalista de FHC. Mas o
que faz funcionar o partido? Esta questão será retomada em seguida.
Na
era Lula, a articulação entre o espaço privado e a esfera pública é
radicalmente alterada por vários fenômenos. O PT torna-se um partido de
patronagem abandonando o republicanismo de esquerda, como já foi mencionado. O
partidarismo inscreve práticas oligárquicas e patrimonialistas, em larga
escala, com o PAC (Programa de Aceleração de Crescimento). O Estado passa a
determinar, novamente, a articulação do privado com o público com a modificação
do bloco no poder. Neste, uma nova burguesia de Estado em aliança com a fração
industrial reincide em um capitalismo irracional e em uma forma distorcida de
modelo econômico capitalista. A reestruturação do capitalismo de Estado cabe ao
BNDES que passa a financiar empresas privadas e a compartilhar com empresários
a propriedade de suas empresas.
Outro
fenômeno foi decisivo na articulação do público com o privado. O PT tem “um
chefe de partido”, um líder carismático, que funciona na forma do mestre[xxxv].
O discurso do mestre faz funcionar o partido e o poder político na era Lula.
O
mestre na política é uma posição de senhor que se caracteriza pela posse de um savoir-faire. Mas ele vai além. O mestre
faz parte de uma estrutura de dominação agenciada por um poder despótico[xxxvi].
Esta forma de poder é alterada ao longo da história. Hegel acreditava que a
história universal apresentava-se como interação entre mestria e servidão: a
“dialética” histórica é a “dialética” do mestre e do escravo[xxxvii].
Weber traduziu esta estrutura para o plano político moderno: “(...) Acima do
Parlamento encontra-se, portanto, o ditador, de fato, plebiscitário, que
mobiliza as massas em seu favor mediante a “máquina” e para quem os
parlamentares são apenas prebendados políticos que fazem parte de seu séqüito
(...)”[xxxviii].
É a reprodução política da posição de senhor (mestre) e da posição de escravo
(séquito). O escravo trabalha, politicamente, a serviço do senhor. Em tal
situação, o desejo de reconhecimento universal da dominação do mestre provocou
uma alteração profunda no espaço político brasileiro, ao lado de outros
fenômenos.
Marx
deixou um texto excepcional sobre a França do século XIX: O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Trata-se do bonapartismo como
funcionamento do discurso do mestre na política francesa. Um aspecto crucial
dele é a existência de uma formação política: o lumpesinato político. Na era
Lula, este fenômeno aparece na política brasileira em função do discurso do
mestre. Trata-se do financiamento ilegal de políticos e partidos, pilotado pelo
PT, em função do partidarismo. Tal fato foi designado pelo nome de “mensalão”.
Além do discurso do mestre, outros fenômenos contribuem para a eclosão e a
expansão do lumpesinato político. No governo do Distrito Federal de José
Roberto Arruda, o mensalão do DEM (ex-PFL) é o sinal da expansão política dele,
fazendo da esfera pública um espaço de aquisição ilegal de riqueza pública.
Neste caso, o fenômeno é produzido pelo significante oligarquia.
O
caso da Delta é outro fato que aponta para uma difusão do lumpesinato político em
vários níveis da federação, como forma econômica. A Delta é uma empresa privada
que foi contratada pelo governo federal para fazer obras do PAC, mas também por
governos estaduais e municipais. Associada ao bicheiro Carlos Cachoeira, a
Delta passou a fazer parte de uma rede lumpesinal de corrupção e de tráfico de
influência de agentes políticos e estatais em governos: federal, estadual e
municipal, aparelhos de estado e empresas. Trata-se da intervenção das lógicas
patrimonialista e oligárquica na esfera pública brasileira. Todavia estes casos
parecem indicar a ponta do iceberg na presença do lumpesinato na vida pública.
Como expropriação empresarial da riqueza pública, a lógica do significante
político capitalismo inaugura a
produção ampliada de um lumpesinato empresarial — forma econômica do
lumpesinato político - que parece florescer em torno de obras e serviços
estatais nos vários planos da federação e, talvez, nas ramificações do
entrelaçamento do capital privado com o capitalismo de Estado. Na totalidade,
os eventos enumerados acima delineiam a formação de um rizoma lumpesinal.
Um
último fenômeno deve ser mencionado. Trata-se da expansão do lumpesinato
político a partir de baixo como efeito na sociedade local da política
oligárquica. É a difusão lumpesinal no plano municipal. Outros fatores
concorrem para tal fenômeno que dizem respeito à relação entre povo e
republicanismo, ou melhor, a quase ausência deste em largas parcelas da
população. Todavia, a emergência da “classe” C – emergência de uma classe média
do seio da população - na política brasileira põe novos problemas para o
entendimento dela. Tradicionalmente, a classe média é mais susceptível ao
republicanismo. Por um lado, a inclusão de milhões de eleitores no espaço
político como classe média pode ser um ponto social de força para uma reação ao
lumpesinato político. Por outro lado, as forças republicanas nos partidos, na
imprensa, no sistema de comunicação eletrônico, na internet, no Estado e na
sociedade podem tornar visíveis a lógica e a ação do lumpesinato político
iniciando uma luta contra ele nos espaços cultural e político Mas tudo isto já
está além do discurso do mestre que deixou de funcionar como estrutura de
dominação no governo Dilma Rousseff.
[i] VIANNA,
Oliveira. Instituições políticas
brasileiras. V I. Niterói. EDUF. 1987:
108.
[ii] ARISTÓTOLES.
Obras. Política. Madrid. Aguilar.
1982: 682
[iv] VIANNA. Ibid. V. II: 132.
[vi] VIANNA. Ibid.
V I: 142, 145.
[vii] WEBER. Economia e Sociedade. V. I. Brasília.
Editora Universidade de Brasília. 1999: v. I. 188; v. II: 546-547,550-551.
[viii] WEBER. Ibid.
V. I: 190, 193; V. II: 210.
[x] VIANNA. Ibid. V.
I: 158.
[xi] VIANNA. Ibid.
V.II 136-137,152.
[xiii] BOMFIM.
Manoel. O Brasil Nação. Realidade da
Soberania Brasileira. RJ: Topboooks. 1996: 502,509,532-533.
[xiv] VIANNA. Ibid. V II: 298.
[xv] WEBER. Ibid. V. II: 546.
[xvi] WEBER. Ibid. V. II: 535.
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